Se “Disponível para Amar” (2000) merecia quatro luminosas estrelas pela sua magnificência amorosa e pelo seu cirúrgico estilo visual, já este “2046” não vai além das três estrelas, fundamentalmente pela qualidade de alguns momentos inesquecíveis, que nos fazem crer ainda na eternidade do amor.
Todos sabemos como as sequelas cinematográficas só raramente superam a sua matriz genética original e, na verdade, Wong Kar-Way não deixa de ser um excelente realizador só por que “2046” não é tão prolixo e marcante quanto o seu antecessor – já o havia provado não só com esse filme referência, como com os anteriores “Anjos Caídos” (1997) ou “Chunking Express” (1994), a indelével película responsável pela apresentação ocidental do cineasta de Hong Kong.
Mas se “2046” teve um percurso sinuoso e difícil, dividido por quatro atribulados anos de rodagem – situação pouco comum ao cinema de Kar-Wai – o seu eco partilha de um hábil maneirismo que, embora definido por uma mise-en-scène rigorosa, produz no entanto um certo efeito déjà vu. A derradeira imagética do realizador oriental, povoada de visões e deslumbramentos, parece confirmar o paroxismo de uma obsessão marcada pela herança do cinema clássico e pelo género do melodrama romântico, num registo fatalista que deixa marcas ao nível dos sentidos mas que ao mesmo tempo nos impede de abrir o coração sem concessões.
A melancolia e o sentimento inequívoco de que estamos perante um dos filmes mais românticos dos últimos anos não são suficientes para fazer esquecer uma certa dimensão anódina que por vezes percorre o filme. Por outro lado, a auto-citação é sempre demasiado perigosa e, a prazo, pode converter-se num exercício fácil e inconsequente. Veja-se por exemplo como a música, que em “Disponível para Amar” marcava verdadeiramente o ritmo da acção narrativa, funciona aqui como um dispositivo forçado ou apenas decorativo, apesar da excelência romântica de uma colectânea que junta Vicenzo Bellini e Nat King Cole a outros autores maiores. Esperemos que os personagens de “2046” tenham finalmente encontrado o seu destino, entre o resgate da memória, o número e as suas coincidências.
De um modo ainda insinuante, Wong Kar-Wai prolonga aqui o desnorte do seu personagem masculino, esse Chow Mo-Wan (Tony Leung) que mergulha na fantasmagoria de um passado onde a memória “da” desilusão amorosa, bem como da mulher fatal que sempre a alimenta, o converte numa espécie de alma penada, perdida apenas, sem ressentimentos, entre o desejo e a fuga à realidade. A solidão combate-se em cruéis jogos de prazer e conquista, onde o erotismo aparece como sublimação da perda e do sofrimento nunca revelado. Afinal, o corpo e a alma exorcizam os fantasmas no momento sexual, no seu êxtase, e as sombras das mulheres que com ele se cruzam acabam voláteis e dispensáveis como a escrita interminável da ficção científica, esse exercício de projecção e expiação essencial.
“2046”, (China/França/Alemanha/Hong Kong, 2004) ***
Realização: Wong Kar-Wai
Actores principais: Tony Leung, Gong Li, Maggie Cheung
(in Vida Ribatejana, 1-12-2004)