“Ça suffit”, ouve-se dizer, logo no início do filme, depois de Judith Lerner (Sara Adler) registar uma série de imagens digitais em torno do que ainda não podemos ver: Sarajevo. “Ça suffit”, traduz aqui uma expressão de desespero peremptório, que exige respeito pelo passado, o presente e o futuro da última cidade mártir da Europa. Jean-Luc Godard regressa assim à cidade símbolo do conflito balcânico para questionar, de modo acintoso e “engagé” (como sempre), o valor da imagem na construção do(s) sentido(s). Recuperando a matriz de reflexão das suas “Histoire(s) du Cinéma” (1998) – essa monumental demonstração de que o cinema e o século XX se (con)fundem por completo – Godard questiona verdadeiramente, num dos seus mais belos filmes de sempre, a essência da humanidade, a sua complexa e contraditória plenitude, a sua dualidade e duplicidade, estabelecendo no efeito de campo-contracampo a metáfora maior dessa terrível mas vital divisão do homem entre o Bem e o Mal. Por isso, o filme se divide no tríptico de Dante: Inferno, Purgatório e Paraíso. Repete-se assim a ordem da caminhada das almas, com o realizador francês (de origem suíça) a dar-nos aqui a uma actualização da “Divina Comédia” com o objectivo claro de manter acesa a chama de uma esperança purificadora, de maior consciencialização e memória.
Com efeito, se “a nossa música” é a guerra, o conflito, o matizar da verdade ou da mentira, a força dos vencedores contra a fraqueza dos vencidos, a transmissão entre gerações do ódio e do martírio que nos alimenta fatalmente; se “a nossa música” é a expressão do sofrimento e do sacrifício entre os homens, no barulho da artilharia pesada que nos silencia e ensandece, é também ainda a hipótese de um entendimento entre as partes, no exemplo maior do conflito gravoso entre judeus e palestinianos, entre o sionismo e “jihad” islâmica, o Oriente e o Ocidente. É esse, precisamente, o sentido destas imagens, para lá da ruína e da vida possível da cidade de Sarajevo (símbolo da recuperação dessa antiga polis de cidadãos de credos diferentes), ou para lá da reconstrução da ponte medieval de Mostar, o ícone que identifica uma esperança de diálogo entre as múltiplas fronteiras da Europa e do Mundo.
O campo-contracampo que Godard explica, literalmente, a uma jovem audiência em Sarajevo, no contexto de um “encontro” de escritores para o qual foi convidado, é a raiz de um possível entendimento sobre a diversidade que nos corporiza enquanto sociedade e cultura. Tal como nesse efeito visual determinado por uma vontade de montagem cinematográfica, é sempre na projecção das duas faces da mesma moeda que tudo se joga e jogará humanamente, entre a guerra e a paz, a vida e a morte, o antes e o depois (que antes da invenção da escrita pelos sumérios tinham significados opostos), o eu e o outro, (judeu/cristão; nazi/judeu; judeu/palestiniano…), a acção política (Péricles) e a contemplação do pensamento (Homero), a poesia e a barbárie, o real (Ellsinore) e o imaginário (Hamlet), a resistência e o abandono, a fé e a desesperança. Tudo, mas absolutamente tudo, se resolve no afável abraço do paradoxo, entre o inferno e o paraíso desse nosso destino que hoje exige, mais do que nunca, coragem e reflexão para libertar do declínio os homens destes novos “tempos sombrios”, citando aqui Hannah Arendt, a filósofa alemã judia que inspira, com Maurice Banchot e outros pensadores de Novecentos, a última pérola godardiana.
“Notre Musique/A Nossa Música” (França/Suíça, 2004) *****
Realização: Jean-Luc Godard
Actores principais: Sara Adler e Nade Dieu
(in Vida Ribatejana, 23-2-2005)