1995 a pequena memória das grandes cidades Veneza

a pequena memória das grandes cidades

I have seen more than I remember, and remember more than I have seen

Benjamin Disraeli

 

Ernest Hemingway disse um dia que os escritores que conhecessem Veneza e não escrevessem sobre ela, deveriam ser enforcados… Pois bem, apesar de não me reconhecer exatamente como escritor, é chegada a hora de evitar a morte por desleixo ou insensibilidade. Ao conjurar a solidão nas ruas estreitas de Veneza, na companhia de pontes e balaustradas, pequenas arcadas e janelas abandonadas na poesia única dessas portadas verdes, invoco a experiência particular de um labirinto magnético, de uma topografia que “desespera” de sentimento febril, como na pena de Thomas Mann, ao narrar a mais bela perseguição de amor platónico que a literatura europeia conheceu. Seis décadas depois, ao som de Gustav Mahler, a lânguida câmara de Visconti alcançou na adaptação dessa obra a metafísica da impenitência, o suor e a cegueira da obsessão, essa Morte em Veneza, intensíssima, de moral hoje politicamente incorreta, firmando no adolescente que havia em mim a primeira memória antecipada de uma verdadeira cidade fantasma. Anos mais tarde, plena de turistas rendidos ao calor húmido das noites de Verão, Veneza acarinhou no meu suor essa memória narrativa, em caminhadas solitárias entre a ponte do Rialto, a ponte dos Seios, San Marco, o marulhar tranquilo do Grande Canal ou o beijo das gôndolas atracadas junto ao rendilhado elegante do Palácio dos Doges. Perante o esplendor quase decadente da sua singularidade, Veneza remete-me sempre para Paul Valery: “A definição de belo é fácil: é aquilo que desespera.” Foi o que senti em 1995, quando na Scuola Grande di San Rocco levantei o olhar aos tetos pintados na Sala dell’albergo por Tintoretto, o mais veneziano dos pintores. Magna tarefa conquistada depois de uma longa disputa com Giuseppe Salviati, Federico Zuccari e, sobretudo, Paolo Veronese. Sabemos que, para lá do resultado da contenda, San Rocco sairia beneficiada, mas Tintoretto pôs no exercício todo o seu talento e o resultado é, de facto, arrebatador. Entre muitos episódios de deslumbramento nessa cidade mágica de igrejas e lagunas, foi o que senti também, recordo agora, nessa outra Accademia, o museu, ao confirmar Giovanni Bellini como um mestre da beleza que “desespera”, um colorista tonal da simetria, apostado na perspetiva atmosférica e na serenidade figural das suas “sacras conversações”, como na tábua elegíaca da Igreja de San Zacaria. Lembro ainda 2015, quando, na saída de um retorno à Accademia, conversei com o inesquecível Gilberto Zorio, passeava eu com um grupo de amigos que o conheciam de uma passagem pelo nosso país. Um deles apresentou-nos esse mítico protagonista da arte povera italiana, que logo começou a contar segredos que pareciam ligar os fios da sua história aos grandes mestres do renascimento veneziano. E as águas da “sereníssima” a refletirem a minha felicidade, o meu encantamento. Hoje, dou comigo a sublinhar as palavras de Eduardo Lourenço, “Veneza é um sonho petrificado, um passeio sonâmbulo por um espaço entre água e céu, entre vida e morte. A bem dizer não é um espaço mas um tempo”. Um tempo de mosaico longo, como nas palavras de Rustichello de Pisa sobre as viagens de Marco Polo ou no galanteio veloz de Giacomo Casanova, imaginado nos quartos dos palácios que preenchem o cenário meticuloso dessas “vedute” de Guardi, Canaletto, Bellotto e alguns outros de graça intemporal.