É o fim da pintura […] Cada plano é um plano e não haverá mais representação.
Aleksandr Rodchenko
Abolindo, de uma vez, a representação e ainda qualquer investimento de ordem simbólica, o soviético Aleksandr Rodchenko realizou com este tríptico a primeira grande declaração sobre o fim da pintura. Se Duchamp havia “escolhido” o readymade como veículo iconoclasta de terrorismo institucional, Rodchenko “declarara” com três singelas pinturas planas o fim da linha para o paradigma narrativo que havia alimentado durante séculos o exercício disciplinar da pintura.
De facto, o tríptico de Rodchenko vai mais longe no seu propósito de declaração lógica sobre o destino suicida da pintura moderna. Ao contrário de Quadrado branco sobre fundo branco (1918) de Malevich ou de Quadrado preto sobre fundo preto (1918), da sua própria autoria, as três monocromias datadas de 1921 não possuem sequer a subtil transcendência de formas ou estudos de cor que alimentava o suprematismo malevichiano e a sua inicial repercussão no construtivismo russo. Na verdade, Cor pura vermelha. Cor pura amarela. Cor pura azul cumpre efectivamente, no seu isolamento iconoclasta de várias décadas, uma função radical acerca das possibilidades de redução em pintura. Com este exercício de cores puras, primárias, planas e lisas, que ocupam de modo uniforme a superfície da tela, Rodchenko assume pela primeira vez na história da arte do século XX o valor objectual a que pode ser reduzido o trabalho pictórico. Com efeito, estes três pequenos painéis remetem apenas para a evidência da sua planaridade e cromatismo elementares, conferindo assim aos limites do suporte um valor máximo, superlativo e inesperado.
A propósito dos seus três painéis monocromáticos, Rodchenko viria a afirmar de modo lacónico: “Reduzi a pintura à sua conclusão lógica e expus três telas; uma vermelha, uma azul e uma amarela. Declarei: acabou-se. É o fim da pintura. Cores primárias. Cada plano é um plano e não haverá mais representação.”[1] Eliminar qualquer sugestão de representação foi o grande objectivo deste trabalho. A desmistificação sobre a aparente necessidade figurativa ou simbólica que a pintura sempre reclamara encontra aqui a sua expressão máxima, num tempo ainda impróprio para tais excessos propositivos ou pré-conceptuais. Rodchenko estava aliás consciente do valor da sua proposta e, por isso, podia declarar, num misto de radicalidade prática e intelectual – seguindo afinal a estratégia de manifesto muito em voga nesse período histórico – que a pintura tinha chegado ao seu fim.
Durante muitos anos, esse grito de revolta não teria eco ou relevância significativa, mas o valor interpretativo do tríptico de Rodchenko tornar-se-ia, com o tempo – ainda que estejamos a falar de uma obra pouco vista ou conhecida do grande público -, uma referência maior para a arte contemporânea. Na verdade, já no final do século passado, uma nova onda de avaliações teóricas converteu Cor pura vermelha. Cor pura amarela. Cor pura azul numa espécie de verdadeiro ícone, precursor do propósito objectualista mais tarde assumido por todo o minimalismo. Nesse contexto, se Johannes Meinhardt afirma que com esta obra “cai por terra a reivindicação da abstracção, a sua transcendência”[2], Benjamin Buchloh assegura-nos que “quando Rodtchenko introduz a monocromia, tornamo-nos testemunhas não apenas da libertação face à composição relacional mas também, o que é mais importante, face à convencional atribuição de significado a cores em favor da pura materialidade da cor. […] A finalidade das estratégias críticas e modernas de Rodchenko era a desmistificação da produção estética, neste caso da convenção pictórica de atribuir sentido à cor.”[3] Por sua vez, Yves-Alain Bois defende, em Pintar: a tarefa do luto, que de todos os gestos da vanguarda soviética, a exposição em 1921 desses três painéis monocromáticos é um dos mais significativos, mas também, acrescento eu, um dos mais enigmáticos e sobreviventes, assumindo ao longo do tempo um estatuto extraordinário enquanto referência simultaneamente iconoclasta, formalista e objectual. O mesmo autor defende ainda que “se o gesto de Rodchenko foi tão importante, como Tarabukin concluiu quando o analisou em From the Easel to the Machine, foi porque mostrou que a pintura só podia ter uma existência real se proclamasse o seu fim; ‘a parede sem significado de Rodtchenko, muda e cega… convence-nos de que a pintura foi e continua a ser uma arte representativa e que não pode fugir aos limites do representativo’ [Tarabukin op. cit (1923)]. A pintura de Rodtchenko precisava de alcançar o estatuto de objecto real (não imaginário), o que significava o seu fim enquanto arte. Mais uma vez somos confrontados com uma negação – não uma desconstrução – que explica, a meu ver [assegura-nos Yves-Alain Bois] o que tem que ser chamado o fracasso do paradigma produtivista na pintura, que logicamente se seguiu ao gesto de Rodchenko (a dissolução da actividade do artista em produção industrial). Ou, para voltar a usar a terminologia que antes pedi emprestada, Rodtchenko desconstruiu apenas um aspecto da pintura: a sua pretensão de atingir o domínio do real – desconstrução que foi de novo levada a cabo, e aprofundada, pelo minimalismo na década de 60.”[4]
No seu eminente desejo de anular qualquer hipótese de representação, Rodchenko promove a primeira verdadeira iniciativa de assunção objectual da pintura, convertendo-a apenas na expressão única da tela pintada. Depois de séculos como objecto evocativo e mediador, a pintura em tela experimentava finalmente a sua dimensão real. Isto é, o objecto-tela (ou quadro) assume aí todo o protagonismo perceptivo e comunicacional, abandonando qualquer referência exterior a si mesmo. Desse modo, os três monócromos de Rodchenko são ainda precursores, como defende Yves-Alain Bois, da experiência de invasão do real que o minimalismo viria a desenvolver cerca de quarenta anos mais tarde. Apesar de a característica minimalista de interdisciplinaridade (numa alusão à pintura, à escultura e à arquitectura) estar ausente deste exercício de Rodchenko, a sua afirmação directa e despojada reafirma a mais simples aparição objectual a que a pintura pode também aceder e concretizar. De qualquer forma, antes dessa associação com o real objectual, Rodchenko demonstra sobretudo, como sublinha Hal Foster, “o convencionalismo da pintura: podendo delimitar-se às cores primárias em telas discretas.”[5] Como nos lembra Buchloh, apesar das ligações activistas de Rodchenko ao agit-prop e ao grupo LEF (Frente Esquerda das Artes), Cor pura vermelha. Cor pura amarela. Cor pura azul apresenta-se apenas como um exercício radicalmente simples, apoiado numa lógica de puro reducionismo: “a separação de cor e linha, e a integração de forma e plano.”[6]
[versão original: in Arq.a – Revista de Arquitectura e Arte, nº 41, janeiro/fevereiro de 2007]
[Imagem: Aleksandr Rodchenko, Cor pura vermelha. Cor pura amarela. Cor pura azul, (1921)]
1 | ↑ | Aleksandr Rodchenko, do manuscrito “Working with Maiakovsky” [Trabalhando com Maiakovsky] (1939), citado em From Painting to Design: Russian Construtivist Art of the Twenties, (Galerie Gmurzynska, Colónia, 1981), p. 191. [informação colhida em Yves-Alain Bois, “Pintar: a tarefa do luto”, in Pintura. Abstracção depois da Abstracção, (editado por Johannes Meinhardt), Colecção de Arte contemporânea, nº 5, Público/Serralves, p. 130. |
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2 | ↑ | Johannes Meinhardt, “A crise da pintura abstracta nos anos 1960”, in Pintura. Abstracção depois da Abstracção, (editado por Johannes Meinhardt), Colecção de Arte contemporânea, nº 5, Público/Serralves, p. 20. |
3 | ↑ | Benjamin H. D. Buchloh, “The Primary Colors for the Second Time: A Paradigm Repetition of the Neo-Avantgarde”, in October, nº 37, Verão de 1986, p. 44. |
4 | ↑ | Yves-Alain Bois, op. cit. p. 125. |
5 | ↑ | Hal Foster, The Return of the Real, Cambridge, MIT Press, 1996, p. 19. |
6 | ↑ | Benjamin H. D. Buchloh, Formalismo e Historicidade. Modelos y métodos en el arte del siglo XX, Madrid, Akal/Arte Contemporáneo, 2004, p. 123. |