2005 de bradar aos céus Ridley scott

de bradar aos céus

 

Depois de “Blade Runner” – que é apenas, diga-se, um filme razoável – Ridley Scott converteu-se rapidamente num dos realizadores de Hollywood mais previsíveis e inconsequentes. Encostado aos grandes estúdios, Scott tem vindo a revelar-se um cineasta menor, com tendência para filmes épicos como “Gladiador” ou agora este inenarrável “O Reino dos Céus”. De Roma a Jerusalém, Scott carrega no botão dos clichés e produz um amontoado de imagens já vistas, montadas em obediência à espectacularidade dos efeitos mais gratuitos, sem qualquer preocupação especial com a narrativa. Aliás, Ridley Scott realiza “O Reino dos Céus” recorrendo a um elenco muito pobre, apesar dos papéis secundários e algo apagados de actores com provas dadas como Liam Neeson ou Jeremy Irons, certamente destinado a um público adolescente ávido apenas de uma grande aventura de pipoca na mão. O actor principal, Orlando Bloom, consegue fazer de um personagem de acção empenhado nas Cruzadas, o mais triste e apagado cavaleiro da Idade Média. Por outro lado, a defesa de Jerusalém pelos cruzados ou a tomada da cidade por Saladino, o líder do inimigo “infiel”, serve apenas o pretexto de uma frágil mensagem de esperança humanista, supostamente ligada aos conflitos civilizacionais que há pelo menos dois milénios estão associados à história mártir da “Cidade Santa”. Da evidência de que todas as religiões se julgam portadoras da verdade, à evidência ainda maior de que o sangue derramado nessas batalhas imensas não produziram nunca qualquer paz duradoura, Ridley Scott consegue levar quase ao desespero quem entrou na sala de cinema para ver o filme.

Este é um filme medíocre, assente numa gigantesca promoção e numa distribuição massificada que acaba por contribuir para a uniformização do gosto dos mais incautos, pois a “máquina de guerra” hollywoodiana não pára de nos surpreender pela negativa. Aos “senhores da guerra”, isto é, aos presidentes das Majors, o que interessa é o lucro fácil, conquistado com recurso ao esplendor da tecnologia e a um impressionante vazio de ideias.

Tal como afirmou recentemente Woody Allen, durante o Festival de Cinema de Cannes, a esmagadora maioria dos filmes produzidos hoje nos Estados Unidos (o grande educador visual do nosso planeta…) “afinam pelo mínimo denominador comum […] perderam por completo o elemento humano e glorificam a tecnologia como um fim em si mesmo”. Desgostado com o cinema americano, Woody Allen acrescentou ainda: “Neste momento, olhamos os cineastas europeus à procura de líderes – nos EUA não temos guias. Espero que os europeus continuem a liderar e a guiar-nos no nosso caminho, porque dos Estados Unidos não nos chega nada”. Está quase tudo dito. Para um cinema mais profundo e inteligente temos a Europa a produzir filmes destinados quase sempre a uma minoria, e para um cinema “infantil” ou apenas vinculado à “Sociedade do Espectáculo” (Guy Debord) temos o empenho capitalista de Hollywood, com a grande indústria cinematográfica a produzir um sem número de filmes “iguais”, destinados sobretudo a conquistar receitas de bilheteira. As palavras críticas mas avisadas de Woddy Allen, parecem ecoar a desconstrução dessa mecânica de causa e efeito que alimentou a esperança racionalista mais inocente e que seria desde cedo satirizada por um dos maiores filósofos do Iluminismo.  Se Voltaire, na conclusão da sua obra-prima “Cândido ou o optimismo” (1759),  não rejeita por completo o futuro da humanidade, parece pelo menos substituir o mantra leibniziano de Pangloss, “tudo vai pelo melhor no melhor dos mundos possíveis”, por um preceito mais responsável e cauteloso: “é preciso cultivar o nosso jardim.” Por isso, a cada um de nós cabe a responsabilidade de denunciar uma situação asfixiante e cada vez mais acrítica, pois se deixarmos todo o espaço ao cinema do espetáculo, cairemos em breve no empobrecimento sem retorno a que nos conduzirá a falta de uma diversidade cultural que garanta as condições de produção de um cinema mais profundo na revelação do espírito humano.

 

 

“O Reino dos Céus” (EUA, 2004)
Realização: Ridley Scott.

Actores principais: Orlando Bloom, Liam Neeson,

Jeremy Irons e Eva Green

 

(in Vida Ribatejana, 18-5-2005)