Neste lado de cá, não sou nada palpável, pois vivo tanto com os mortos como com aqueles que ainda não nasceram, um pouco mais próximo da criação do que é habitual, embora ainda não suficientemente perto.
Paul Klee
Dividido e fantasista, Paul Klee realizou ao longo da sua vida uma profunda investigação sobre a forma plástica, o desenho, e a imaginação livre. A sua obra concretiza visualmente uma espécie de mapa cristalino que orienta de forma oculta o mundo e a vida dos homens. Poesia, inspiração literária e musical, remetem de um modo geral o seu trabalho criativo para uma ordem expressiva que o aproxima simultaneamente da cultura burguesa oitocentista e da renovação formal e iconográfica das vanguardas do século XX. No espaço dessa dicotomia, Klee procura sobretudo a invenção de uma realidade paralela, inventada pelo sonho e a coragem de olhar, marcada pela ideia de transmutação da forma pictórica, em associação à memória figurativa da infância mais inocente.
Sob uma matriz plural, tanto em termos de conteúdo como na sua evolução disciplinar, a linguagem plástica de Paul Klee recusa desde cedo qualquer modelo formal mais prolongado, investindo maioritariamente numa maior consciencialização do pormenor, nessa autonomia volátil que se esconde em cada traço, ou cor tornada forma identificada. Este processo levou-o inclusivamente à prática de uma “pintura pura” em que os valores da abstracção (numa influência conjunta de Robert Delaunay e Wassily Kandinsky) promoviam uma superfície cromática cada vez mais simplificada e livre, como na série das aguarelas sugeridas por uma viagem a Tunis, no norte de África, realizada em 1914 com August Macke e Louis Moilliet. O O decorativismo geometrizado das tapeçarias e o casario claro dessa paisagem árida e desértica, converteram um desenho inicialmente expressionista e mitológico (marcado sobretudo por Alfred Kubin) na experimentação da forma aguarelada, do desenho sintetizado entre linhas puras e figuras imaginadas.
Entre uma produção pictórica tendencialmente mais abstracta e o desenho simples orientado por sugestões várias, da arte primitiva e infantil à permanência de elementos de percepção psicológica complexa, a obra de Paul Klee reforça a ideia de uma invulgar capacidade fantasista, assegurada fundamentalmente pelo desenvolvimento dessa extrema acumulação de referências e de uma imaginação que recebe ainda da cultura musical um estímulo libertário e poético determinante.
Música, fantasia e desenho
Se estas características fazem a imagem essencial da pintura de Paul Klee, podem ser ainda apreciadas, na sua globalidade, nos cerca de quarenta desenhos que a Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva agora apresenta em exposição. Oriundos da Fundação Paul Klee (Berna), os desenhos agora seleccionados abrangem um período vasto da sua produção, de 1914 a 1940, pontuando assim os momentos decisivos da vida do artista suíço, desde as viagens ao norte de África à passagem pela Bauhaus, e ao isolamento final da sua prática artística, entre sucessos e projectos não concretizados.
Para Klee, o desenho podia ser entendido como um registo autónomo ao mesmo tempo que representava uma forma segura de evolução criativa, tendo afinal como objectivo último o abandono definitivo do realismo mais naturalista: “quanto mais puro é o desenho, isto é, quanto maior é a importância atribuída à forma gráfica, tanto mais deficiente é o suporte para a representação realista dos objectos visíveis”, (Paul Klee, Confição de um criador, 1920). É assim baseado neste pressuposto de simplificação e autonomia formal que o desenho vai evoluindo paralelamente à sua pintura, apropriando-se de uma constelação figurativa onde as formas geométricas, sugerindo complexos mecanismos volatilizados, são exploradas conjuntamente por figuras de tendência surreal, numa espécie de morfologia poética continuamente renovada. Aí, estranhas figuras angelicais profetizam uma ideia rara de afirmação interior, entre a magia e a visionarismo mais intimista.
De outro modo, torna-se particularmente evidente nestes desenhos que a orquestração da superfície desenhada procura quase sempre acompanhar a sensação de harmonia que Paul Klee identificava na expressão musical. A abstracção e a autonomia da música relativamente à estética realista dominante nas artes plásticas são valores normalmente associados à produção de Klee não só pelo seu universo familiar (o pai era músico, e ele próprio recebera uma educação musical que o dividira durante anos entre essa disciplina e a pintura) como pelo desafio que representava para ele uma eventual aproximação de meios entre a música e as artes visuais – tarefa perseguida também durante muito tempo, e de outro modo, por Wassily Kandinsky.
O sentimento de que “a Arte não reproduz o vísivel, mas torna vísivel…” alimenta substancialmente toda a produção artística de Paul Klee, numa consciência formal ainda associada à música, pois alguns destes desenhos revelam uma espécie de cósmica reinvenção dos signos gráficos característicos da linguagem musical.
(versão original: in Arte Ibérica, Março de 1999)
(imagem: Paul Klee, Anjo esquecido, 1939)
© Zentrum Paul Klee, Bern