2017 a pequena memória das grandes cidades Moscovo

a pequena memória das grandes cidades

I have seen more than I remember, and remember more than I have seen

Benjamin Disraeli

 

Da aurora do século XX ao seu crepúsculo, suspeito que a vida nesta cidade só se concretizava quando o labor da sobrevivência se transformava em devoção iconoclasta, libertando-se com «os amanhãs que cantam» dos caprichos da intempérie espiritual. À mercê da bandeira vermelha, o trabalho dos deuses produziu aqui, quase sempre, um exército de céticos, ímpios cidadãos que buscavam apenas a auto superação revolucionária, dispensando por isso a volatilidade dos milagres e outras narrativas inspiradas. Mas, apesar dos vestígios ainda vivos desse comunismo perdido, talvez possamos beijar de novo as imagens, como os russos sempre fizeram com as iconóstases, venerando-as em si mesmas, pela sua antiguidade e transcendência. São, afinal, a porta para a eternidade, e descubro-as para além do valor e da significação do seu conteúdo, isto é, a representação de Cristo, da virgem e dos apóstolos. Em Moscovo, na Catedral de São Basílio ou nas igrejas do Kremlin, senti o peso e a transcendência corporal das imagens… esquecendo como a consciência e a emancipação são conceitos ou projeções com origem no marxismo e na psicanálise. No final dessa visita episódica, esticada em pouco mais de 14 horas, pensei, possuído por esse silêncio individual que nos invade quando estamos sós entre milhares de desconhecidos: «se ter consciência (de classe ou da força do inconsciente) conduz a uma vontade de emancipação, sentir estas imagens… significa alcançar outra dimensão sobre a nossa própria consciência existencial.» Momentos há em que lamento ser, como Diderot, um ateu militante, isto é, um racionalista convicto e ativo.