2005 cinco cenas a dois François Ozon

cinco cenas a dois

 

Ainda que este filme não possa ser reduzido ao resultado da soma das suas (cinco) partes, a sua unidade ferve de desalento contemporâneo, na pele de uma conjugalidade comum e por isso mais atroz. Humano, demasiado humano, assim se poderia sintetizar o fio de mensagem que se espraia neste “5×2” de François Ozon. O realizador francês que mais filmou nos últimos anos, com destaque para “Oito Mulheres” e “Swimming Pool”, dá-nos aqui uma perspectiva amarga de uma banal relação a dois, na medida em que se aproxima de um realismo quotidiano imediatamente identificável. Um casal, uma história como tantas outras, e uma espiral imperfeita que aponta para essa vida normal e sem excepção que sabemos existir (potencialmente, pelo menos) em todos nós, servem aqui para enredar uma narrativa montada no reverso da sua sequência cronológica. Comungando desse efeito de puzzle apresentado por Christopher Nolan em “Memento” e Gaspar Noé em “Irreversível”, Ozon sublinha uma espécie de inevitabilidade trágica, tornando evidente o sentido do nosso destino, como se tudo pudesse afinal ser contado de trás para a frente ou vice-versa, como se em cada momento da nossa vida estivesse já presente a marca do fim. Correndo veloz por essa estrada, cada cena apresenta um estádio de evolução no relacionamento desses personagens – muito bem agarrados pela dupla Valeria Tedeschi e Stéphane Freiss – que formam, por algum tempo, um casal (im)perfeito. Por sua vez, o valor realista da transparência na construção dos personagens está ausente não só destas imagens como da narrativa construída em torno delas, como se as inflexões temporais estivessem ali para acentuar ainda as afectações sentimentais desse casal improvável que o acaso, como sempre acontece, acabou por juntar. Mas em todos os passos retorcidos desse caminho, há uma névoa que inviabiliza qualquer sentido mais esperançoso e consequente. Os personagens permanecem opacos, distantes e confusos, como a vida dos nossos dias, onde as certezas e as convicções se colam não tanto ao desejo, mas a um dever demasiado pesado e incoerente. Ozon parece dizer com esta história de paixão, amor e ruptura final, que a felicidade não passa na verdade de uma ilusão maior e sem lugar num projecto contratual de casamento. Aliás, entre a cena primeira da leitura do processo de divórcio, em que se apresenta a lista e forma de uma relação legal, e a cena final de um pôr-do-sol que une o novo casal, há uma estreita ligação narrativa pontuada pelo sintoma de desgosto do qual os personagens parecem não poder escapar, apesar de todos os esforços, e que atravessa por dentro todas as fases identificadas como normais na assunção de uma vida a dois. De outro modo, o desespero estampado no rosto dele quando ela lhe fecha a porta para sempre, logo na cena inicial, após uma última relação entre os corpos amantes, entronca no cenário desse fim de tarde falsamente edílico, pois o sol que cai sobre a paisagem não traduz apenas o final comum de mais um dia, como metaforiza ainda o ocaso triste de mais uma relação amorosa. No fim ou no seu início, esta é sempre a história de uma vida de mágoa, solidão, traições e cobardias, metonímia de um mundo de incomunicabilidade e desilusão. Pena é que a destreza e o diletantismo formal de François Ozon, assentes ainda numa bela e doce selecção musical de expressão italiana, não tenham ajudado a construir um filme mais ousado e marcante ao nível emocional, quando o tema, na verdade, assim o exigia.

 

“5×2” (França, 2004) ***
Realização: François Ozon

Actores principais: Valeria Bruni Tedeschi e Stéphane Freiss

 

(in Vida Ribatejana, 16-2-2005)