2005 Choque racial Paul Haggis

Choque racial

 

Durante 36 horas, vários personagens de diferentes raças (ou etnias) e culturas entrarão em colisão na cidade-pólvora que é Los Angeles. Tudo começa quando, após um pequeno acidente de viação, um inspector da polícia (Don Cheadle) sussurra à sua colega hispano-americana (Jennifer Esposito) que naquela cidade as pessoas vivem isoladas, numa solidão de aço e betão que só pelo choque pode ser contrariada. Na cidade dos viadutos e das vias-rápidas, as pessoas não vivem o espaço público, perdendo por isso a noção da cidadania, permanecendo escondidas nos bairros residenciais, grandes edifícios vidrados da “city” ou nas longas filas de automóveis, sempre em tensão, no fio da navalha, como um rastilho pronto a atear. Por isso, o choque ou a colisão (física e social) acabam por se revelar uma espécie de libertação, oportunidade para finalmente exteriorizar uma série de sentimentos (rácicos, culturais, humanos ou amorosos) recalcados pela dinâmica cínica de um lugar onde se cruzam de modo desconfiado todas as raças do planeta.

Seguindo o modelo narrativo iniciado em 1928 por King Vidor em “The Crowd/A Multidão” sobre o cruzamento parcelar de vidas captadas na rua, Paul Haggis elabora um mosaico de alta tensão sobre a sociedade de Los Angeles, colando os fragmentos de vida que nessa cidade se cruzam para nos dar uma outra visão do racismo que permanece activo nos Estados Unidos desde os tempos da conquista do Oeste ao pós-11 de Setembro de 2001. Haggis dá-nos uma espécie de traço do destino, onde um casal da elite social de Los Angeles – ele é o Procurador-geral da cidade (Brendan Fraser) e ela uma frustrada dona de casa (Sandra Bullock) – é assaltado por dois jovens negros que não descobriram ainda o seu caminho e encaram a realidade como um jogo de conflito pontuado pela adrenalina e a morte. Um destes assaltantes é precisamente o irmão mais novo do inspector (Cheadle) que mantém uma relação distante e fria com a sua própria mãe (envelhecida e dependente de fármacos). Noutro ponto da cidade, um carro da polícia manda parar um automóvel suspeito de estar envolvido no referido assalto. Mas, apesar de constatar pela matrícula não se tratar dos fugitivos, o polícia que lidera a equipa (Matt Dillon) não perde a oportunidade de humilhar o casal de negros (também de uma certa elite) que nesse carro circulava em direcção a casa, assediando a mulher (Thandie Newton) em frente do marido (Terrence Howard) no intuito de vincar uma superioridade racial, instrumentalizada em prol de um hipotético excesso de zelo. O colega de Matt Dillon discorda das suas atitudes e abusos racistas, pedindo ao seu superior hierárquico que o transfira para uma outra equipa. Quando Matt Dillon se despede dele diz-lhe apenas que não julgue saber tudo sobre a ética ou moral do ofício, pois a realidade ainda lhe irá demonstrar o contrário. E, na verdade, esse jovem polícia estará envolvido na maior tragédia desta história, a morte (por desconfiança racista) do jovem assaltante irmão do inspector portagonizado por Don Cheadle. De outro modo, também Dillon ver-se-á envolvido numa operação de salvamento, após um violento acidente, da mulher que horas antes havia abusado. Um e outro ficam atónitos pelo surpreendente rumo do destino, mas aceitam-no como prova do humanismo que se esconde em todas as pessoas. Muitas outras histórias se entrecruzam neste jogo do gato e do rato, em que todos vivem à flor da pele e julgam saber das suas convicções como algo inabalável. O filme de Paul Haggis lembra-nos assim que a vida pode dar muitas voltas e mesmo perante a tensão dramática ou a frustração das nossas ideias ainda nos resta o lado humano da redenção e da paz, mesmo se para isso tenhamos de recorrer à colisão física e espiritual com os nossos semelhantes. Este é um filme obrigatório para todos aqueles que se deixaram “arrastar” pela demanda racista do famoso “arrastão” na praia de Carcavelos. Na verdade, a vida é sempre mais complexa do que aquilo que dela podemos saber ou experienciar através de “reportagens” da comunicação social.

 

“Crash/Colisão” (EUA, Alemanha, 2004) ***

Realização: Paul Haggis

Actores principais: Matt Dillon, Brendan Fraser, Don Cheadle, Sandra Bullock, Jennifer Esposito, Thandie Newton e Terrence Howard.