A inquietude destas imagens é absolutamente incontornável. Será rara a palavra perante a profundidade emocional de um registo fotográfico como este: fértil e arrebatador. Francesca Woodman (1958-1981) teve uma existência breve e atormentada, que culminou na inevitabilidade do suicídio, aos 22 anos de idade. Num corpo-espelho apresentado como descoberta de uma estranha natureza psicológica, a artista norte-americana procurou sistematicamente uma forma de realização suprema, entre a vida e a arte.
Delicada, volátil e panteísta, esta é uma fotografia de qualidade invulgar, no modo como une uma ideia de corpo e a imagem ténue mas frenética da sua revelação. O formalismo destas imagens remete para uma ordem equilibrada entre a poética romântica do século XIX e uma espécie de ocultismo experimental que nos seduz de modo labiríntico, quase a medo. Muito jovem, a imagem do corpo de Woodman manifesta desde a primeira adolescência uma extrema necessidade do instinto, da violência incompreensível mas determinante na orientação dos sentimentos. As suas séries fotográficas realizam uma aliança entre o fogo luciferino da demência e a suavidade angelical do corpo dessa jovem mulher.
Como musa renascida de um legado que tem em Frida Khalo e Ana Mendieta uma genealogia imediata, a autoreferencialidade destas imagens procura desesperadamente uma forma dolorosa e expressiva da ideia de belo, numa poética que nos desarma, desde logo, pela sua subtileza. Os vários auto-retratos que nos revelam a dramática expressividade do corpo, sinalizam uma intuição narcísica onde se jogam os medos, as denúncias, ou as debilidades do ser que neles evolui. Na intimidade da casa, deitada sobre a pedra, ou marcada pela natureza, só a nudez mais inocente pode ajudar a viver ou descobrir um sentido para o efémero. Por outro lado, os espelhos funcionam aqui como trabalho de inversão identitária, máscara possível para uma nova forma de ver a matéria do corpo e a sua imagem. Perante a fotografia de Francesca Woodman, não temos dúvidas mas sentimentos, não há certezas mas apenas uma estranha presença, indecifrável e penetrante.
(versão original: in Agenda Cultural de Lisboa, Março de 1999)