2018 a pequena memória das grandes cidades Montevideo

a pequena memória das grandes cidades

I have seen more than I remember, and remember more than I have seen

Benjamin Disraeli

 

Nas palavras sábias de Eduardo Galeano: «O vento apaga o rasto das gaivotas. As chuvas apagam o rasto dos passos humanos. O sol apaga o rasto do tempo. Os contadores de histórias procuram o rasto da memória perdida, do amor e da dor, que não se vê, mas não se apaga.» Por isso, dizer uma cidade como Montevideo é tarefa precária e vulnerável perante a escolha das palavras que deveriam descrever o vento, a poética íntima dos lugares. Afinal, como todos os outros, este é um texto que ficará para lá da sua circunstância, quando a memória se tiver esbatido, dissipando a sensibilidade original no lento porvir da vida quotidiana. Na viagem de regresso, escrevo, com urgência e sem arrojo, breves impressões de um dia completo, solitário, mas pleno.

Domingo de manhã. Após o desembarque do «Buquebus» tomado em Buenos Aires, inicio a descoberta fluente da cidade histórica. Nos lugares do primeiro andar do autocarro, destapo a ortogonalidade da «Plaza Independencia», apreciando a sua elegância vintage e o destaque entre edifícios modernos do neoclássico «Teatro Solis». Ergo os olhos ao majestoso «Palacio Salvo» na sua polémica afirmação decorativa, e espreito o «Museo del Tango», nos primeiros andares desse edifício. Segue-se a longa Avenida 18 de julho, pracetas e árvores frondosas, para desembocar depois, pela avenida Libertador, na grande Praça do Palácio Legislativo, um lugar de escala exagerada, que sugere desproporção nas pequenas casas ou moradias das margens. Passo a praça da bandeira e ao longe vejo o imponente hospital universitário edificado junto ao Estádio Centenário, a paragem desejada. Desço com o sinal de uma emoção que cresce na confirmação dessas imagens que me acompanham há muito. Por entre as frinchas dos portões cerrados, fotografo as bancadas e a torre moderna que, na sua patine, emprestam uma extraordinária dignidade ao conjunto. Registo o verde do relvado, preparado para um jogo que nessa tarde opõe o Nacional ao Boston River, e imagino de imediato a memória da final do primeiro Mundial de Futebol, aí realizado em 1930, o ano do centenário da independência do país. Ganha pelos anfitriões, o grande Uruguai dessa época – que ostentava ainda o título de bicampeão olímpico – derrotou na final a rival Argentina por 4-2. No velho museu do futebol, atrofiado debaixo da bancada poente, espreito as mesmas fotos a preto e branco que inspiraram a minha infância, ao lado de equipamentos empoeirados pelo clamor dos primeiros entusiastas do Mundial. A passagem do tempo, revelada na degradação espontânea e mal cuidada da aparência, confere aos edifícios aquilo a que se chama genuinidade e, desse modo, uma certa autoridade enquanto testemunho histórico, criando em quem os vive ou observa um sentimento natural de respeito e homenagem. Aqui nasceu o Campeonato do Mundo de Futebol, da vontade férrea de uns loucos que insistiram na organização de um torneio apressado, ao qual as poucas seleções europeias presentes chegaram em navios transatlânticos, extenuadas por semanas de alto mar. Aqui nasceu o primeiro grande estádio moderno, do contributo de muitos que, dia e noite, ajudaram a concretizar o sonho: a construção de um recinto monumental para receber os principais jogos do campeonato. Na verdade, este não é, nem nunca foi, apenas um estádio. O mítico Estádio Centenário é o símbolo de um povo e continua a representar um dos maiores ícones da cidade. Há nele um espírito e uma emoção que o ligam aos primórdios dessa paixão, o futebol, mas também ao orgulho da independência e da autodeterminação de todo um país. Qualquer grande renovação da sua arquitectura teria obliterado essa atmosfera, pois o envelhecimento dá espessura, densidade e memória aos espaços decisivos de uma nação, da sua identidade. Talvez seja por isso que os uruguaios mantêm o Centenario quase intocável, de acordo com o desenho inaugural, bancadas em anfiteatro largo, aberto ao céu azul, o mesmo que tinge as camisolas da Celeste, levando ao delírio os hinchas da garra charrúa nestes últimos quase cem anos. O futebol, os craques e a glória da sua seleção constituem o magno orgulho deste pequeno país com pouco mais de três milhões e meio de almas. Depois, subindo um novo autocarro, observo com inveja a baia da Playa Pocitos, as crianças na aventura do banho em águas frias no Rio de la Plata, os jovens e outros de outra idade a praticar jogging, voleibol, e futebol, claro, em campos improvisados ao longo da extensa Marginal de Montevideo. O vento forte não tira o sorriso aos montevideanos, nem o entusiasmo do lazer junto ao mar. Contornado o farol de Punta Brava, percorro o Bulevar General Artigas (o herói da independência) e saio para uma visita ao «Museo Nacional de Artes Visuales». Lugar de cultura, calmo e despretensioso, com as suas pequenas galerias abertas à experiência social dos locais. Saboreio então um gelado de rua ao descer à Playa Ramirez para ver o sol fechar o fim do dia. Tempo ainda para subir o Parque Rodó, sentir a liberdade popular no espaço público, e a harmonia de algumas árvores a contornar o Luis Franzini, o modesto estádio do Defensor Sporting, pintado no contraste do roxo com o tapete verde, nas bancadas irregulares, de madeira, a lembrar o futebol puro do início de novecentos. Despeço-me, para já, da capital do Uruguai, espreitando o Mercado del Puerto, com o aroma dessa parrilhada em quadro de requinte, o grand finale. Do porto de embarque, vislumbro, tranquilo, o início da noite, e digo para mim: «cai o pano sobre um dia completo, solitário, mas pleno.»