2021 As novas «cidades invisíveis». Diálogos entre Italo Calvino e Luciana Fina Luciana Fina

As novas «cidades invisíveis». Diálogos entre Italo Calvino e Luciana Fina

 

Nada garante que Kublai Kan acredite em tudo o que diz Marco Polo ao descrever-lhe as cidades que visitou nas suas missões, mas a verdade é que o imperador dos tártaros continua a ouvir o jovem veneziano com maior atenção e curiosidade do que a qualquer outro seu enviado ou explorador.

 

Italo Calvino, «As Cidades Invisíveis», 1972

 

 

 

Desenganem-se, nem Italo Calvino é Kublai Kan, nem Luciana Fina é Marco Polo. Porém, os diálogos de descoberta sobre o mundo e o sentido da vida que essas duas personagens históricas “constroem” no livro As Cidades Invisíveis podem sugerir aqui uma nova hipótese de colaboração imaginada, enquanto viagem inesgotável pelo império imenso que é a arte, seguindo afinal o espírito fantasista, mas extraordinariamente revelador, que inspirou o escritor italiano.

Ao mesmo tempo, Terceiro Andar, o título da obra de arte de Luciana Fina que espoletou o diálogo inesperado, pode funcionar como oráculo a viver ou decifrar (dependendo do observador), enquanto expressão de uma poiesis ancestral, apoiada no desafio de transcendência dessa comunicação milenar, firmada na migração dos seres humanos pelo espaço do planeta Terra, a nossa casa. Sabe-se que os nomes dos lugares mudam tantas vezes quantas são as línguas forasteiras; e que todos os lugares podem ser alcançados vindo de outros lugares, pelas estradas e rotas mais diversas, por quem cavalga carreia rema voa…[1]

Entre Itália e Portugal, Luciana Fina investiga desde há muito a confluência entre o real e a imaginação reflexiva, isto é, as relações do documentalismo cinematográfico com as linhas da arquitetura, as palavras e os significados da literatura, ou a expressividade formal das artes plásticas, questionando com acuidade e fascínio o poder da representação da imagem na sua relação com o sujeito, em especial os efeitos do seu cosmos, as suas referências e características, no desenvolvimento da sua mundividência e responsabilidade social. O seu filme Terceiro Andar (Portugal/Itália), realizado em 2020 (com origem numa outra versão de 2016, apresentada em díptico – instalação vídeo), lança um enigma de luz que convoca as origens da humanidade, refletindo sobre as experiências da arquitetura (a sua visualidade, como estética da atenção) e da linguagem (a sua sonoridade fonética, como gesto de chamamento e reaproximação) ao longo de uma dinâmica de traduções (linguística, étnica e cultural) que nos conduzem na perceção poética e social dos valores do presente, do passado, da casa, do prédio, do espaço comum. Isto é, são exercícios de uma implicada reflexão sensorial que ajudam a definir, em termos conceptuais, uma ideia de comunidade, seja através de planos fixos, mas onde corre a energia da vida, ou dos subtis movimentos ascensionais e descendentes da câmara, seja mediante a envolvente narrativa que apela a uma outra espécie de movimento, o da partilha intergeracional, a sua transmissibilidade perdida ou resgatada, ainda possível. Ouvimos então, entre escadas, portas e vãos, os sons do quotidiano de cada casa, as vozes, as cantilenas, ou os silêncios no desenho das luzes e das sombras ao cair da noite, mas também definições de dicionário, histórias reais e imaginadas, a memória da infância e a essência do amor, trazidas até nós por duas mulheres guineenses e muçulmanas, mãe e filha primogénita de uma família numerosa, Fatumata e Aissato Baldé, que vivem em Lisboa (no Bairro das Colónias), mas trazem em si outras cidades, a memória e a reminiscência de outros lugares distantes. Às vezes parece que a tua voz me chega de longe, enquanto estou prisioneiro de um presente vistoso e invisível, em que todas as formas de convivência humana chegaram a um extremo do seu ciclo e não se pode imaginar que novas formas tomarão. E oiço pela tua voz as razões invisíveis de que viviam as cidades, e pelas quais talvez, depois da morte, reviverão.[2]

Recordemos a barthesiana afirmação de Italo Calvino: “Quem comanda o conto não é a voz: é o ouvido”, para a podermos experimentar durante o visionamento-audição do filme de Luciana Fina. Entre o estranhamento em nós suscitado pelos sons da voz mais velha que fala em crioulo (kriol) e a familiaridade da sua tradução para português que nos é garantida pela voz mais jovem, somos levados a confirmar que quem faz o sentido é o recetor, perdido ou achado entre o que se ganha e perde nas traduções de cada língua. “Em qual língua é que vamos contar as histórias que nos foram contadas? Em qual língua é que vamos escrever as declarações de amor? Em qual língua é que vamos escrever para contar as façanhas das mulheres e dos homens da nossa terra?”, ouvimos à filha que nos traduz, em sentido literal e figurado, essas preocupações com o futuro e a natureza narrativa de uma transmissão de valores. Nestas “novas cidades invisíveis”, reerguem-se os obstáculos à comunicação entre línguas que se distanciam, escondem e esquecem nas dificuldades crescentes do seu uso ou tradução. Mas, no final, tal como escreveu Calvino, o segredo estará talvez em saber quais as palavras que se devem pronunciar, quais os gestos a fazer, e em que ordem e ritmo fazê-los, ou então basta o olhar a resposta o aceno de alguém, basta que alguém faça qualquer coisa só pelo prazer de fazê-la, e para que o seu prazer se torne o prazer dos outros: nesse momento mudam todos os espaços, as alturas, as distâncias, a cidade transfigura-se, torna-se cristalina, transparente como a libélula. Mas tem de acontecer tudo como que por acaso, sem lhe dar demasiada importância, sem a pretensão de se estar a realizar uma operação definitiva […][3]

O modo como este filme nos emociona prende-se com o facto de sentirmos nas palavras, e sobretudo na sinceridade da sua expressão, o prazer e a aventura de um diálogo entre gerações, entre culturas e entre línguas distintas, que partilham o mesmo espaço de habitação e este, por sua vez, o mesmo prédio comum, o mesmo edifício e a sua arquitetura, povoados por gente que veio de regiões continentais diferentes e distantes, separadas na sua origem por milhares de quilómetros, e que aí promovem um imprevisto avizinhamento. Perante o imprevisível da realidade, a artista sabe como nos oferecer essa experiência de comunhão e, por essa via, de aceitação multicultural, através das variações multidimensionais desencadeadas pelo efeito de comunicação da sua obra. Do deleite estético à poética observada nas raízes aéreas de uma “monstera deliciosa” – planta vulgarmente conhecida como “costelas de adão” – que se estendem pelo vão ao longo de todos os pisos do prédio, unificando-o simbolicamente, Luciana Fina realiza uma obra de profunda empatia e sensibilidade, onde coabitam em harmonia as dimensões estética, existencial, social e política da sua mensagem de solidariedade (geracional e civilizacional), bem como o questionamento sobre os preconceitos que invadem o espírito europeu, cristalizado, cada vez mais, no medo e na indiferença face ao outro. O outro que, na verdade, somos nós quando com ele conseguimos estabelecer uma relação de disponibilidade concreta. O inferno dos vivos não é uma coisa que virá a existir; se houver um, é o que está aqui, o inferno que habitamos todos os dias, que nós formamos ao estarmos juntos. Há dois modos para não o sofrermos. O primeiro torna-se fácil para muita gente: aceitar o inferno e fazer parte dele a ponto de já não o vermos. O segundo é arriscado e exige uma atenção e uma aprendizagem contínuas: tentar e saber reconhecer, no meio do inferno, quem e o que não é inferno, e fazê-lo viver, e dar-lhe lugar.[4] Quase surpreendemos Luciana Fina em conversa com Calvino. Sempre à escuta, a artista adivinhou o espírito do lugar, deu-lhe corpo e dimensão. Ela que não apenas viveu nesse espaço concreto, como partilhou emoções e leituras sobre as identidades que enriquecem uma ideia na experiência de comunidade. Ela que soube, através da sua arte, criar um lugar de atenção, reconhecimento e alteridade – de vida. Confirma-se, então, a diversidade social como lugar ou potencial de humanidade. Basta estarmos disponíveis para ouvir as vozes e com elas participar na construção de um diálogo que, para além da fantasia, da sua tradução e linguagem formal, sustenta o seu destino na convivialidade real, na capacidade de ir ao encontro do outro e de nós próprios. E assim, Terceiro Andar pode apenas significar o piso onde tudo começou, mas também, de modo paradoxal, o efeito conjuntivo de uma expressão da humanidade nesse lugar representada. O oráculo enganou-se? Nada o garante. Eu interpreto-o deste modo: Marozia [a humanidade] consiste em duas cidades: a do rato [a segregação e a indiferença] e a da andorinha [a liberdade, o compromisso e a solidariedade]; ambas mudam com o tempo; mas não muda a sua relação: a segunda é a que está para se libertar da primeira.[5] Assumamos todos e cada um de nós o seu papel nesta história, neste diálogo de aproximação e conflito permanentes.

Além do sentido e da sua responsabilidade, como podemos percecionar o reconhecimento do espaço que é a nossa cidade, as “cidades invisíveis”, isto é, a nossa casa, onde habitamos? No filme desse “palácio”, ou o edifício (físico e social) que o define, Luciana Fina recorre a imagens que nos seguram a visão mas, de modo mais decisivo, reinventam ainda uma sonorização da narrativa que se arquiteta no realismo das vozes e das ações captadas na partilha desse lugar comum. Sons de ações que revelam ao mesmo tempo uma vivência no imaginário dos detalhes, assim como os passos anunciam os movimentos dos inquilinos pelas escadas, desenhando as linhas (ascendentes e descendentes) desse local necessariamente por todos percorrido, face à ausência de elevador. O som adquire assim um valor estrutural na afirmação deste objeto fílmico. A realizadora propõe-nos uma experiência estética que inclui o poder da visão (entre a dinâmica serena das vozes que evocam os rostos de Fatumata e Aissato, presentes na versão de 2016 como retratos que sorriem, e os longos planos fixos de ângulos do interior do prédio) e o da audição, com o som a impor o ritmo da evolução narrativa, para nos revelar as imagens que criamos a partir dele.

Este é um processo recorrente no trabalho artístico de Luciana Fina, o qual se realiza e estabelece, afinal, enquanto procedimento de singularização. Já em 2013, no vídeo In Media Res – No Meio das Coisas, podíamos perscrutar o espaço arquitetónico de uma estação de metro através do som da sua circulação humana e maquínica – qual deles o mais presente e imperativo na expressão de uma rotina do quotidiano urbano? De novo, seguindo uma voz, a do próprio arquiteto aí evocado, Manuel Tainha, ouvimos um excerto de uma outra narrativa de Calvino sobre o poder do som na rememoração dos espaços vividos: “Se o nosso palácio permanece para nós desconhecido e impossível de conhecer, pode-se tentar reconstruí-lo pedaço a pedaço, situando cada reboliço, cada ataque de tosse num ponto do espaço, imaginando em torno de cada sinal sonoro paredes, tetos, pavimentos, dando forma ao vazio em que os ruídos se propagam e aos obstáculos com que chocam, deixando que sejam os próprios sons a sugerir as imagens.”[6]

Na verdade, Terceiro Andar é um vídeo bastante sonoro, onde os gestos se adivinham a partir dos ruídos ocasionais, mas também dos hábitos que se constroem no dia-a-dia das famílias e de todos os que habitam e soltam a natural quotidianidade de uma vida vivida nas suas casas. Nessa medida, podemos voltar a recuperar a ideia da casa, o “palácio” de cada um, como uma experiência de poiesis (criar e fazer) onde os sons dizem mais do que as imagens ou as palavras. “O palácio é uma construção sonora que ora se dilata ora se contrai, estreita-se como um emaranhado de correntes. Podemos percorrê-lo guiados pelos ecos, localizando rangidos, assobios, imprecações, seguindo respirações, sussurros, rosnados, gorgolejos.”[7] Tal como a nossa própria casa: “o palácio é o corpo do rei. O seu corpo envia-lhe mensagens misteriosas, que acolhe com receio, com ansiedade.”[8] Ou ainda, como ouvimos nesse filme: “O palácio é uma urdidura de sons regulares, sempre iguais, como a batida do coração, do qual se destacam outros sons discordantes, imprevistos. Bate uma porta, onde?, alguém corre pelas escadas, ouve-se um grito sufocado. Passam-se longos minutos de espera. Um assobio longo e agudo ressoa, talvez de uma janela da torre. Responde um outro assobio, de baixo. Depois, silêncio. Existe uma história que liga um ruído a outro? Não conseguimos deixar de procurar um sentido, que talvez se oculte não nos ruídos isolados mas no meio, nas pausas que os separam. E se há uma história, é uma história que lhe diz respeito? Um encadeamento de consequências que acabará por envolvê-lo? Ou trata-se apenas de um episódio indiferente de entre tantos que compõem a vida quotidiana do palácio?”[9]

Como tantos outros que invadem o nosso quotidiano de leituras, o nosso texto segue apenas as hipóteses delineadas pelas etapas da sua própria construção, tal como se ergue uma casa e o seu possível habitar. O testemunho de Manuel Tainha, agora na voz de Luciana Fina, confirma-nos: “O discurso arquitetónico, tal como o discurso verbal, é um discurso que se vai formando à medida que se avança. Tal como nas palavras, as imagens não existem previamente, antes se vão criando, umas atrás das outras, à medida que se compõe e decompõe o discurso.”[10] Desse modo, as “novas cidades invisíveis” são por certo o resultado do discurso construído, do diálogo e do conflito dessas vivências que nele se desenvolvem e declararam. O catálogo das formas é infinito: enquanto houver uma forma que não tenha encontrado a sua cidade, continuarão a nascer novas cidades. Onde as formas esgotam as suas variações e se desfazem, começa o fim das cidades.[11]Por isso, visíveis ou invisíveis, as cidades, os prédios, as casas e as pessoas que nelas habitam serão sempre aquilo que queiramos que elas sejam, isto é, o resultado do trabalho de comunidade que estaremos dispostos a abraçar, do rés-do-chão ao terceiro andar.

 

(versão original in Contemporânea, nº 7, (edição: Eduarda Neves), Lisboa, Making Art Happen, 2021)

 

(imagem: Luciana Fina, Terceiro Andar, instalação vídeo, díptico, 2016)

References
1 Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, (1972), (tradução portuguesa de José Colaço Barreiros e prefácio de Nuno Júdice), Lisboa, Leya – Livros RTP, 2016, p. 146. [nota: todas as citações relativas a este título integram o texto em itálico].
2 Ibidem., p. 145.
3 Ibidem., p. 162.
4 Ibidem. p. 170.
5 Ibidem. p. 162. [nota: o conteúdo dos parêntesis retos é da minha responsabilidade].
6 Leitura do Arqtº Manuel Tainha de um excerto de “Um Rei à Escuta”, último capítulo da obra de Italo Calvino, Sob o Sol do Jaguar, de 1986. Cf. Luciana Fina, In Media Res – No Meio das Coisa, filme vídeo, 2013.
7 Cf. Italo Calvino, Sob o Sol do Jaguar, 1986.
8 Ibidem.
9 Ibidem.
10 Cf. Manuel Tainha, “Textos de Arquitectura”, in Luciana Fina, In Media Res – No Meio das Coisas, filme vídeo, 2013.
11 Italo Calvino, As Cidades Invisíveis, p. 147.