Numa época como a nossa, marcada pelo terrorismo e pela paranóia securitária, onde os discursos parecem extremar-se para legitimar acções de conflito e fanatismos de toda a ordem, o cinema pode assumir um papel essencial, de equilíbrio e moderação, ainda que tomando o medo como metáfora de uma leitura mais ampla e sobretudo real.
“A Vila”, o último filme de M. Night Shyamalan (realizador de “O Sexto Sentido” e de “O Protegido”) confirma a excelência de um “autor” que sabe, como poucos, onde pára o medo e como enfrentá-lo pode tornar-se ao mesmo tempo sedutor e arrepiante. Construído sob prodigiosa carga simbólica, onde a floresta e a vila desempenham os papéis principais de uma fronteira de convivência sempre frágil e sinistra, “A Vila” escuta o frio de uma ameaça inaudita, sussurrada apenas enquanto expressão de um mal que se sabe existir para além do mito ou da fábula. Evitando o recurso a efeitos deslumbrantes, Shyamalan alcança o zénite da comunicação subtil, mergulhando-nos numa intemporalidade mágica, onde uma comunidade do século XIX (que podia ser de qualquer outro tempo…) vive o conflito dos seus próprios limites, esperanças e receios por confirmar. São as histórias contadas e os jogos que desafiam o medo e a coragem dos habitantes que abrem esta película à imanência de um objecto estético original, onde nunca se revela tudo ou o todo, apenas o suficiente para nos fixar à tela. A surpresa, por sua vez, volta a ter a força narrativa que empresta grandiosidade à arte do cinema, viabilizando uma atmosfera de envolvência física e espiritual. Partilhamos assim, do princípio ao fim, essa herança de medo, tacitamente estabelecida por um “pacto” entre os habitantes da vila e os seres misteriosos da floresta. Vigiados sempre pela escuridão sombria desses seres, os personagens apressam-se a demarcar nas árvores a fronteira do medo, como se esta pudesse ficar reduzida à sua delimitação física, e prometem destruir ou eliminar quaisquer vestígios do vermelho, a cor maldita. Na sua ausência, o sangue é deste modo o elemento mais presente, pois todos temem o seu poder de ressurreição e terror. Mas depois de quebrada a fronteira, pela necessidade de auxílio entre os humanos, percebemos que só o amor pode vencer o medo, contra os receios e todas as ameaças do Mal. Este é um filme denso mas incontornável, inspirado em cinematografias tão diversas e excepcionais como as do “film noir” de Jacques Tourneur, do “suspense” de Alfred Hitchcock ou do “bizarro” de David Lynch. A metáfora do medo aqui magistralmente desenvolvida reproduz um valor intemporal mas de grande actualidade, que todos os dias conquista terreno na sua invisibilidade crescente.
A Vila, (EUA, 2003) ****
Realização: M. Night Shyamalan.
Actores principais: Adrien Brody, Bryce Dallas Howard, Joaquin Phoenix,
Sigourney Weaver e William Hurt
(in Vida Ribatejana, 10-11-2004)