2005 A vida é uma festa Federico Fellini

A vida é uma festa

 

A reposição no circuito comercial de “Oito e Meio”, um dos melhores filmes da história do cinema, e por certo o melhor da produção felliniana (apenas rivalizando com o extraordinário e já mítico “A Doce Vida”), é seguramente um dos acontecimentos mais empolgantes deste início de ano. Congratulamo-nos deste modo com o facto de, para lá do inesgotável labor da Cinemateca, também a Atalanta Filmes promover com regularidade o visionamento de clássicos da sétima arte, desvendando assim um pouco da história do cinema a um público mais vasto e potencialmente cinéfilo.

Federico Fellini é um daqueles realizadores que ultrapassou a fronteira das suas próprias expectativas, convertendo-se num dos maiores cineastas que o cinema conheceu, a par talvez de Sergei Eisenstein, Hitchcock, John Ford ou Ingmar Bergman. Sinal dessa mesma maioridade, este “Oito e Meio” surge como uma esplêndida metáfora sobre o estatuto e a dúvida autoral do próprio realizador italiano, com o título enigmático de “Oito e Meio” a remeter ainda para o intervalo que constituiria esse novo projecto sem nome, depois de sete filmes já realizados. Após a estreia, em 1960, de “A Doce Vida/La Dolce Vita” ter constituído um grande êxito – recebendo inclusive os elogios unânimes da crítica – Fellini percebera que se instalara uma exacerbada expectativa relativamente ao seu próximo filme, e isso conduzi-o a uma espécie de crise de criatividade – e também de meia-idade – que redundou numa espera de três anos para estrear novo trabalho ao nível da longa-metragem.

A solução para este impasse encontrou-a Fellini, precisamente, na abordagem do tema da crise de autoria, construindo um filme de magnitude máxima na escala da modernização do cinema, ao desenhar o perfil cambaleante e desesperado de Guido Anselmi (Marcello Mastroianni, numa das suas melhores interpretações), um realizador que enfrenta o dilema do vazio criativo, da dúvida sobre a origem e o destino não só da sua arte, como de toda a sua vida. Este alter-ego de Fellini, protagonizado por um Mastroianni que nos faz crer estarmos perante o próprio realizador de “La Strada/ A Estrada” (1954), é um dos maiores personagens de todo o cinema ocidental, com a sua pungente angústia a dominar uma narrativa cheia de fantasmas, presságios e recordações, numa espécie muito particular de análise freudiana, inadvertidamente brindada pelos momentos principais da sua infância. Por outro lado, as mulheres da sua vida, e são muitas, sublinham o sentimento de “pecado” que o invade por ter vivido num harém sem projecto nem felicidade. Durante os preparativos da rodagem do seu próximo filme, num prolongado impasse que desespera todos aqueles que dependem da sua imaginação e criatividade, Guido mantém-se distante e melancólico, sem esperança mas determinado ao mesmo tempo na tarefa de desocultação da sua existência. Às pressões do produtor ou dos muitos candidatos a um lugar de actor, Guido responde com paciente ironia, esperando um sinal, visionário e definitivo, que desbloqueie o ritmo desse grande circo que é a fase de rodagem de um filme. Aliás, o circo, com a sua inebriante e poderosa magia, é uma das principais referências da estética felliniana, tornando-se neste filme a matriz de uma acção que ora se perde no caos da desordem, ora se reinventa no poder de prestidigitação das figuras circences que apoiam desde sempre o desorientado realizador. Ao fim de muitas dúvidas, e no limiar do suicídio, este percebe finalmente, no amor da sua mulher Luísa (Anouk Aimée), a aceitação do maravilhoso que a vida sempre nos dá, como se a felicidade estivesse afinal ao alcance de todos, dependendo apenas da nossa incondicional disponibilidade. Gritando: “a vida é uma festa, vamos vivê-la”, Guido anuncia a mais pura e simples mensagem a que podia aspirar, e dando a mão à sua mulher, faz desfilar todos aqueles que o rodeiam, convertendo-os nos personagens do seu filme, aceitando-os também como parte essencial da sua vida. Fellini oferece-nos aqui, “um hino à vida, à verdade interior e transcendente do Homem” numa perfeita união entre a vida e a arte, anunciando a síntese, como nos ensinou Luís de Pina, “do seu pensamento criador: a vitória do irracional sobre o racional, do oculto sobre o visível, do mistério sobre a ciência, do espírito sobre a matéria”.

 

“Oito e Meio/Otto e Mezzo” (Itália, 1963) * * * * *

Realização: Federico Fellini

Actores principais: Marcello Mastroianni, Cláudia Cardinale,

Anouk Aimée, Sandra Milo, entre outros

 

(in Vida Ribatejana, 19-1-2005)