2005 Choque frontal David Cronenberg

Choque frontal

 

1. O choque também pode ser um estado emocional ou o resultado de uma experiência extraordinária quando uma fita de cinema nos desperta os sentidos, seja em formulação pró ou contra, libertando dessa forma uma energia que reduz a indiferença pura, essa epigonal sensibilidade que caracteriza a condição pós-moderna.

2. Em Crash há uma consciência plural determinante, por um lado, da contingência das relações multisensoriais hoje inevitavelmente possíveis, mas pouco experienciadas, porque inibidoras, e, por outro, do regime de obsessão pseudo-sentimental que nos ceifa a vida e o sentir mais comum, numa breve alucinação que desorienta subversivamente a distinção entre um presente agonizante e um futuro próximo ainda bastante difuso quanto aos seus valores mais sólidos.

3. Isto é tanto mais reconhecível, se, para argumentar a favor (ou contra) deste filme, recusarmos as evidências reflexivas que têm sido largamente utilizadas tanto pela crítica especializada, como pelo comentário mais comum, como sejam, a assunção do automóvel como símbolo fálico de uma estratégia de identificação de virilidade física e sexual, no domínio mais amplo de definição de um espaço de poder último; ou, ainda, a mais clara assimilação de uma mensagem de progressiva fusão entre o Homem e a Máquina, a natureza e a tecnologia. As variantes morais, essas sim questionáveis, desta mensagem mais imediata, têm sido amplamente referenciadas por outros autores, noutros registos de criatividade artística e filosófica que, apesar de embrionários e reconhecidamente inovadores, não anulam a possibilidade de um novo investimento, uma nova incursão.

4. David Cronenberg dá-nos assim a violência mais «real», quase a fugir da ficção, ao concentrar no acidente o extremo da nossa consciencialização da morte, ou da simples transformação dos valores da vida, numa assunção radical do acidente criado pela nossa racionalidade e tecnologia, contrariamente ao acidente natural (a doença ou a catástrofe), que melhor aceitamos, no quadro de uma profunda alteração condicional. Neste sentido, o acidente de automóvel é, ou pode ser, uma experiência determinante de ruptura no decurso da existência. Ruptura do corpo, do espírito, da consciência da vida, numa transformação que, no filme, implica uma desequilibrada cumplicidade, só possível de concretizar lado a lado com alguém que tenha tido experiência idêntica: o choque.

5. O choque pode aqui ser assumido literalmente, numa conotação simbólica e metafórica que desempenha função essencial, quando nos referimos à lógica minimal e repetitiva do acidente na interpretação deste filme, e na desenfreada psicologização dos regimes comportamentais daí decorrentes que, ao longo  deste século, tem sido constantemente jogada numa analítica geral do ser humano. Mas choque é sobretudo o nível de polémica que a frontalidade do registo do sexo aqui coloca, (numa relação que associa igualmente a noção de acidente como ruptura) expondo o limite da consciência e da hipocrisia, num plano que aproxima, como nunca, a sedução e a perturbação sensorial da imagética pornográfica, sem contudo cair em precipitada vulgaridade, ou na redundância dos registos iconográficos da actual pornografia. Um misto de sensualidade e repugnância é marca sintomática da cadeia de relações sexuais que, na partilha dos parceiros, dilui, em moderada afirmação emocional, as fronteiras de identificação e distinção sexual desses mesmos seres-personagens, numa rotatividade que alimenta um estranho desejo, situável entre a líbido e a estratégia de vibrações perturbantes comuns a esses novos seres tocados pela instantaneidade do choque.

6. A experiência do acidente é, por assim dizer, o núcleo e a energia fundamental de um filme que se impõe como obra cinematográfica maior dos últimos anos, numa afirmação conjunta, por vezes, inverosímil, porque estabelecida à revelia de uma convencionalidade, por um lado, formal, na recusa da inovação artística largamente explorada em décadas (60 e 70) mais predispostas a experimentalismos disciplinares, e, por outro, semântica, na ténue mas pertinente margem de manobra em que os nossos valores morais e éticos são questionados.

 

“Crash” (EUA, 1996) *****
Realização: David Cronenberg

Actores principais: James Spader, entre outros

 

(in Vida Ribatejana, 20-4-2005)