Para ir direto ao assunto, partilho uma síntese de Anna Maria Guasch sobre as exigências da recetividade artística nos nossos dias: “A arte contemporânea esconde, sob aparências simples, ideias complexas que afetam não apenas os fenómenos artísticos, mas também socioculturais, sem evitar os políticos ou, melhor, geopolíticos. Por outro lado, e devido à sua natureza “textual”, não é de surpreender que seja criptografada, codificada e realmente precise de ser decifrada para impedir que as pessoas tenham uma idéia superficial da arte contemporânea. A arte que nos rodeia não é o que sabíamos anteriormente ser arte, não tem nada a ver com os conceitos modernos do que era arte, não é algo formal, não é algo que apenas desperta beleza ou bom gosto; É todo um projeto conceptual que devemos penetrar, perpetrado por uma extensa base de informações culturais. É preciso ter um universo inteiro de leituras, é preciso conhecer uma série de chaves para descobrir o significado da arte contemporânea, que na maioria dos casos é entendida a partir do significado, não através das formas.”[1] Este é o diagnóstico, apesar de pessoalmente resistir à última parte. Para mim, as formas (e a consciência sensorial) ainda nos dizem muito, apesar do domínio dos significados extra-formais que determinam a experiência contemporânea da arte. Porém, percebemos cada vez mais que hoje quase não há obras de arte para serem contempladas (em termos retinianos), mas proposições para serem vividas num intercâmbio profundo de contemplação mental. Tal como na herança transdiciplinar e “pos-medium” (Rosalind Krauss)[2] das neovanguardas dos anos 1960 e 1970, não se fazem mais “objetos”, antes “vivências” e “apropriações” de significação entre artistas e público.
No início deste novo milénio, o crítico e curador francês Nicolas Bourriaud insistia, a partir da ideia de uma “Estética Relacional”, nessa tendência da contemporaneidade artística. Ao contrário da reprovação de Jean-François Lyotard sobre o destino da arquitectura na era da pós-modernidade, “condenada a engendrar uma série de pequenas modificações no espaço que herdou da modernidade, abandonando uma reconstrução global do espaço habitado pela humanidade”,[3] Bourriaud encontra nesse “engendrar de pequenas modificações no espaço” habitado uma hipótese de melhorar parcialmente o mundo em vez de o transformar radicalmente, propondo que talvez devessemos “aprender a habitar melhor o mundo, em vez de pretender construí-lo em função de uma ideia preconcebida da evolução histórica.”[4] Com efeito, defende o curador francês, “as obras já não se fixam no objectivo de formar realidades imaginárias ou utópicas, antes procuram construir modos de existência ou modelos de acção no interior da realidade existente, seja qual for a escala escolhida pelo artista para trabalhar com esta categoria.”[5] O projecto da arte contemporânea responde assim à objectualização da arte e à sua integração puramente estético-formal no contexto de uma urbanidade que exige à arte apenas a sua função decorativa e de integração espacial. No entender de Bourriaud, “a obra apresenta-se agora sobretudo como ‘duração’ que deve ser vivida, como uma abertura à discussão ilimitada”, promovendo assim um “regime de encontro intensivo”, isto é, “uma intersubjectividade que toma essencial o estar-juntos, o ‘encontro’ entre espectador e obra, a elaboração colectiva do sentido”. Mas, se é certo que “a arte sempre foi relacional em diversos graus, ou seja, como factor de sociabilidade e fundador de diálogo”, e a imagem artística assumiu como virtualidade o seu poder de conexão entre criador, obra e receptor, a verdade é que, ao contrário da televisão ou mesmo da literatura, que remetem para o sentido da experiência privada, e se inclusivamente o cinema e o teatro, apesar de convocarem o colectivo, apenas deixam espaço à discussão após o termo do espectáculo, “a arte (as práticas derivadas da pintura e da escultura que se manifestam sob a forma de uma exposição) presta-se particularmente à expressão desta civilização de proximidade, dado que reafirma o espaço das relações”, pois apresenta-se sempre no espaço público da arquitectura, da praça à galeria, produzindo “empatia e sentimento de partilha, gerando assim vínculos”.[6] Com efeito, avança ainda Bourriaud, “numa exposição, mesmo quando se trata de formas inertes, estabelece-se a possibilidade de uma discussão imediata, nos dois sentidos da palavra: eu percebo, eu comento, eu discuto, num mesmo espaço-tempo. A arte é o lugar de produção de uma sociabilidade específica”, desenvolvendo assim, na verdade, o sentido e o aprofundamento da obra de arte como um “interstício social […] no interior do qual estas experiências, estas novas “possibilidades de vida”, se revelam possíveis: parece mais urgente inventar relações possíveis com os vizinhos no presente do que fazer cantar os amanhãs. […] Os contratos estéticos, como os contratos sociais, são tidos por aquilo que são: ninguém pretende instalar a idade de ouro sobre a Terra, e nós contentar-nos-emos como voluntários em criar os modus vivendi que permitam relações sociais mais justas, modos de vida mais densos, combinações de existência múltiplas e fecundas. Do mesmo modo, a arte não procura mais figurar utopias, mas construir espaços concretos.”[7]
Mas para este presente de precariedade matérica e objetual, marcado pela valorização do efémero, muito contribuiu o século XIX, o tempo das grandes transformações. Vale a pena recordar como tudo mudou com o ataque moderno à arte académica e aos princípios ou categorias estéticas relacionados com a obra de arte (nomeadamente os conceitos de belo, grotesco e sublime) que tornaram comum a interrogação “isto é belo?”. Estes foram assaltados de modo radical com a viragem epistemológica verificada desde o primeiro modernismo (vanguardas históricas), especialmente com Marcel Duchamp, responsável pela introdução de uma nova e mais duradoura inquietação, a pergunta hoje tão comum: “isto é arte?”
O salto mortal que enforma essa invariável indagação sobre aquilo que se apresenta como arte, é o resultado da substituição, tal como descrita por Thierry de Duve em Kant After Duchamp,[8] do sentido esteticista da declaração “isto é belo”, ligado à sistematização elaborada desde a estética de Kant, pelo universo ontológico de um conceptual “isto é arte”, sobretudo depois do alcance simultaneamente ontológico e epistemológico da prática do “readymade” duchampiano, que foi responsável pela chamada “viragem linguística” da arte moderna, isto é, pela sua crescente conceptualização, a partir da valorização da palavra (não apenas na sua pictorialização e na colagem, como no uso manipulatório da intitulação), reorientando assim, de modo decisivo, o que até aí era definido pelo puramente visual. O facto de o “progresso ocidental” ter tido por base a alfabetização e a instrução escolar generalizadas, o secularismo das instituições e dos saberes levou a um lento mas inevitável afastamento da comunicação simbólica e visual (religiosa ou mítica), em favor da comunicação escrita, verbal, no âmbito científico, como na partilha criativa. Nessa medida, não surpreende que também o domínio das artes visuais tenha sido invadido pela “viragem linguística”, desta resultando um arrefecimento da perceção estética no resultado final da obra de arte. Por essa razão, arriscaríamos mesmo que o sentido declarativo identificado por Duve se traduz hoje, essencialmente, na recorrência interrogativa de um mais céptico, mas de origem conceptual, “isto é arte?”[9]
Na verdade, fomos assistindo, ao longo de todo o século XX, a uma transferência de valores que confirma essa perda de protagonismo da estética e dos seus princípios categóricos a favor de uma ontologia sobre a expressão do “que é, ou pode ser, arte”, buscando assim – na prática de qualquer obra que dessa forma sempre se apresenta, e ao mesmo tempo, como teoria sobre o seu próprio conceito – uma obstinada e incessante redefinição das suas hipóteses ontológicas, que inviabilizam ainda, pela sua intermitência constante, qualquer estabilidade possível sobre o seu significado comunicável. É como se a partir do “isto é arte?” trazido pelo “readymade” de Duchamp, a arte tivesse sofrido um efeito de expansão infinito, espécie de big bang da sua própria condição.
Porém, talvez a questão que devemos colocar não passe tanto pelo essencialismo ontológico de um ser arte (sempre e em qualquer circunstância), mas pelo contextualismo de um haver arte (temporal e circunstancialmente definido), isto é, mais ligado a um quando que nos esclareça mais sobre as hipóteses de algo ser considerado arte em determinadas circunstâncias, ou, de outro modo, quando se verificam as condições necessárias para que a percepção e a consciencialização do efeito de arte se constituam numa realidade mais ou menos definida e identificável. As teorias institucionalistas de Arthur C. Danto e George Dickie, bem como a teoria construtivista de Nelson Goodman, contribuíram decisivamente para a compreensão da especificidade aglutinadora da “instituição arte” na valorização de qualquer objecto (ou não-objecto) como obra de arte. Deste modo, é necessário reconhecer a particular relevância dos valores interdisciplinares ou transdisciplinares que caracterizam a arte contemporânea desde o período pós-minimalista das chamadas neovanguardas. Período durante o qual se expôs à crítica política e social a especificidade particularmente poderosa da “instituição arte” no processo de simbolização e significação da obra de arte. E se, após o retorno do poder do mercado de arte nos anos 1980 e 1990, a arte contemporânea iniciou o novo milénio determinada por essa “viragem social” identificada por Claire Bishop[10] e, em certa medida, por Bourriaud, isso deveu-se aos efeitos ainda hoje exponenciais da “viragem linguística” iniciada com o gesto duchampiano do readymade. Sem o poder do “verbo” no universo do “visual”, dificilmente o questionamento dos “paradigmas” da arte (académica e modernista) e das suas “instituições” (museus, centros de arte, sistema galerístico) teria sido concretizado, abrindo a porta ao “interstício social” da sua contemporaneidade e aos diversos campos da afirmação política e social (em particular das minorias) no espaço de experiência e comunicação daquilo que persistimos em designar como arte.
Apesar do apogeu do efémero, do político e do social na expressão de uma globalização artística frenética e de efeitos imediatos, permanece ainda, na receção da obra de arte, o valor insinuante da intuição (sensorial e intelectual), ao qual se impõe a consideração, como defende Anna Maria Guasch, de “uma extensa base de informações culturais, um universo inteiro de leituras”, às quais é necessário responder (ou voltar a interrogar) com “uma série de chaves para descobrir o significado”. O valor do enigma, isto é, de uma poética das formas, dos signos, do significante e dos seus sentidos (mesmo que sociais e políticos) persiste, porém, depois de todas as declarações e tendências mais ou menos radicais concluírem o seu caminho. Neste sentido, a arte não será um objeto, um lugar, uma técnica ou uma ideia, mas um limbo indefinido que sugere apenas, na sua resignificação interpretativa, o que pode ser considerado arte. Afinal, a arte existe apenas quando perguntamos: “isto é arte?”, para logo depois considerarmos… “isto pode ser arte!” Só assim se reescreve a sua história e a nossa própria experiência.
[versão original: in Umbigo, nº 74, outubro de 2020]
1 | ↑ | Ana Maria Guasch, in AAVV, Conceptos de Arte Contemporáneo, Bogotá, NC-Arte, 2014, p. 17. |
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2 | ↑ | Cf. Rosalind Krauss, “A Voyage on the North Sea”: Art in the Age of the Post-Medium Condition, Londres, Thames & Hudson, 1999. |
3 | ↑ | Nicolas Bourriaud, Esthétique relationnelle, (1998), 3.ª ed. Paris, Les Presses du Réel, 2001, p. 13. |
4 | ↑ | Id. ibid. |
5 | ↑ | Ibid. |
6 | ↑ | Ibid, p. 47. |
7 | ↑ | Ibid, p. 48. |
8 | ↑ | Cf. Thierry de Duve, Kant after Duchamp, Cambridge, Massachustts, Londres, MIT Press, 1996. |
9 | ↑ | Ibid. |
10 | ↑ | Cf. Claire Bishop, “The social Turn: Collaboration and Its Discontents”, in Artforum, fevereiro de 2006. Cf. ainda de Claire Bishop, Artificial Hells – participatory art and the politics of spectatorship, Londres / Nova Iorque, Verso, 2012. |