2006 A morte da identidade Michelangelo Antonioni

A morte da identidade

 

Só pelo plano-sequência final valeria esperar todas as horas de filme que Antonioni nos desse. Na verdade, somos aí arrastados para aquela estirpe de sensações mágicas, entre a dimensão estética e a reflexão, que animam sempre a alma de qualquer cinéfilo: um momento maior, de excepcional mestria e experimentalismo.

Nesse plano final, longo e envolvente, como o descanso que se transforma em evasão ou libertação final, a câmara situa-se no lugar da alma do personagem principal desta história: o desorientado repórter David Locke (interpretado com sagacidade por Jack Nicholson, que aliás confessou inúmeras vezes ter sido esta uma das suas mais gratificantes experiências em Cinema). A câmara flutua, leve, etérea mesmo, sobre a cama onde repousa, afinal para sempre, o nosso exausto jornalista. Para lá da janela de grades de uma pensão de aldeia, algures no sul de Espanha, vemos uma praça poeirenta, espécie de arena ou palco onde se observa, como micorcosmos e simbologia de uma realidade total, pequenas cenas de um quotidiano verdadeiramente banal (o miúdo que provoca um idoso, um grupo de estudantes religiosos que aí passeia, um aula de condução que empresta um sentido inesperadamente lúdico à sequência…). Aos poucos, lentamente, a nossa “câmara-alma” deixa de observar de dentro do quarto e invade o exterior, (Antonioni recorre aí a um complexo sistema de gruas para criar o subtil efeito de continuidade que nos finta os sentidos). Já no exterior, a câmara dá-nos uma perspectiva absolutamente extraordinária de unidade sensível e física de todo esse espaço que antes obedecia apenas ao formato rectangular da janela do quarto. Criando a ilusão de realidade que tanto nos atrai, Antonioni mostra-nos tudo, aumentado o tom de reconhecimento de um final que se aproxima, identificando, sonora e visualmente, a chegada da polícia que persegue o nosso repórter e a sua nova e ocasional companheira (Maria Schneider), numa velocidade e graciosidade de movimentos de câmara que nos sugere finalmente tratar-se esse visionamento, simultaneamente próximo e distante, de uma espécie de visão do morto que jaz desde há algum tempo naquela cama de pensão. Nunca a “alma” de um morto foi tão bem reinventada nessa experiência de ilusões que é sempre o cinema. Antonioni, que já tinha assegurado o seu lugar na história do cinema com “A Aventura” (1960), “O Eclipse” (1962) ou “Blow-Up” (1966), apresenta aqui, em 1975, uma outra obra-prima de referência, brindando-nos com a excelência da sua visão cósmica da vida e do cinema, ao narrar com mestria e desenvoltura uma história quase insignificante, não fossem as entrelinhas e o requintado formalismo das imagens (aliás, o enigma do significado e do estatuto contemporâneo da imagem é uma outra dimensão de questionamento aqui presente) ditarem a maioridade de um filme que parece tratar do radicalismo político dos anos 70, numa sempre distante narrativa sobre o tráfico de armas e o movimento de libertação de um recôndito país do Deserto do Sara (e como filma Antonioni essa planura simultaneamente vazia e esmagadora do deserto…), mas que aos poucos nos dá a escolher entre a trama policial de teor geo-político e o drama existencial de um repórter que quer deixar de ser quem é e, aproveitando a oportunidade do destino, apodera-se da identidade de um morto para abraçar a liberdade, a grande metáfora deste filme. Isto é, saber as possibilidades de liberdade da existência num mundo configurado para a identidade fixa e controlada pelos valores de Estado e das ideologias.

A liberdade que David Locke procura desesperadamente com esse gesto, resgatando uma última hipótese de identidade à existência, livre de constrangimentos e obrigações familiares e profissionais, é na verdade uma das matrizes da nova condição, pós-moderna, do ser humano. Só com actos desesperados será possível uma existência de liberdade, confundindo de vez as regras de identidade que o mundo moderno fornecera e desenvolvera com o projecto racionalista, ou não fosse o enigma da existência o grande tema-obsessão do cinema de Antonioni, sobretudo na expressão da solidão e da incomunicabilidade entre os seres. Contudo, a circularidade da presença da morte, dos corpos, mas também das identidades que os autorizam a existir neste nosso mundo, permite a Antonioni uma leitura maior, deixando em aberto o processo de significação que nos invade no final de uma morte anunciada, mas não absolutamente identificada. Por fim, salvam-se as almas, sobrevivendo ao corpo e a todas as normas estéticas, sociais ou políticas deste mundo pretensamente dominado pelos homens.

 

“The Passenger/Profissão: Repórter” * * * * *

Realização: Michelangelo Antonioni

(França, Itália, EUA, Espanha) – (1975)

Actores: Jack Nicholson, Maria Schneider, Jenny Runacre