“O caos comanda a acção”, confessa-nos Arnaud Desplechin sobre o seu mais recente filme, o extraordinário “Reis & Rainha”. O realizador francês, que já havia presenteado o público com esse intenso e vitalista retrato de “Esther Kahn” (2001), oferece-nos desta vez uma visão sobre a fluidez absoluta e inefável que é a vida humana. Magnífico tradutor dos desequilíbrios profundos que invadem os seus personagens, Desplechin produz com a sua câmara um verdadeiro e inquieto malabarismo emocional, transformando-se numa espécie de mosqueteiro da narrativa cinematográfica pós-moderna. Ele sabe como poucos, de entre os mais jovens realizadores franceses, o que é fazer grande cinema sem cair no revivalismo “d’auteur” da Nouvelle Vague, nem ceder um milímetro que seja às estratégias de valor globalizante de um gosto normalizado ou mesmo standardizado. Ele consegue na verdade contrariar de um modo quase visceral esta era do espectáculo encomendada pelo lucro financeiro.
Com Desplechin, de facto, “o caos comanda a acção”, produzindo um íntimo efeito de envolvimento, marcado paradoxalmente por um novo realismo que convoca ao mesmo tempo uma pesada atmosfera onírica, portadora de um inconsciente que parece propor uma nova dimensão de ver cinema, livre de constrangimentos formais ou mesmo de qualquer significado mais comum. Em “Reis & Rainha”, estamos perante uma verdadeira “obra aberta” (esse conceito elaborado nos anos 60 por Umberto Eco), os personagens vagueiam em busca de uma identidade confusa, no limite do identificável, na fronteira da loucura, como a protagonista, a nossa “rainha” Nora Cotterelle (intensa interpretação de Emmanuelle Devos) que procura libertar-se dos “reis” que atormentam a sua pesada memória. Também o “rei” Ismaël (excelente Mathieu Amalric), o único de quem Nora guarda uma imagem afinal de contas positiva, vive no fio da navalha, entre o real e o simbólico, para fugir às obrigações e aos impostos por pagar, evitando ludicamente, por assim dizer, uma existência dita normal. O fio narrativo deste jogo entre sexos e memórias, coloca-nos ao lado de uma figura feminina simultaneamente frágil e difícil, complexa e cruel. Com efeito, Nora enfrenta na morte e no cancro de um pai nem sempre condizente com essa imagem de protecção paterna, a hipótese e o desespero de uma ausência total de “reis” na sua vida e na do seu filho ainda criança. Por sua vez, Ismaël, o último “rei” que poderia ajudar Nora nesse papel, realiza apenas, e de um modo verdadeiramente descontrolado, uma liberdade sem compromissos de qualquer ordem, valorizada tão só nesse exercício maior que é viver ao sabor dos dias e das perplexidades reservadas pelo destino.
“Reis & Rainha” é uma das mais magníficas confirmações, neste início de milénio, de que é possível ainda, contra ventos e marés, elevar alto a certeza de Andre Bazin de que “o cinema é impuro”. E o cinema de Desplechin é uma experiência de impureza e fluidez dos sentidos, como um pêndulo desritmado que confia no espectador a responsabilidade de uma significação mais rica, plural e sensível. O que este realizador faz aqui é, uma vez mais, espoletar os mecanismos inerentes a cada ser humano nessa viagem de auto-descoberta existencial que é, ou deve ser sempre, o Cinema. Só nessa medida, na verdade, poderemos falar de Cinema com C maiúsculo, como expressão e obra antípoda dessa maioria de imagens digitalizadas até à perfeição que nos invade, como lixo dispensável e empobrecedor, o vazio de um certo quotidiano.
“Reis & Rainha/Roi et Reines” (França, 2004) ****
Realização: Arnaud Desplechin.
Actores principais: Emmanuelle Devos, Mathieu Amalric, Maurice Garrel
e Catherine Deneuve
(in Vida Ribatejana, 4-1-2006)