2012 Colecionar, acumular, esgotar: o objeto de arte e as armadilhas da posse

Colecionar, acumular, esgotar: o objeto de arte

 

A História que nos conduz e determina tem mais a forma de uma guerra do que a de uma linguagem: relações de poder, não relações de significado. A História não tem significado, embora isto não queira dizer que seja absurda ou incoerente.

Michel Foucault

 

 

Na imagem perene do primeiro livro da Bíblia, o “Génesis”, no princípio era o caos, as trevas e o mistério. A natureza encarregava-se de indiferenciar o homem dos restantes animais da Terra, como se a memória fosse ainda uma faculdade apátrida do ser humano, e a vida algo privado de valor para da sua história se guardar e transmitir o essencial. Apesar do relato de algumas experiências que revelavam já, há milhares de anos, o interesse e a constituição efetiva de coleções, como na Antiga Babilónia e em Alexandria, a humanidade demorou até despertar para a preservação continuada da sua memória, da linguagem, ou dos objetos e artefactos que a acompanharam ao longo dos tempos. É certo que, desde o Paleolítico, vários foram os grupos humanos que, em cerimónias fúnebres, religiosas ou espirituais, fizeram das suas crenças e ambições em torno de outras vidas futuras uma forma muito particular de deixar a sua marca neste mundo. Muitos foram os reis, xamãs ou líderes de comunidade que partiram desta vida rodeados de artefactos valiosos como forma mais ousada de garantir um lugar no além. Em termos gerais, porém, a preservação da memória das civilizações pré-clássicas desenvolveu-se respeitando uma lógica tão dinâmica quanto efémera (pelo menos em termos materiais, pois na sua dimensão imaterial foi muitas vezes permanente, resistindo em parte até aos nossos dias) sobre a herança histórica do seu passado, caracterizada essencialmente pelo uso da tradição narrativa, primeiro oral e depois escrita (com a civilização suméria a desenvolver a primeira escrita cuneiforme). Mas o uso da narrativa moralizante, apesar de lançar a esperança e um conjunto de “virtudes” sobre o futuro das civilizações, mantinha sobretudo acesa a construção da identidade coletiva a partir do mito e da lenda épica. Assim foi nas histórias de Heródoto, Tucídides e Tácito, ou nos poemas épicos de Homero e Virgílio, ou ainda também em todas as histórias escritas pelos vencedores de guerras ou outros conflitos religiosos e civilizacionais. A noção de verdade esteve sempre associada aos valores e à moral de quem vence a contenda e narra a seu prazer e conveniência a memória do passado. Por outro lado, essa memória manteve-se até ao Iluminismo do século XVIII dependente da palavra ou do verbo, como se outras fontes de análise histórica e de civilização na verdade não existissem. Os conceitos de razão natural e objetividade analítica desenvolvem-se fundamentalmente a partir da Idade Moderna, quando os homens do Renascimento abrem a porta à pedagogia da veracidade dos documentos e de outras fontes do discurso histórico, após os primeiros contatos com as novas civilizações pré-colombianas e com uma geografia do mundo que contrariava, pelo método experimental, a grande maioria dos textos históricos e religiosos herdados dos antigos. A partir de então, a história, enquanto registo e memória de acontecimentos passados, caminhou para uma progressiva desteologização do seu sentido, mantendo contudo o valor moral e político da sua função identitária, assumindo já, no entanto, durante o século XVIII, os valores de uma interpretação e análise mais plurais e objetivas, com recurso finalmente a metodologias de carácter sobretudo científico.

Para lá da palavra (oral e escrita) outros sistemas testemunhais ajudaram à construção do passado e à sua preservação. Se na Grécia Antiga existiam já coleções de obras de arte, entendidas como acumulação de objetos valiosos que se guardavam nos palácios e templos (das musas), provenientes na sua maioria de doações votivas ou despojos de guerra, os Romanos estabeleceram o costume, ainda longe contudo da ideia de museu, de exibir em lugares públicos os objetos de arte adquiridos durante as suas campanhas. E se durante a Idade Média a Igreja fomentou, com a acumulação de relíquias, livros de horas, documentos escritos e obras de arte – que serviam os rituais da liturgia e a comunhão religiosa – o desenvolvimento do hábito de colecionar, impulsionado igualmente pela criação de importantes coleções particulares, foi com o Renascimento que principiou o gosto pela compilação de antiguidades que serviam de modelo e inspiração, e que passaram a fazer parte de uma certa ideia de património, aquele construído e reunido sob a proteção e engenho de aristocratas, altos dignitários da Igreja e reis, déspotas mais ou menos iluminados.

Porém, com a consolidação do poder económico e social da burguesia mercantil nos séculos XV e XVI, colecionar converte-se, aos poucos, num exercício mais  plural, tendencialmente diversificado e multidimensional. Os cabinets de curiositées – inicialmente organizados sob dois grandes eixos: a “naturalia” (coisas da natureza) e a “artificialia” (objectos criados pelo homem) – alimentavam então a curiosidade, a reflexão e o saber, constituindo assim a base dos valores futuros do experimentalismo e do progresso humanista.  De outro modo, esse “museu privado” e o laboratório de experiências e observações que ele significava seria ampliado, entre o final do século XVII e a segunda metade do século XVIII, à dimensão de um espaço institucional, aberto a cientistas e estudantes que viam crescer o seu entusiasmo em torno do racionalismo. Desse modo, uma nova ideia de “museu” assumia um propósito universal, associado à instrução daqueles que buscavam na natureza e nas produções humanas um sentido extra religioso. Os primeiros museus a responder a esse desejo foram, em Basileia e em Oxford, os universitários Kunstmuseum (1661)[1] e Ashmolean Museum of Art and Archaeology  (1683). Depois, em Londres, quase cem anos mais tarde, surgirá o Britsh Museum (1753) e, por fim, em Paris, o Musée du Louvre (1793). Aí se alimentava uma crescente paixão pela catalogação e análise de objetos ou artefatos das mais diversas tipologias, origens e proveniências. Ao mesmo tempo, nessa época, outros hábitos e gostos culturais, como as viagens de estudo pela Europa Antiga e em ruínas que o Sul e o Mediterrâneo podiam oferecer, conduzem as elites à defesa de uma ideia de progresso apoiada na valorização da cultura artística e científica, no pensamento e na descrição atenta da realidade. Com a proliferação no século XIX da educação pelos museus e pela ciência, o homem herdeiro do Iluminismo procurava uma virtude maior, ou uma moral universal, apostado desde a publicação do primeiro volume da Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, em 1751, no valor da divulgação dos saberes científicos, assumidos nessa época como um conjunto de resultados provenientes do uso da razão que não só pareciam eternos e inquestionáveis, como prometiam uma espécie de novo messianismo. Como afirmara Condorcet, o mundo ocidental esperava finalmente alcançar “a destruição da desigualdade entre as nações, os progressos da igualdade num mesmo povo, enfim, o aperfeiçoamento real do Homem.”[2]

Os museus e o seu paradigma progressista de transmissão do saber científico e da cultura artística dominaram todo o século XIX, ao ponto de, nessa altura, o escritor Victor Hugo anunciar o futuro radioso do Museu do Louvre como uma autêntica “Meca da inteligência”, aonde viriam, em peregrinação, todos os seres humanos tocados pelo espírito e a luz da razão.

Mas, perante essa herança iluminista, demasiado presa, contudo, a uma interpretação linear, vertical ou diacrónica dos fenómenos, e apesar de, contrariando os efeitos nefastos de duas guerras mundiais, a primeira metade do século XX assistir ao aprofundamento do desígnio humanista em torno do colecionismo e da exibição museológica da obra de arte, a estratégia mais recente de alguns museus ou centros de arte contemporânea passou a valorizar outras formas de relacionamento e fruição artística. Mesmo que as provocações neovanguardistas dos anos 60 e 70 tenham, como defende Douglas Crimp, “ameaçado” de ruína o sistema dos museus, nas últimas décadas muitas foram as adesões a um novo e poderosíssimo sistema cultural, baseado na definitiva industrialização do saber, entendido então sobretudo como lazer e divertimento. Este processo tem sido combinado com a progressiva massificação do próprio meio artístico internacional. No final dos anos 70, os primeiros sinais foram dados por Pontus Hulten e as mega-exposições do Centre George Pompidou, em Paris. Já nos anos 90 e 2000, o Guggenheim de Bilbau ou a nova Tate Modern (Londres), exponenciaram decisivamente essa estratégia de livre circulação no espaço museológico. A fruição da obra de arte realiza-se hoje, cada vez mais, sem qualquer vínculo específico à história da arte ou a interpretações pré-estabelecidas. Isto é, tanto a sucursal basca dirigida pela política globalizadora da multinacional Guggenheim como a Tate liderada por Nicholas Serota criaram circuitos menos determinados pela curadoria ou pela formalização da teoria da arte, concedendo assim, aparentemente, maior liberdade de movimentos e experiências ao público visitante, deixando-o literalmente à sua sorte no contacto com a obra de arte moderna e contemporânea.[3] Esta opção pretende alertar para os perigos de uma curadoria determinista, mais preocupada em acentuar os regimes discursivos que enformam uma certa visão das coisas, projectando assim uma espécie de perpetuação legitimadora dos regimes de poder que se escondem nesses mesmos discursos ou interpretações.[4]

Paradoxalmente, e apesar da aparente conquista de público promovida por esses modos alternativos de exposição – responsáveis pela transformação do tradicional espaço museológico numa espécie de hípermuseu onde é possível passar dias inteiros e fazer quase tudo, tal como nos grandes centros comerciais – mais condizentes afinal com a conversão do domínio da arte em mais um puro fenómeno de massas e de consumo globalizado, a pedagogia do olhar e a arte moderna permanecem ainda hoje como paradigmas da maior parte das instituições ligadas ao fenómeno artístico contemporâneo, tendo como desafio cada vez mais presente – e tomando uma terminologia cara a Nicholas Serota – uma tomada de posição entre o predomínio da experiência ou o da interpretação.[5]

A clivagem dialética que desta forma se estabelece entre o domínio da comunicação individual, mais indisciplinada e sensorial (defendida pelas indústrias culturais que progressivamente vêm convertendo os museus ou centros de arte contemporânea em mais um elemento de promoção turística) e a comunicação partilhada pela disciplina de uma compreensão que para além dos sentidos exigirá também, necessariamente, uma dimensão intelectual, mais dependente da produção de discursos e conhecimentos projectados em torno dos receptores da obra de arte, resulta assim na característica essencial dos sistemas de exibição na nossa contemporaneidade. A adaptação dos valores economicistas e da globalização chegou finalmente ao meio artístico, abalando de modo decisivo um sistema baseado na curadoria e nos seus discursos de legitimação. No fundo, é a esquizofrenia do capitalismo tardio a impor o seu universo totalizador, onde ao saber construído e estrutural se prefere a proliferação estonteante das possibilidades fragmentadas, promovendo ao Olimpo da arte a angústia e a insatisfação da prática consumista. Assim, liberdade confunde-se necessariamente com arbitrariedade, e todos os discursos ou conhecimentos se reduzem a uma espécie de acessório dispensável. O essencial é o prazer, como expansão do entertainment hollywoodiano a todas a esfera da produção cultural. Depois do cinema, é a arte contemporânea a sofrer o estigma uniformizador da globalização, sendo por isso urgente compreender a ação e o propósito ético de algumas vozes discordantes mas persistentes, simbolizadas hoje pela ação de um cineasta maior como Jean-Luc Godard. Só atendendo ao valor contracorrente destas e de outras bolsas de resistência, a cultura poderá assumir o valor essencial da sua pluralidade discursiva e criativa, escapando assim aos efeitos mais devastadores da globalização, isto é, à sua tendência para anular as diferenças – ainda que o próprio conceito de “diferença” tenha sido entretanto desmistificado por Gilles Deleuze.[6] Se a condição pós-moderna trouxe, tal como defende Jean-François Lyotard, um enfraquecimento acentuado das grandes narrativas legitimadoras (da História ao saber científico), torna-se necessário e urgente inviabilizar o crescimento desregulado de uma globalização cada vez mais omnipresente. Iniciado o processo de massificação global da humanidade pela mundialização dos mercados e da economia, hoje os resultados expansionistas da globalização e das chamadas indústrias culturais começam a suscitar dúvidas ou posições contrárias em relação a essa espécie de uniformização – baseada no desenvolvimento exponencial de uma forte estratégia consumista – de todos os domínios da ação e do pensamento humanos.[7]

Do caos ao museu, ou da pretensa ruína deste ao consumismo desregrado dos híper-museus contemporâneos e da industrialização da cultura, permanece ainda, aparentemente, um suave e desorientado desejo de preservação dessa memória coletiva que assumimos hoje como indefinida, desestruturada, e sobretudo privada de qualquer leitura universal. Confirma-se assim, desse modo, a ironia flaubertiana sobre o racionalismo desmedido de “Bouvard e Pécuchet”, espelho particularíssimo ou grotesca caracterização da sociedade ocidental dos finais do século XIX. Ontem como hoje, o colecionismo de objetos culturais mantém o seu estatuto de identificação memorialista, assumindo agora, cada vez mais, laivos de esquizofrenia coletiva perante a generalização da sua prática, quer em termos institucionais como a nível privado. A cada cidade, uma coleção. Ou ainda, a cada pessoa, uma coleção. O esforço e os resultados de comunicação do valor de cada uma delas surge esmagado, no entanto, pelo seu efeito de crescimento e pluralização, reflexo afinal de uma espécie de democratização do saber ou do acesso generalizado ao crédito financeiro antes confinado a poucos. Hoje, no plano de uma crise económica, política e social acentuada pela indefinição dos planos de resgate e outras terminologias temporárias, o ímpeto de colecionar obras de arte parece adquirir, em certos sectores e geografias, alguns sintomas de enfraquecimento, entre as restrições de ordem financeira e o receio de estagnação ao nível da sua valorização futura. Apesar de tudo, há quem garanta que o investimento em arte mantém intocáveis as suas virtudes, inclusive como uma das boas práticas de circulação de valor.

Em todos os ziguezagues de interpretação que o tema suscita prevalece a ideia de esgotamento, de que caminhamos sem rumo, perdidos entre as armadilhas da posse, a memória dos hábitos consumistas do passado recente e a sua readaptação possível aos nossos tempos, desenhando ainda a atmosfera de uma rutura, ao mesmo tempo iminente mas distante, que ameaça, todavia, como fronteira de desidentificação, a nossa própria condição civilizacional. Se no princípio era o caos e o mistério, assistimos hoje a um sentimento de inesperada e estranha continuidade, conscientes, porém, e cada vez mais, da irresolubilidade dessa tarefa de desocultação que perecia destinada ao ser humano na sua relação com a vida e a natureza. Apesar de todos os esforços e experiências em torno da ordenação sapiente do caos, é o mistério que alimenta, como sempre alimentou, o sonho e a ação da humanidade, pois perante a “prova” do saber ressalta o desinteresse ou a estagnação como paradoxal preenchimento do vazio. Por isso, o mistério mantém uma aura impulsionadora. Se com ele convivemos ao longo de milénios, com ele manteremos por muito tempo, ou para todo o sempre, o inevitável jogo da significação.

 

 

[versão original, in AAVV, Collecting, Collections and Concepts – Uma viagem iconoclasta por coleções de coisas em forma de assim, (projecto de curadoria de Paulo Mendes), Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura, 2013.]

 

References
1 O Museu das Belas Artes (Kunstmuseum) de Basileia, na Suíça, constituiu-se com base na aquisição do Gabinete Bonifacius Amerbach, um colecionador Humanista da Pré-Reforma, convertendo Basileia na primeira cidade europeia a possuir uma coleção de arte aberta parcialmente ao público.
2 Cf. Condorcet, Ensaio de um Quadro dos Progressos do Espírito Humano, (1ª edição), 1795.
3 Cf. Nicholas Serota, Experience or Interpretation. The Dilemma of Museums of Modern Art, Londres, Thames & Hudson, 2000.
4 Cf. Michel Foucault, op. cit., e ainda do mesmo autor, L’Archeologie du savoir, Gallimard, 1969.
5 Cf. Nicholas Serrota, op. cit.
6 Cf. Gilles Deleuze, Diferença e Repetição, (tradução português do Brasil de Luiz Orlandi e Roberto Machado – revista para Portugal por Manuel Dias), prefácio de José Gil, Lisboa, Relógio D’Água, 2000.
7 Cf. Jean Baudrillard, A Sociedade de Consumo, (trad. port. de Artur Morão), Lisboa, Edições 70, 1995.