A minha vida é uma colagem.[1]
Ernesto de Sousa, 1987
Em 1980, ancorado no desejo de uma coerência existencial, na comunhão da arte e da sua reflexão ativa, Ernesto de Sousa afirmava, em conversa com Leonel Moura para o suplemento cultural d’O Globo: «O acto criativo não é um ato isolado. A teoria vem daí. Da necessidade de estabelecer pontes. Não vejo contradição nenhuma entre a minha atitude actual e quando eu defendia o neo-realismo. Quando defendia o neo-realismo, por um lado, defendia a vanguarda, a questão da vanguarda não está a pôr-se… mas eu continuo a ser neo-realista, num certo sentido»[2]. Face a esta indeterminação final, apetece perguntar, mas em que sentido Ernesto de Sousa assumia continuar a ser um neorrealista, num momento histórico em que afirmá-lo publicamente não estava de acordo com o sistema artístico português? Esse sentido era, por um lado, como defende em discurso direto, o de «(…) uma acepção mais geral, que é realmente aquela que sempre adoptei e que se confunde hoje, para mim, com o pragmatismo. Com a eficiência daquilo que se faz, ir direito às coisas»[3]; por outro, ligava-se ao compromisso inabalável com a intervenção da arte na sociedade, isto é, na sensibilidade e no intelecto de todos aqueles que se envolviam nessa época com a atividade artística e com as esperanças de uma vida melhor, tal como cerca de 40 anos antes os observadores das pinturas e dos desenhos de Júlio Pomar, Lima de Freitas, Moniz Pereira, Vespeira ou Manuel Ribeiro de Pavia, entre outros, sentiam através destas uma transformação da sua consciência política sobre o lugar que ocupavam na sociedade e a exigência de uma inversão da sua aparente imobilidade.
Mais, Ernesto de Sousa ousava aqui, de modo consciente, a ligação hoje quase inusitada entre vanguarda e neorrealismo, porque neles identificava uma correspondência de valores e postura ética, vontade, pioneirismo e coragem cívica. Em simultâneo, sugeria ainda uma outra espécie de ligação «(…) íntima e secreta» (como diria Baudelaire[4]) entre os dois momentos, pois sempre defendeu, no tempo certo, o neorrealismo português como uma vanguarda, em parte herdeira do espírito de rutura do primeiro modernismo em Portugal, anunciado pelo Futurismo e sobretudo pela ânsia de intervenção de Almada Negreiros. Por outro lado, uma vez mais em contracorrente, Ernesto de Sousa assumia já, no seu discurso crítico de meados da década de 40, o neorrealismo como momento alto da arte moderna, cuja ação não só contribuia de modo decisivo para a experiência formal e artística através da denúncia social, como prometia um novo capítulo na construção da identidade portuguesa e da sua ideia particular de universalidade, do seu contributo à grande história da arte ocidental, tal como 500 anos antes o havia garantido a pintura dos “Primitivos Portugueses”.
No cerne desse original exercício de ligações entre o passado e o presente está “a necessidade de estabelecer pontes”, seja como tarefa intrínseca ao trabalho teórico e crítico, cuja origem pressupõe já uma transmissibilidade, seja na ação vital de organizar e congregar vontades em exposições coletivas como a Alternativa Zero, realizada em 1977, na Galeria Nacional de Belém. Prevalece em ambas a vontade de comunicar, de superar o “isolamento” e criar laços de intersubjetividade com o recetor do texto crítico ou da obra de arte. Se há argumento que apoia uma transversalidade permanente em toda a obra teórica e prática de Ernesto de Sousa é o sentido urgente da partilha e a vitalidade do encontro entre emissor e recetor da mensagem (crítica ou artística), convertidos, nessa expressão ativa de comunhão, num só elemento propulsor de significados, capaz de produzir uma lógica de intervenção que passa, antes de mais, pela capacidade de transformação de uma sensibilidade individual numa ação potencialmente coletiva, ou seja, ampliada a todos os que se disponibilizem à sua dinâmica reconfiguração.
Mas, afinal, que visão do neorrealismo veiculava Ernesto de Sousa nos seus primeiros textos de crítica de arte, publicados na Seara Nova e no Mundo Literário? E que neorrealismo pôde o autor observar retrospectivamente, quando em 1965 publicou A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953), o primeiro ensaio de revisão sobre o seu lugar histórico, nesse título seminal que é também, e desde logo, a melhor reflexão sobre o alcance e os limites do movimento no domínio das artes plásticas? Centremos, por isso, a nossa exegese sobre as mudanças verificadas no pensamento do autor entre a sua defesa entusiástica do neorrealismo como um possível contributo à universalidade da arte portuguesa, observada no artigo inaugural (assim como em alguns outros, publicados até final de 1946), e a maturidade distanciada desse ensaio que 20 anos depois produzirá para a edição da Artis, mais reflexivo, duradouro e influente nos estudos sobre os efeitos do realismo social em Portugal.
1. Da universalidade na pintura portuguesa
A convite de Fernando Lopes-Graça, Ernesto de Sousa publica na revista Seara Nova[5], a 22 de junho de 1946, o seu primeiro artigo sobre a “nova” pintura que se impunha a cada dia, pela sua urgência de comunicação e despertar social, no contexto de esperança política do imediato pós-Segunda Guerra Mundial. Ainda sem assumir a designação de “artista neorrealista” – preferindo destacar a ideia do “artista” que é “determinado” pela “sociedade” em que vive e pelo seu “momento histórico” – o texto não deixa dúvidas quanto às suas referências, ao ser ilustrado com reproduções de desenhos originais de João Moniz Pereira, Julio Pomar e Fernando Azevedo. Nele, o jovem crítico acentua a necessidade de a arte produzida sob esse novo impulso e motivação dever ser pensada, desde logo, como hipótese de integração futura no valor histórico e mais amplo de uma verdadeira “universalidade na pintura portuguesa”.
As palavras iniciais dessa reflexão que, desde aí, distinguirá o olhar do crítico do dos seus pares (assim como da ortodoxia neorrealista, mais niilista e contrária a qualquer ligação ao passado), esclarecem, como espécie de introdução, a ideia de que o artista é, antes de mais, um ser humano que participa, com o seu labor, na vida social que o envolve, assim como dela recebe os estímulos e as condições que determinam a sua ação: «O pintor, como homem e como artista, resulta do meio. A sua obra deve ser o produto imediato da necessidade que ele tem de pintar. Quer dizer que em determinado momento histórico, o homem que é o artista (pintor no nosso caso), se situa na sociedade em que vive, nitidamente; não é um ser especial, àparte, depende integralmente das relações que ele, a sua família, a sua classe, o seu país, mantêm com as outras pessoas, famílias, classes e países que, com os primeiros, se interpenetram»[6]. Em suma, tudo na vida implica com o trabalho artístico, mesmo que até aí uma ideia romântica e demiúrgica do seu fazer prevalecesse no sistema artístico e nos seus meios reflexivos. Acrescenta o crítico: «Os estádios e perturbações, económicas, sociais, políticas, etc., que solicitam o seu país, a sua classe, condicionam a sua maneira de ser, o seu modo de encarar os problemas. Nada é imóvel: a sua moral, por exemplo, está em íntima relação com a fase evolutiva que atravessa a sociedade a que pertence. As suas atitudes e ideias, estéticas, filosóficas, etc., também. Seria todavia irreflexão supor que estas relações se processam em linha recta, que há paralelismo entre as várias partes»[7]. Nestas primeiras linhas, Ernesto de Sousa elucida-nos acerca da sua visão sobre a infuência do “contexto”, revelando-se desde logo um progressista, claramente marcado pelo “materialismo dialético”[8] e pela tese marxista da “luta de classes”. O “homem-artista” está integrado na grande máquina económica e social e deve dessa realidade ter consciência, para melhor exercer a função transformadora que lhe cabe, mediante a moral e a responsabilidade que manifesta a cada momento ou resultado do seu trabalho.
A um nível superior, mas subterrâneo, os diferentes índices de desenvolvimento dos países interferem, de modo decisivo, na qualidade e, por essa via, no contributo da arte às respectivas sociedades: «Suponhamos, por exemplo, uma sociedade que se atrasa, em relação a uma ou várias com quem esteja em contacto, no nível económico, social, político, etc. (tudo aspectos de fenómenos essencialmente os mesmos). É evidente que as atitudes e ideias, morais, estéticas, filosóficas, etc., do pintor (o mesmo se diria do artista em geral) pertencente à sociedade em atraso, deixam de estar em relação imediata com o ambiente nacional (com os problemas económicos, sociais, etc., próprios), se ele quiser manter-se em contacto com a vanguarda artística das nações mais adiantadas porque começará a sofrer influências cada vez mais fortes, de ambientes estranhos, para os quais aqueles problemas são necessariamente diferentes»[9]. Neste sentido, Ernesto de Sousa aponta a uma relação direta entre o “atraso” de uma sociedade e a impossibilidade da sua expressão enquanto “vanguarda artística”, refletindo-se essa mesma dinâmica no distanciamento do artista relativamente ao “ambiente nacional” e às suas “necessidades” ou imanências, se optar apenas por acompanhar algumas das realizações vanguardistas identificadas fora do seu país, o que trará alterações à sua obra, em prejuízo da “qualidade”.
Como explicará o crítico: «Por outras palavras, a obra do pintor deixa de ser um produto imediato da necessidade que ele tem de pintar. Ora, se era essa necessidade que o faria pintar de certa maneira, o quanto ela é realmente a razão da sua obra, é que determina a qualidade. Essa certa maneira classifica a obra do ponto de vista técnico-estético; a qualidade é o valor local e universal dela»[10]- Isto é, a obra será de “qualidade” quando identificada com o “local”, com a “necessidade” que a determina nesse contexto específico, por isso mais próximo de um contributo ao conjunto “universal”, e não por qualquer espécie de mimetismo importado, mesmo que inspirado em práticas de vanguarda. Afinal, «(…) a qualidade, distância maior ou menor entre a necessidade de pintar e a própria pintura, é o expoente do seu interesse local e universal»[11]. Ou ainda, em resumo: «(…) para que seja alta a qualidade da sua obra (para que, mesmo quando de interesse exclusivamente local, seja de valor universal), o pintor tem que ser sincero. É claro que isso não é, finalmente, um acto de vontade e, assim, a curva das sujeições ao momento histórico completa-se»[12].
A “sinceridade” resulta então das “sujeições” da vontade do artista e da sua prática concreta ao “momento histórico” que as determina. Com originalidade e ousadia, Ernesto de Sousa teoriza sobre as condições de intervenção da arte a um nível simultaneamente histórico e social, possível apenas quando a arte funda a sua prática em valores de “qualidade” “sincera” e “local”, e estes se potenciam enquanto amplificação hipoteticamente “universal”. O crítico apela desse modo à consciencialização dos artistas sobre as limitações biológicas, personalitárias, históricas e sociais que influenciam a sua liberdade e a sua capacidade criativa, com a consequente determinação sobre o grau de “qualidade” final da obra de arte: «Entretanto, será bom adiantar alguma coisa sobre o que se refere à personalidade e à influência que ela pode ter e, principalmente, até que ponto o grau de consciência destas leis históricas pode influir na qualidade. A este respeito pode argumentar-se, em primeiro lugar, que o homem tem um grau de liberdade em tal sistema de coordenadas: as razões biológicas da sua maneira de ser… Porém, tal grau de liberdade não é mais que pura ilusão, porque por muito variado que o homem possa ser, biologicamente, nunca poderá sair fora de um extenso mas limitado domínio que a sociedade em tal momento lhe impõe: as suas qualidades ficarão subordinadas às possibilidades que determinado meio, em determinado momento, lhe oferece, e lhe limita o domínio dos actos, tendências, ideias, etc. As suas antecipações, causa aparente, por vezes, de novos géneros, escolas, correntes artísticas, são de facto o ponto de passagem necessário de uma transformação necessária. Quanto ao grau de consciência das próprias leis históricas, é evidente que, tanto quanto o resto, depende das mesmíssimas condições e assim alinhará ao lado dos outros factores; é verdade porém que a certa altura a sua importância poderá ser excepcional e então a quantidade transformar-se-á em qualidade…»[13].
Por isso, Ernesto de Sousa encontrará nos pintores fundadores da pintura artística portuguesa, os chamados “Primitivos Portugueses”, o exemplo concreto dessa relação de mútua influência entre, poderíamos afirmar, a “super estrutura” (acontecimentos nacionais relevantes à escala mundial) e a “infra-estrutura” (a produção artística do período correspondente) que determina a afirmação da arte, a sua “qualidade” e o seu contributo à escala local e universal: «Se passarmos em revista rápida as fases da nossa pintura, creio que colheremos confirmação do que ficou dito. Ao contrário do que muita gente ainda julga, a pintura portuguesa da segunda metade do século XV e a primeira do século XVI não foi simples “eco de correntes artísticas nascidas e criadas lá fora”… porque pode haver influência e até adopção de processos e estilos sem que haja submissão. Nuno Gonçalves é um caso absolutamente inédito na sua época – outros se lhe podem juntar; e, todavia, foi de facto um curto momento de independência. Ora, não é por acaso que tal florescimento da pintura portuguesa é contemporâneo de acontecimentos nacionais de importância decisiva universal: a conquista de novos mercados está nas premissas do desenvolvimento posterior da sociedade europeia. Nessa altura, em que os acontecimentos nacionais são acontecimentos de importância universal – compreende-se que, pelo menos em certos sectores da arte (pintura), as obras fossem o produto imediato da necessidade que o artista tem em sê-lo. Entretanto, os problemas nacionais passaram a segundo plano, ou talvez ainda para ir mais longe, como factores decisivos na evolução económico-social; e, até hoje, o valor universal da nossa arte diminuiu e desapareceu»[14].
Nessa medida se compreenderá a leitura de Ernesto de Sousa sobre o longo período no qual a arte portuguesa, em paralelo à diminuta ação política e científica do país, deixa de alcançar uma dimensão universal, identificando-o com uma fase de inequívoca “decadência”, com consequências visíveis até meados do século XX. Na interpretação do crítico da Seara Nova, durante os séculos seguintes aos da “Expansão Marítima”, Portugal perdera a sua capacidade de produzir iniciativa empreendedora, inovação e criatividade, refletindo em termos artísticos sobretudo casos miméticos ou modestas adaptações de outras produções europeias: «O que representa para a história da arte europeia e da humanidade, em geral, a nossa pintura dos séculos XVII, XVIII e XIX? E, podemos aventurar já, a destes primeiros anos do século XX? A nossa arte passou de facto a ser eco, e pouco mais. (…) Considero, sem sombra de dúvida, Columbano e Pousão pintores de um interesse extraordinário: mas por que não tomaram eles decididamente uma atitude universal? Porquê, possuindo as necessárias possibilidades técnicas e o mais a que chamamos, por comodidade, talento, porquê não se situam entre pioneiros numa época de pioneiros? Porque são solicitados pelo meio, porque em ambos, esse meio, mesmo quando trabalham no estrangeiro, é o dos homens e das coisas em que foram criados – ora, os problemas económicos, sociais, desse meio, são de diminuto interesse universal, o artista não sente nos conflitos que o solicitam a força suficiente (a necessidade), e assim vai aprender em ambientes estrangeiros, não só fórmulas e processos, mas a própria essência da sua arte… e mesmo quando antecipa na sua obra fórmulas e processos, continuará no resto igual ao já feito ou voltará a ele»[15].
Quando procura identificar na arte portuguesa casos diferenciados de “valor” e “sinceridade”, Ernesto de Sousa sublinha a distinção essencial no seu discurso entre “talento” ou “virtuosismo” técnico e a “coerência” de uma “necessidade” imperiosa: «O caso da plêiade de artistas portugueses dos primeiros anos do nosso século, é idêntico. (…) Por isso, talentosos artistas embora, os nossos pintores fingiram sobretudo, consciente ou inconscientemente, a sua arte, não no aspecto restritamente técnico, claro: Almada, Alvarez, António Pedro, Dacosta, etc., são cada um à sua maneira, excelentes “virtuosos”. É por isso também que artistas que eu diria mais modestos, como Botelho, Dordio Gomes, etc., apresentam uma obra mais coerente, porque mais consequência imediata da sua necessidade de pintar…»[16].
Como uma crítica mais ou menos velada ao regime salazarista, Ernesto de Sousa conclui sobre a força de oposição que a pintura neorrealista introduz nesses anos, entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o imediato pós-guerra: «Parece-me todavia que hoje, numa altura em que o atraso se continua a verificar em quase todos os sectores, um factor inédito altera os dados do problema e consequentemente as relações entre estes e os factos (soluções) tal como os estamos estudando. Um número cada vez mais numeroso de jovens pintores (quase desconhecidos do público), embora ainda muito sujeitos a fórmulas e processos de fora (ou aparentemente), começa a conseguir, com felicidade vária, apresentar obra sua e diferente, em conjunto, muito diferente do que antes conhecíamos…»[17]. Assim como reconhece na força de vontade dos jovens artistas neorrealistas (ainda que nunca aí se observe, como já referimos, essa designação ou neologismo, que só raramente aparece, entre 1945 e até 1947, no que às artes plásticas diz respeito)[18], o embrião de algo ainda por confirmar, o também jovem crítico da Seara Nova assume-se a partir daí como compagnon de route, manifestando uma posição de compromisso militante com esse grupo de artistas, consciente porém das dificuldades a superar, na esperança de ver alcançar com a “nova arte” do realismo social a “qualidade” que a tradição de universalidade da pintura portuguesa exigirá: «(…) a dar-se o caso [lembra] de esse movimento ser de facto uma realidade, ultrapassar, portanto, simples fervura logo arrefecida pela tentação de tantos caminhos mais fáceis – que o tal factor inédito é o nível atingido por aquele grau de consciência das leis históricas que os condicionam… como homens, como artistas. Tudo me leva a crer que sim, as suas obras (ainda: primeiras obras) as suas ideias, a sua atitude perante a dura vida que os cerca (tanto mais dura quanto mais consciência têm dela)… Parece pois não estar longe o dia em que, no que respeita aos pintores, a quantidade se transformará em qualidade»[19].
Cinco dias depois deste artigo, Ernesto de Sousa publica “Três pintores do nosso tempo”, na revista Mundo Literário. Aí defende a obra de Moniz Pereira, Vespeira e Júlio Pomar, com palavras e ideias que reforçam a sua interpretação do valor “universal” que o neorrealismo deverá almejar, chegando a afirmar, a propósito da obra Em marcha (1946) de Júlio Pomar, que estamos «(…) frente de um grande artista pujante, cuja arte parece, embora acentuando a relatividade desta opinião, com força e compreensão dos problemas picturais da nossa época suficiente para atingir valores universais como Portugal não conhecera ainda, depois dos Primitivos »[20] e, rematando o texto, escreve um dos parágrafos mais contundentes da crítica de arte que apoiou o neorrealismo: «(…) Há ainda quem fale em excesso de preocupação temática. É tempo de estudar serenamente as relações da arte abstracta e a concreta – definições nada mais do que definições: não há barreiras intransponíveis… Há homens e realidades que seguem à frente da “marcha” e outros que necessariamente caminham atrás; cada um escolherá o seu lugar no meio de desvios e ilusões… Julgá-los-á a história»[21]. Quando fala do julgamento da “história”, da “marcha” e do lugar ou posição de cada “um” nelas, Ernesto de Sousa não aponta apenas ao sentido cronológico e político, referindo-se ainda ao valor artístico de vanguarda que identifica nessa declaração de posicionamento, defendendo, de novo, uma leitura prospectiva do neorrealismo enquanto momento maior da nossa arte moderna. Algo que voltará a afirmar, ainda que recorrendo a outras palavras e ideias, na sua obra A pintura portuguesa neo-realista[22].
Sob este ângulo, e partindo da introdução firmada neste último título, publicado apenas em 1965, observemos a importância da analítica “ernestiana” sobre a assunção do neorrealismo visual enquanto manifestação de vanguarda no contexto português, especialmente vinculada a um passado recente: «Não só os pintores neo-realistas tinham provocado as mais graves perguntas sobre a universalidade da arte portuguesa depois dos futuristas; como tinham dinamizado todos os artistas independentes deste país, dando-lhes confiança em si próprios, ajudando a opor a uma apagada e vil tristeza aquela outra fórmula de Almada, a alegria é a coisa mais séria que há»[23]. Alegria, entendida aqui como expoente desse entusiasmo coletivo pela transformação da realidade que inspirou todo o movimento cultural do neorrealismo.
Tal vontade vanguardista, de rutura estética e social, chegou inclusive a ser assumida por outros protagonistas do movimento, tal como defendido por Júlio Pomar, logo em 1950, nas páginas da revista Vértice, quando afirma: «(…) este grupo de artistas [neorrealistas] chama a si o lugar da vanguarda no movimento artístico português»[24], espécie de sinal de «(…) uma nova vitalidade vinda de um elan comum»; ou seja, como movimento, o neorrealismo «(…) introduz na arte portuguesa características novas, até mesmo nas formas que, sob determinado ponto de vista, se podem considerar como filiadas numa concepção de arte como actividade mais ou menos desinteressada»[25].
No início de Agosto, o crítico volta à Seara Nova com dois artigos bastante assertivos, sintomaticamente intitulados “Rumos da pintura”, onde projeta objetivos e necessidades do movimento, como nessa passagem que aponta a reversão do “atraso” do país a favor da afirmação da pintura neorrealista: «Hoje que, mais do que nunca, a questão do progresso da vida, do pensamento e da arte é um caso de consciência das condições históricas em que vivemos, isto é de uma cultura integral [referência a Bento de Jesus Caraça], é possível aos pintores portugueses jovens realizarem uma obra que seja o correspondente profundo de um atraso que, contraditoriamente, à medida que vai agravando, significa progresso noutro sentido – e isso começa a verificar-se devido ao nível atingido pelo grau de consciência que essa cultura lhes permite –; ou por outras palavras: realizar uma obra de valor universal e interesse nacional»[26]. Ou seja, o crítico sublinha a sua convicção de que «(…) o grau de consciência destas leis históricas pode influir na qualidade». Em certo sentido, o “atraso” do desenvolvimento português (“a sua lei histórica” nesse momento) converterá a arte neorrealista na expressão qualificada de um valor universal no interesse local se os artistas atingirem um elevado grau de consciência sobre as condições sociais desfavoráveis que identificam o país. E esta é, na verdade, a tese essencial do pensamento de Ernesto de Sousa na primeira fase de reflexão sobre a importância do neorrealismo português, a ideia de que o compromisso ético (e, nessa medida, político) com a observação e participação consciente nos destinos da sociedade, não abdicando da experiência moderna da obra de arte, determina a qualidade dos seus resultados, abrindo a porta à sua entrada na longa tradição de “universalidade” da grande pintura portuguesa. Mesmo que seja possível identificar uma certa ingenuidade teórica nesta colagem entre o passado dos “Primitivos Portugueses”, o presente e o futuro do “neorrealismo” na arte portuguesa, ela é determinada pela força de uma convicção sobre o valor moderno e de vanguarda na produção destes últimos. De outro modo, a tese neste artigo defendida, talvez sugerida em parte pela mitificação nacionalista que nessa altura alimentava os estudos sobre os “Painéis de São Vicente”, apresenta um valor de originalidade que devemos assinalar, enquanto expressão de uma vontade determinada em reconhecer a pintura neorrealista na correspondência com a produção de qualidade à escala europeia e universal que a melhor produção dos pintores “Primitivos Portugueses” significou. Até porque esta, como defende Ernesto de Sousa, apesar de produzida nos séculos XV e XVI, foi moderna no seu tempo e só assim pôde encontrar o seu lugar na grande história da arte ocidental.
Esse era o desejo fundamental da primeira defesa do crítico de arte em torno das promessas de modernidade e universalismo por ele observadas no neorrealismo. Tal como escreverá na Seara Nova, em outubro desse ano charneira que é 1946: «Uma arte é chamada “moderna” quando é do seu tempo, quando corresponde às necessidades, mais vivas, mais progressivas do seu tempo. É claro, considerando vivo e progressivo tudo aquilo que, dum modo ou doutro, contribui para uma maior amplidão na vida e na inteligência do homem. Não se trata, portanto, duma designação fixa ou que convenha só a determinados aspectos intrínsecos das formas ou da essência da arte»[27]. Após o entusiasmo crítico e a militância genuína em torno desse neorrealismo que, confiante no seu élan progressista, então se anunciava, Ernesto de Sousa fará, de modo algo inesperado, um longo interregno (até 1959)[28] na sua afirmação como crítico de arte, dedicando-se à sua outra grande paixão: o cinema[29]. Em 1949 partirá para Paris, em busca do sonho de se tornar realizador. Porém, o neorrealismo (no cinema, como nas artes plásticas) nunca se afastará do seu pensamento.
2. A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953)
Se o regresso à crítica de arte acontece em 1959, de novo na Seara Nova – onde reinicia a fundamentação de uma arte realista especificamente portuguesa, que atende agora a um concílio entre a arte popular (em especial, a escultura) e a arte erudita –, será ao escrever, em 1960, o primeiro volume inteiramente dedicado ao percurso artístico de Júlio Pomar[30], que Ernesto de Sousa experimenta o seu primeiro exercício retrospectivo sobre a afirmação e as sequelas do neorrealismo praticado entre nós. E é precisamente esse momento que o ajuda a desenvolver a ideia de realizar um estudo mais ambicioso e igualmente retrospectivo sobre o neorrealismo português nas artes plásticas, depois de ter participado no apoio crítico e teórico dos seus primeiros episódios. Os mais de dez anos de afastamento de uma prática continuada na crítica de arte em Portugal ofereceram-lhe ainda a oportunidade de explorar uma visão mais distanciada dos acontecimentos, capaz porém de aprofundar razões e argumentos em torno das especificidades desse movimento que sonhou transformar a prática artística e a consciência social e política do seu público.
Após o convite do editor da Artis para apresentar um estudo com essas características (tal como José-Augusto França fora incumbido de apresentar uma análise sobre o movimento rival, o surrealismo), Ernesto de Sousa escreverá no final de 1964 o texto que será impresso nos últimos dias de dezembro de 1965 com o título A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953)[31]. Com empenho e honestidade intelectual, aí se aventura, mais experiente mas não menos ousado, no exercício de compreensão desse movimento que tanto alimentou a sua primeira defesa de um projeto de vanguarda português no imediato pós-guerra.
Comecemos precisamente pelo título, esclarecedor desde logo sobre o âmbito conceptual desse estudo. Fiel à sua tese de exame e recorte de uma “arte especificamente portuguesa”, Ernesto de Sousa opta por defini-lo em torno da “pintura portuguesa” que se afirmou “neorrealista”, e não sobre “a pintura neorrealista em Portugal” (como na opção de José-Augusto França sobre A pintura surrealista em Portugal, publicada um ano depois, em 1966, na mesma coleção). Muito mais uma reflexão de teor ensaísta do que uma história do movimento nas artes plásticas (apesar de não deixar de listar os seus principais acontecimentos), o título de Ernesto de Sousa procura integrar a experiência do neorrealismo no conceito e prática de uma arte de cariz português, observando características estéticas e sociais que relacionam o movimento com o passado mais longínquo da nossa arte, assim como ao primeiro modernismo português. Não lhe interessa tanto identificar uma correspondência ou os efeitos do “novo realismo” internacional em Portugal, mas as particularidades da ligação do nosso neorrealismo aos valores hipoteticamente intrínsecos da arte portuguesa.
De outro modo, em página introdutória sobre uma possível definição enciclopédica de “neo-realismo”, Ernesto de Sousa define o período fundamental da pintura portuguesa neorrealista durante esses anos fixados na própria intitulação, justificando: «(…) em 1943 assinalamos a primeira exposição de alguns dos mais significativos pintores deste movimento [Júlio Pomar, Vespeira ou Fernando Azevedo[32]; em 1953 verifica-se a realização mais coerente (o ciclo do arroz) e revela-se uma fecunda crise interna». Por outro lado, acrescenta: «A crise interna do movimento neorrealista, começada em 1952, atinge uma primeira fase aguda em 53 e 54 (polémicas da Vértice, questão Portinari, e a discussão sobre o artigo de António José Saraiva, ‘A ponte abstracta’… Seja como for, a Exposição Geral de 1953 é a última em que os pintores realistas se apresentam num esforço de originalidade e invenção»[33]. O crítico e estudioso do realismo esclarece ainda, todavia, sobre a sua opção de baliza cronológica: «O arbítrio que consiste em demarcar datas-limite servirá assim o nosso entendimento do passado ancorado como mediação; e aponta a uma lucidez que sem negar nada do que é humano compreende o realismo e a dialética como instrumentos de transformação e criação»[34].
O texto propriamente dito iniciava-se com as palavras de Leonardo da Vinci sobre «(…) o movimento que agita os corpos», pois «(…) a força dessa transformação nasce pela violência e morre pela liberdade»[35]. Ideia que se revela metáfora perfeita sobre as motivações e os desígnios da primeira fase dessa «(…) nossa pintura realista moderna», ou seja, do neorrealismo português: «Nascida com irreprimível força contra um universo de violências (e uma das maiores era a moda oficializada de uma pintura cosmopolita e pseudo-moderna), ergueu-se como um grito e uma respiração desconcentracionária na procura de uma atmosfera de-fora-da-Europa, um ar do México, do Brasil, da Espanha, e da própria tradição – a autêntica e pouco conhecida tradição»[36]. O autor reforça aqui a coerência do seu pensamento original quando situa o “grito” do neorrealismo português na conciliação entre “atmosferas” exógenas e a “autêntica” tradição portuguesa. Para depois logo concluir sobre a urgência e os excessos de intervenção dessa fase, quando afirma: «(…) violenta ela própria, rápida e excessiva, “correu com fúria para a morte desejada”. Desejada, não suicida [esclarece]: de facto, houve um momento de dar tudo-por-tudo, de antes quebrar do que torcer… Um momento só. Este pórtico de uma renovação que se estenderia de 1943 a 1953, durou apenas alguns meses, um ano, e morreu»[37]. Reconhecendo as consequências dessa investida de esperança impetuosa mas de curta duração, Sousa não deixa de sublinhar ao mesmo tempo a sua importância cultural e a sua coragem política: «Pintaram-se então quadros que se escondiam debaixo da cama, sonharam-se decorações impossíveis, escreveram-se artigos de mal disfarçada violência e pouca maturidade crítica, projectaram-se cartazes e ilustrações, descobriram-se ou inventaram-se mestres, fizeram-se declarações gritantes e intransigentes e lançaram-se anátemas e interditos. Ao fim de alguns meses a tensão tinha atingido um máximo, um insustentável e dramático clímax: o realismo não tem outros limites que os dos seus próprios meios, e estes tinham sido largamente excedidos e, logicamente, minimizados»[38]. E conclui: «Era então necessário recuar e reflectir, ou abandonar. Esta quebra definitiva face aos caminhos do realismo, foi o que se verificou com alguns dos que mais ardentemente os tinham adoptado»[39]. Ernesto de Sousa reflete também sobre os “cantos de sereia” que a alguns jovens neorrealistas então se impuseram: «Outros procuraram iludir-se ou esclarecer-se numa inquieta e insuspeitada procura interior [o surrealismo]. Outros ainda, tentaram uma compreensão mais fria dos fins e dos meios, buscando os caminhos, não poucas vezes áridos e difíceis, da lucidez e do conhecimento claro [a abstração]»[40]. Porém, e apesar do abandono do neorrealismo pela maioria dos seus protagonistas, o autor assinala: «Mas foram estes talvez que em termos de pintura, iriam deixar algumas das obras mais indiscutíveis do movimento: em qualidade e certeza»[41].
Ao assumir o valor da descoberta inicial como sinal da “imperfeição” e da “impureza”, Ernesto de Sousa reconhece que «(…) nada é verdadeiramente novo, que não seja algo prematuro, que não esteja votado a uma certa frustração, a da sua própria instabilidade». Por isso, justifica: «Quando, ao avizinhar-se o fim da última Grande Guerra, e ao acre sabor de certas contradições, um grupo de jovens pintores e críticos (com os seus pares, romancistas, contistas e poetas) reclamava uma arte nova, uma nova pintura, o que se lhes deparava em primeiro lugar era a necessidade de descobrir um novo passado para um novo futuro, novas formas inconformistas de expressão – para um novo conteúdo»[42]. Na verdade, Sousa nunca denegou a importância da inovação formal, jamais dispensou essa necessidade constituinte do gesto pictórico, porquanto as suas palavras em 1965 realizam a confirmação de uma leitura coerente com os seus artigos de crítica de arte datados de 1946, distanciando-o de modo claro da visão ortodoxa associada à “crise interna” do neorrealismo. A este propósito, recorde-se que, no início dos anos 50, a chamada “polémica interna do neorrealismo” traduziu-se por uma crescente clivagem em torno do problema da relação entre a forma e o conteúdo da obra de arte. De 1952 a 1954, as páginas da revista Vértice serviram de cenário a esse aceso debate intelectual. De um lado, João José Cochofel, Mário Dionísio e Fernando Lopes-Graça defendiam o primado da linguagem formal, enquanto António José Saraiva, Manuel Campos Lima e António Vale (pseudónimo de Álvaro Cunhal) opunham o conteúdo como agente estrutural de uma intervenção da arte na sociedade. Se os primeiros notavam que o valor do conteúdo podia identificar-se com a expressão maior da inovação formal, alimentando uma perspectiva heterodoxa (e onde Ernesto de Sousa se encaixava, de modo consciente) que não abdicava porém da função social da arte, os segundos advogavam uma linha de interpretação ortodoxa e contundente, ao manterem a necessidade da prevalência do conteúdo, em conformidade com a urgência de comunicação que a arte parecia ainda exigir. Se o conteudismo ortodoxo, associado a uma tácita ingerência do Partido Comunista Português nos destinos do movimento, parece ter tido então a última palavra, com a direção editorial da Vértice a pôr fim ao conflito para impedir a “eternização” da polémica, a verdade é que a década de 50 marcou precisamente a mais espontânea e abrangente liberdade formal do neorrealismo literário e artístico, denunciando assim a derrota de qualquer orientação doutrinária mais estreita ou dogmática.
Sublinhe-se, neste contexto, que Ernesto de Sousa sempre defendeu a liberdade artística, uma arte pictórica que reclamasse “novas formas inconformistas de expressão”, atentas porém a um “novo conteúdo”, de leitura e coragem social e, nessa medida, também política. Desse modo, com base na sua ampla e heterodoxa visão de uma osmose entre o passado e o presente, declara: «Mas ninguém vai de mãos vazias para qualquer descoberta. Nenhuma originalidade se realiza sem reconhecimentos anteriores, emoções reconstruídas. Sem “companheiros de ambição”. E com efeito, apesar do que se poderia concluir apressadamente daquelas e de outras afirmações, em poucas épocas como esta houve um esforço tão apaixonado pelos problemas da expressão, pelo avanço da técnica e o encontro com a forma certa»[43]. E acrescenta: «A “ambição” não se referia apenas aos problemas de conteúdo – porque, “em artes plásticas, muito particularmente, o pensamento quase nada vale se a forma for medíocre” (Pomar). Esta febre de invenção e descoberta afirmava-se assim na sua legitimidade especificamente pictural»[44]. Ao mesmo tempo, não esquece a importância decisiva de uma formação plural: «Os improvisados ateliers pejavam-se de desenhos e de experiências, liam-se os livros e descortinavam-se as razões, simultaneamente plásticas e humanas. As reproduções – era o início do grande movimento editorial do pós-guerra – circulavam e disputavam-se. Foram assim exaltados os expressionistas, certas invenções de Picasso, a obra e o exemplo de Van Gogh, e sobretudo os pintores do outro lado do Atlântico: os mexicanos, Portinari, o rooseveltiano Thomas Hart Benton»[45] – recorda-nos Ernesto de Sousa, sobre a miríade de referências que animava nesses anos os artistas empenhados no realismo social.
Definindo uma oposição às teses de José-Augusto França (com quem polemiza explicitamente desde 1959, ao publicar “O espectáculo e o espectador”, na revista Seara Nova, em setembro desse ano, a propósito dos dilemas e conflitos relativos aos valores da arte abstrata e da arte figurativa, genericamente de expressão realista[46]), Ernesto de Sousa esclarece de modo peremptório: «Pretendeu-se também que tudo isto fôra um equívoco e um remoinho de aspirações, “numa ausência de criação” – como se o intento de “regular o relógio pela hora europeia”, ou por qualquer outra é que não fosse, precisamente, um claro indício de ausência de criação. E ainda que faltara às primeiras obras destes jovens pintores, estrutura, densidade de matéria… como se fosse possível estabelecer nestes termos simplistas a qualidade; e toda a qualidade especificamente estética se reduzisse a um jogo de relações formais. Pelo contrário, os problemas de forma e de técnica apaixonavam igual e legitimamente os jovens pintores desse período. Não obstante procuravam entendê-los na compreensão de um “homem determinado”. Isso caracterizava fundamentalmente o movimento»[47]. Mais de 20 anos passados sobre o texto “Da universalidade na pintura portuguesa”, Ernesto de Sousa mantém acesa, agora de modo retrospectivo, a sua defesa sobre as especificidades qualificativas do neorrealismo pictórico português.
Apesar de identificar e reconhecer algumas “desmesuras” nas “aspirações generosas” dos jovens neorrealistas, o autor do primeiro ensaio de fôlego sobre este movimento afirmará sem hesitar: «Na verdade, não há pintura, ou forma de arte específica, sem existir um espaço social que lhe corresponda, e um quadro não é alavanca suficiente para remover montanhas»[48]. Por outro lado, Sousa encontra um sentido profundo no entusiasmo, na dinâmica e na coragem desses jovens artistas a quem se aliou. Eles «(…) abriram as veias à circulação de novas ideias, e as perguntas implícitas, mesmo sem resposta imediata, ficaram como tal: coordenadas de lucidez»[49]. A sua tarefa concreta, enquanto crítico e teórico do movimento, deveria contribuir para o enquadramento e a fundamentação de tal ambição. Porém, «(…) descobrir uma fisionomia simultaneamente universal e nacional para a pintura portuguesa, era em 1945 uma necessidade de raiz (e para a qual um longo estudo poderá demonstrar claramente toda uma teoria de motivações e mediações autênticas)»[50]. Entre o seu contributo inicial e o ensaio produzido em meados da década de 60, Ernesto de Sousa compreende, com humildade, a necessidade ainda por satisfazer de se alcançar um estudo “longo”, capaz de clarificar melhor essas “motivações” e “mediações” que moldaram o neorrealismo português.
De outra forma, o autor interroga-se: «(…) ultrapassada a inovação “modernista” – que fora igualmente sincera e consequente (…) o que restava aos jovens artistas? Acertar o relógio ou inventá-lo?»[51] A resposta confirma o espírito de intervenção e esperança que caracterizou essa vontade coletiva: «Se optaram pela invenção não foi porque lhes sobrassem os trunfos, ou uma consciência plena das dificuldades que os esperavam. Mas porque se sentiam fortes de entusiasmo. E nisso tiveram razão, apesar dos frescos repintados, dos quadros destruídos ou retirados das exposições [nas Gerais] e dos cartazes rasgados. Todos os pintores e as correntes de gosto e de inovação futuras ganharam com aquela frustrada desmesura, e não o contrário, como já absurdamente se disse»[52].
Mesmo quando Ernesto de Sousa reconhece a “escassez” da produção desse primeiro período neorrealista e até alguma “decepção” nos seus resultados, não hesita nela observar outra espécie de valor: «As obras desse tempo, em geral, mesmo quando falhadas, servem-nos para “determinar o homem” que somos (…). Valem também, e pelo menos, como documentos»[53]. Essa dimensão documental associada à experiência da obra de arte, hoje tão presente na afirmação da arte contemporânea mais politizada, aparece na verdade como um dos contributos maiores da arte neorrealista à cultura portuguesa de meados do século XX. Apesar de o autor não deixar de separar (dando exemplos concretos) obras de maior qualidade, face a outras menos decisivas, e de valorizar maioritariamente o período de produção neorrealista que vai de 1947 a 1953 (que culmina com os ciclos do “Arroz”), interessa-nos aqui sobretudo a sua visão de conjunto sobre as “motivações” e as “mediações” que alimentaram esse projeto. E assim, podemos ler neste estudo ainda hoje incontornável, reflexões decisivas como esta: «Efectivamente, a ideia muito dominante então, de que “o homem é o representante do grupo” e de que só nessa situação de tipicidade pode interessar ao artista, se não era de molde a limitar os artistas que sobretudo se preocupavam em revelar-se através de uma investigação precisa da respectiva situação social – consciente ou inconscientemente iria chocar e confundir muitos artistas que de outro modo teriam sido capazes de caminhar desafogadamente do interior para o exterior, do subjectivo para o objectivo, da descoberta moral para a sua ressonância consciente em toda a realidade»[54]. Para depois concluir: «Mas isto, que hoje sabem claramente os realistas (que o realismo pode e deve passar pelas inquietações subjectivas do artista) era ainda matéria de investigação, de descoberta por fazer»[55]. Sobre a importância decisiva da subjetividade na expressão prática do neorrealismo, Ernesto de Sousa acrescenta uma ideia luminosa: «(…) se observarmos imparcialmente as obras dos autores que se conservaram realistas durante esse período, verificaremos quanto os seus diferentes caminhos foram pessoais, e até íntimos: precisamente no que há de mais específico como valor estético, vamos encontrar as preocupações profundas e os anelos individuais de cada um, como um pequeno coração – por vezes ignorado da consciência clara – batendo a circulação do Universo»[56]. Afinal, face à força da criatividade individual, do “eixo pessoal”, a teoria é um novelo pouco controlável, e só em parte influente, pois «(…) as teorias, certas ideias-força, podem ser um estímulo e uma coordenada geral de orientação, mas não fazem o caminho. Uma coisa é a carta geográfica, outra a viagem»[57].
Ao artista neorrealista estava destinada, assim, «(…) a contradição entre a necessidade de se conformar com um espaço que física e socialmente era dado, e a necessidade mais imperiosa, mais íntima, de realizar e realizar-se noutro espaço social, onde a comunicação com os outros não tivesse que passar pelas salas de estar de uma passiva burguesia»[58]. Por essa razão, «(…) a obra destes artistas foi assim, neste período, uma obra de resistência. Sempre significativa do realismo, mesmo quando este foi abandonado definitiva ou provisoriamente depois: o realismo não é um voto, é uma necessidade interna e pretende só assim à maioridade cultural; não se opõe a outras experiências e formas de expressão, outras válidas prospecções da realidade, outras procuras, quando houver lugar para elas. Mais tarde ou mais cedo, o realismo beneficiará das suas aquisições».[59]
No final, escreverá Ernesto de Sousa, «(…) é necessário concluir que hoje [em meados da década de 60], a primeira e a segunda fase do nosso realismo moderno estão definitivamente concluídas. O mesmo aconteceu com o surrealismo. Mas o abstraccionismo, a nova figuração e outras experiências actuais não são necessariamente anti-realistas. Pelo contrário, tudo leva a crer que a evolução actual e um recomeço de interesse e de consciência por estes problemas, anunciam uma nova fase do realismo, porventura menos sentimental, mais realista se se pode dizer. Isto é: mais crítica, mais fria e perduravelmente corajosa quanto ao conhecimento dos fins e dos meios a actuar. O realismo é plural, e nós estamos apenas no começo do conhecimento profundo das nossas contradições: só no futuro é que – talvez – o realismo se confundirá com os nossos sonhos»[60]. Se o neorrealismo teve sempre no horizonte o sonho da utopia, e a sua realização como obsessão objetiva, Ernesto de Sousa aponta aqui a uma fusão do realismo com a experiência dos sonhos, e não o inverso, como então defendia André Breton e a maioria dos seus discípulos, sobre a natureza do surrealismo como experiência artística resultante das imagens do inconsciente. O texto termina assim com uma tácita provocação ao aparente triunfo do surrealismo, devolvendo-lhe nessa prospecção inesperada o contraditório das suas proclamações sobre o monopólio da liberdade poética individual.
Opondo-se a tais exercícios de unanimismo e subordinação, Ernesto de Sousa acredita na resposta que o realismo pode dar a essa pretensa ideia de verdade que o surrealismo reclamava sobre “a totalidade do homem”. Para ele, o realismo sobreviverá, além das circunstâncias, em todas as reinterpretações artísticas onde a figuração e a observação da realidade exigirem a factura pictórica, ou seja, a celebração de uma estética individual, como representação e mimesis. Ao fim e ao cabo, apesar das suas eventuais esperanças de objetividade, a obra de arte acabará sempre subjetivada, aí residindo a garantia da sua liberdade e idiossincrasia. E essa é, afinal, uma convicção que resulta do seu próprio exercício de reflexão retrospectiva, focado no movimento que viu nascer e para o qual contribuiu em diversos períodos do seu processo de afirmação, dissolução e rescaldo, nele vertendo uma ideia ou desejo de vanguarda que, já no contexto dos anos 60/70 das neovanguardas, acabaria por vir a protagonizar, sem nunca esquecer o contributo decisivo que nesse trajeto o neorrealismo significou, enquanto momento de coragem política, ética, artística e cultural.
Talvez assim possamos compreender, finalmente, que Ernesto de Sousa nunca deixou de ser, “num certo sentido”, um neorrealista – tal como um dia confidenciou ao seu amigo Leonel Moura, nesse diálogo evocado no arranque desta tentativa de exegese.
[versão original: in AAVV, «Centenário de Ernesto de Sousa (1921-1988)», Arte e Cultura Visual, nº 2, CIEBA (Centro de Investigação e de Estudos em Belas Artes), (Direção Editorial: Isabel Nogueira), Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, Dezembro de 2021]
1 | ↑ | SOUSA, Ernesto de [em entrevista a Rui Ferreira e Sousa] – O Jornal (ago. 1987). |
---|---|---|
2 | ↑ | SOUSA, Ernesto de [conversa-entrevista com Leonel Moura] – “Moro na Travessa do Fala-Só”. in “Sétimo Dia” (suplemento cultural), O Globo (1980). Informação colhida em https://www.ernestodesousa.com/bibliografia/moro-na-travessa-do-fala-so. |
3 | ↑ | Idem, ibidem. |
4 | ↑ | BAUDELAIRE, Charles – “Novas notas sobre Edgar Poe”. in A invenção da modernidade (sobre arte, literatura e música). Lisboa: Relógio d’Água, 2006, p. 104. |
5 | ↑ | Entre 27 de março a 3 de abril desse ano, Ernesto de Sousa organiza, em colaboração com Diogo de Macedo, então diretor do Museu Nacional de Arte Contemporânea, a “Exposição de Arte Negra”, integrada na “I Semana de Arte Negra”, na Escola Superior Colonial. Nesse contexto, conhece Fernando Lopes-Graça, que o convida para colaborar, como crítico de arte, na revista Seara Nova. O seu contributo começa, no entanto, com uma série de pequenos textos intitulada Abel e Caim, em parceria com João Abel Manta, (cf. AA. VV. – Ernesto de Sousa – Itinerários. Porto: Casa de Serralves/Secretaria de Estado da Cultura, 1987). Será o próprio Ernesto de Sousa a dar testemunho desse momento quando escreve, já em 1983: «(…) Houve conferências, conheci o José-Augusto França, e o Fernando Lopes-Graça convidou-me a colaborar na Seara Nova. Para nós, os “novos” nessa altura (ainda alunos e desconhecidos) eram os “neo-realistas”». Foi a “geração de bater-a-porta-à-Universidade…” (Com esta expressão, Ernesto de Sousa referia-se ao facto de ele e muitos dos seus colegas de geração não teram concluído, nessa época, a sua formação académica, em ciências ou em artes, por, entre outras razões, assumirem também um conflito político e social com diversas instituições universitárias e com o regime do Estado Novo). Em SOUSA, Ernesto de – Re começar. Almada em Madrid. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983, p. 40. |
6 | ↑ | Idem – “Da universalidade na pintura portuguesa”. Seara Nova. N.º 984 (jun. 1946), p. 122. |
7 | ↑ | Idem, ibidem. |
8 | ↑ | Refira-se que, ainda nesse ano, Ernesto de Sousa – assinando José Marques (o primeiro do seus nomes pessoais e o primeiro também dos seus apelidos, escolhidos de entre o seu nome completo: José Ernesto Marques Frade de Sousa) – envia uma carta de resposta ao diretor da revista Mundo Literário (publicada no n.º 24, 19 de outubro) polemizando em torno do “materialismo de dialético”, a propósito de um artigo de João Gaspar Simões sobre o mesmo tema. |
9 | ↑ | SOUSA, Ernesto de – Da universalidade na pintura portuguesa. Op. cit. |
10 | ↑ | Idem, ibidem. |
11 | ↑ | Idem, ibidem. |
12 | ↑ | Idem, ibidem. |
13 | ↑ | Idem, ibidem. |
14 | ↑ | Idem, ibidem. p. 122; 123 |
15 | ↑ | Idem, ibidem. p. 123 |
16 | ↑ | Idem, ibidem. p. 124 |
17 | ↑ | Idem, ibidem. |
18 | ↑ | «A 23 de Junho [1945], numa entrevista a Manuel Filipe (nascido em 1908, faz então uma primeira exposição significativa, com trabalhos a carvão de forte expressividade social que suscitam polémica na imprensa), [Júlio] Pomar e o seu entrevistado fazem pela primeira vez a extensão da designação neo-realismo da literatura às artes plásticas, mas a fórmula terá escasso uso até 1947». Cf. Alexandre Pomar, in AA. VV. –Júlio Pomar. Lisboa: La Différence/Artemágica, 2004, p. 14. [Catálogo “Raisonné” I – Pinturas, Ferros e “Assemblages”/1942-1968]. |
19 | ↑ | SOUSA, Ernesto de – Da universalidade na pintura portuguesa. Op. cit., p. 124. |
20 | ↑ | Idem – “Três pintores do nosso tempo”. Mundo Literário. N.º 12 (jun. 1946), p. 16. |
21 | ↑ | Idem, ibidem. |
22 | ↑ | Ver SOUSA, Ernesto de – A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953). Lisboa: Artis, 1965. |
23 | ↑ | Idem, ibidem, p. 8. |
24 | ↑ | POMAR, Júlio – “V Exposição Geral de Artes Plásticas”. Vértice. N.º 82 (jun. 1950, p. 380-387. |
25 | ↑ | Idem, ibidem. |
26 | ↑ | SOUSA, Ernesto de – “Rumos da pintura”. Seara Nova. N.º 990 (ago. 1946). |
27 | ↑ | Idem – “Em defesa do moderno”. Seara Nova. N.º 1000 (out. 1946). |
28 | ↑ | Ernesto de Sousa publica ainda em 1947, na Seara Nova, pequenos apontamentos sobre exposições (Raquel Roque Gameiro e Leal da Câmara) e livros (Rodin, de Manuel Mendes); um texto sobre a “II Exposição Geral de Artes Plásticas”, destacando-se sobretudo um artigo mais amplo sobre o artista: “Júlio Pomar – considerações sobre a sua obra”. Vértice. N.º 52 (nov./dez, 1947); em 1948, publica apenas, no mesmo n.º 53 da revista Mundo Literário, “Crítica ao livro Espanha artística – notas de viagem” de Adriano de Gusmão e “Artes Plásticas”; por fim, em 1949, surge ainda um pequeno texto dedicado à “IV Exposição Geral de Artes Plásticas” e ao livro Van Gogh, de Mário Dionísio, que publica na revista Portucale, n.º 21-22 (jul./ago.). Todavia, apesar da matriz realista do seu pensamento, esses escassos artigos não revelam (com exceção do que dedica a Júlio Pomar), o mesmo carácter estruturado em torno dessa reivindicação e defesa do neorrealismo que encontramos nos seus textos de 1946. |
29 | ↑ | Sobre este período da vida e obra de Ernesto de Sousa, e ainda para uma visão mais aprofundada do seu contributo à arte portuguesa, cf. SANTOS, Mariana Pinto dos – Vanguarda & outras loas – percurso teórico de Ernesto de Sousa. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007; WANDSCHNEIDER, Miguel – “Descontinuidade biográfica e invenção do autor”. In AA. VV. – Ernesto de Sousa – Revolution My Body. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1998, p. 14-23. |
30 | ↑ | Ver SOUSA, Ernesto de – Júlio Pomar. Lisboa: Artis, 1960. |
31 | ↑ | Cf. idem – A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953). Op. cit. |
32 | ↑ | Ernesto de Sousa refere-se, em particular, à exposição coletiva realizada num apartamento situado na Rua das Flores, em Lisboa, na qual participam Júlio Pomar, Vespeira, Fernando Azevedo, Gomes Pereira e Pedro Oom. Esse grupo de colegas, antigos alunos da Escola António Arroio, aluga um quarto para o efeito, forrando-o integralmente como folhas do jornal Diário da Manhã (o jornal “oficial” do regime salazarista), provocando o contraste com os quadros pendurados na parede, numa atitude irreverente de afronta ao regime. |
33 | ↑ | SOUSA, Ernesto de – A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953). Op. cit., p. 4. |
34 | ↑ | Idem, ibidem. |
35 | ↑ | Idem, ibidem. p. 9 |
36 | ↑ | Idem, ibidem. |
37 | ↑ | Idem, ibidem. |
38 | ↑ | Idem, ibidem. |
39 | ↑ | Idem, ibidem. p. 9; 10 |
40 | ↑ | Idem, ibidem. p. 10 |
41 | ↑ | Idem, ibidem. |
42 | ↑ | Idem, ibidem. p. 10; 11 |
43 | ↑ | Idem, ibidem. p. 11 |
44 | ↑ | Idem, ibidem. p. 12 |
45 | ↑ | Idem, ibidem. |
46 | ↑ | Cf. idem – “O espectáculo e o espectador”. Seara Nova. N.º 1367 (set. 1959), p. 293-294. |
47 | ↑ | Idem – A pintura portuguesa neo-realista (1943-1953). Op. cit., p. 12. |
48 | ↑ | Idem, ibidem, p. 13. |
49 | ↑ | Idem, ibidem, p. 14. |
50 | ↑ | Idem, ibidem. |
51 | ↑ | Idem, ibidem. |
52 | ↑ | Idem, ibidem. |
53 | ↑ | Idem, ibidem. |
54 | ↑ | Idem, ibidem, p. 18. |
55 | ↑ | Idem, ibidem. |
56 | ↑ | Idem, ibidem. |
57 | ↑ | Idem, ibidem. |
58 | ↑ | Idem, ibidem, p. 19. |
59 | ↑ | Idem, ibidem. |
60 | ↑ | Idem, ibidem, p. 20 |