Assinalar um ano de crónicas no “Vida Ribatejana” com um dos melhores filmes de sempre da História do Cinema é uma felicíssima coincidência. Com efeito, na sua expressão magnificente, “Aurora/Sunrise” é um filme extraordinário e inolvidável, obrigatório para qualquer cinéfilo.
Realizado por F. W. Murnau, no já longínquo ano de 1927, este melodrama maior do cinema mudo, um dos expoentes do género, foi o primeiro filme americano de um dos maiores realizadores do expressionismo alemão. Depois de “Nosfetaru” (1922) e “O Último dos Homens” (1924), “Aurora” surge como mais uma obra incontornável na curta carreira cinematográfica deste grande cineasta europeu. Considerado já então como um dos grandes génios da “sétima arte”, Murnau deu o salto para Hollywood em 1926, aceitando as excepcionais condições de trabalho oferecidas pelo produtor William Fox – condições essas de que não mais voltaria a beneficiar, apesar de ter realizado ainda mais três outros filmes, entre os quais esse derradeiro e magnífico “Tabu” (1931).
“Aurora” é uma das grandes histórias de amor do cinema (mudo e/ou sonoro). O seu triângulo amoroso – símbolo perfeito do conflito entre o amor e o pecado, isto é, o bem e o mal, na bíblica referência a Adão e Eva, e a sua malévola serpente – remete para a assunção da “queda” e da “ressurreição” como valores sobre a redenção possível do personagem principal, o campónio Ansass (George O’Brien) que, depois de ter experimentado a infinita felicidade do amor conjugal com Indre (Janet Gaynor), vive atormentado pelos desejos lascivos de uma “vamp-serpente” (Margaret Livingston) que ali apareceu para o desviar do Paraíso. Depois de uma pesada luta moral – pontuada por excelentes efeitos de fotografia, da responsabilidade de Charles Rosher e Karl Struss (que lhes valeram um “Oscar”, logo na sua primeira edição) –, e hipnotizado pela sofisticada beleza dessa “vertigem” vinda da cidade, Ansass planeia o assassínio da inocente Indre. Mas no dia do passeio de barco que deveria servir de pretexto para o terrível afogamento da esposa, Ansass acaba por suspender, ao toque miraculoso dos sinos da igreja local, a sua pecaminosa acção. Contudo, Indre apercebe-se das obscuras intenções do marido e, assim que chega à margem – trazida de volta por um confuso e arrependido Ansass – foge pelos campos fora, apanhando um “irreal” mas magnífico Eléctrico que a levará – assim como a Ansass, que a persegue – do campo à cidade. E aí começa o maravilhoso e poético processo de redenção de Ansass. Depois de ter desejado ver-se livre de Indre, ele apercebe-se, aos poucos, através desses encantadores episódios citadinos, o quanto ama, afinal, a sua frágil esposa – essa magnífica Janet Gaynor, “a mais mozartiana das satrs” como lhe chamou João Bénard da Costa, que viria a receber por esse desempenho o “Oscar” para a melhor actriz.
Entre o casal reconciliado, vive-se, assim, um clima de felicidade que sofrerá, porém, um forte revés aquando do regresso à aldeia. Ao atravessar o lago (símbolo da distância que separa o campo da cidade) o barco que os transporta é atingido por uma terrível tempestade, levando-os ao naufrágio. Depois de acordar, jogado na margem rochosa perto da sua aldeia, Ansass inicia, com ajuda dos aldeões, a via-sacra do seu desespero, gritando (em acção marcada por inesquecíveis efeitos sonoros de expressão musical) o nome da sua amada, desaparecida nas águas tépidas do lago malvado. Inadvertidamente, Indre parece cumprir assim o destino que lhe estava traçado desde o início da narrativa. E quando o desesperado Ansass se prepara para assassinar a vil amante que em terra espera a “boa nova” do afogamento de Indre, dá-se o segundo milagre, desta vez, um duplo segundo milagre, porque no preciso momento em que o campónio amargurado estrangula desenfreadamente a traiçoeira “vamp”, chega a notícia de que um velho pescador encontrara com vida a angélica e desfalecida Indre. Das trevas para a luz, e alterando radicalmente o final da novela original – da autoria de Hermann Sudermann, e onde Ansass acabava por morrer afogado, caindo na sua própria armadilha – F. W. Murnau eleva o amor conjugal ao plano esplendorosamente inocente de uma vitória total sobre o mal e o pecado. A não perder, hoje, amanhã ou sempre que quisermos ver ou rever aquele que François Trufautt considerou “o filme mais belo do mundo”.
“Sunrise/Aurora”, (EUA, 1927) * * * * *
Realizador: F. W. Murnau
Actores principais: George O’Brien, Janet Gaynor e Margaret Livingston.