Intencionalmente fantasmagórico, “A Canção mais Triste do Mundo” é um filme bizarro, que não deixa ninguém indiferente. Como estreia comercial no nosso país do realizador canadiano Guy Maddin, esta balada visual de sedução cinéfila aparece-nos, de rompante, como um cartão de visita bastante idiossincrático, perscrutando agressivamente pelos estranhos meandros de uma atmosfera de rememoração, à qual parece no entanto faltar alguma consistência narrativa. Se o simbolismo alusivo ao passado ziguezagueante da Broadway e ao falhado empresário Chester Kent (interpretado por Mark McKinney) faz soar um denso mas interessante sentido nostálgico, onde os fantasmas do antigo mundo do espectáculo convergem vertiginosamente para uma espécie de inevitável depressão (outra metáfora à temporalidade histórica do filme: 1933, em plena Grande Depressão da economia norte-americana), já o alcance da intenção experimental deste exercício fílmico carece de uma unidade mais convincente.
Apesar da inteligente matriz cinéfila, que convoca a tradição a preto e branco do cinema mudo (nomeadamente o cénico e tortuoso expressionismo alemão de Robert Wiene, o hermético jogo de sombras de Josef von Sternberg ou, de outro modo, também presente em Erich von Stroheim), o cinema bizarro dos “monstros” de Tod Browning, ou a atmosfera de inquietação finissecular desenvolvida por David Lynch, Guy Maddin resvala para uma espécie de exibicionismo extravagante, onde faz prova dos seus conhecimentos cinematográficos, sem nunca definir ou alicerçar uma verdadeira estrutura de obra. Por isso, o drama familiar, os triângulos amorosos e os efeitos surpresa desse terror anódino – no exemplo da história quase ridícula de como Lady Port-Huntley (Isabella Rossellini) ficou sem as próprias pernas – não chegam para justificar qualquer pretensão que ultrapasse o exercício de estilo.
Há todavia alguns momentos de requinte excepcional, que confundem uma avaliação de conjunto. Por exemplo, o melancólico e simultaneamente excêntrico concurso que Lady Port-Huntley organiza na sua fábrica de cerveja, com o objectivo de encontrar, num inolvidável confronto musical entre diferentes culturas e povos, a “mais triste canção do mundo”, serve um dos raros momentos de verdadeiro sentimento encantatório neste estranho filme. Aí podemos observar, numa espécie de pseudo-festival da canção, como os países se defrontam, entre o real e o imaginário, a partir de um despique poético, que substitui qualquer intencionalidade bélica mais latente.
Oscilante mas por vezes maravilhoso, como numa longínqua e autêntica feira de antiguidades, “A Canção mais Triste do Mundo” reforça a ideia de que um cinema novo, de expressão intemporal, se apresenta e declara neste início de milénio, ainda que de um modo cru ou pouco elaborado, mas ao qual devemos estar necessariamente atentos. Porém, Guy Maddin estará ainda, por certo, no início do seu caminho, quem sabe em direcção a um cinema maior que, a espaços, podemos já identificar nesta sua primeira verdadeira apresentação ao público do cinema.
“A Canção mais Triste do Mundo” (Canadá, 2003) **
Realização: Guy Maddin
Actores principais: Isabella Rossellini, Mark McKinney, Maria de Medeiros