1998 de picasso a dali modernismo em Espanha

de picasso a dali

 

A Espanha teve sempre o que Portugal não soube (ou não pode) ter: um ensino artístico de grande qualidade, disciplina e rigor, que permitiu formar várias gerações de artistas ao longo dos séculos XVIII e XIX, antes da grande expansão vanguardista do século XX. Mesmo no mais tradicional isolamento a que também foram votadas, as principais Academias de Belas-Artes da vizinha Espanha souberam criar ou cativar uma classe social empenhada nos seus resultados. De facto, uma burguesia sólida financeiramente e com um elevado nível de formação tornou mais consequente o trabalho das Academias e dos artistas que à sua volta se constituíam. Cidades como Madrid, Barcelona, Bilbau ou Santander, criaram verdadeiras comunidades de artistas que, entre viagens a Roma e Paris, podiam traçar uma obra sólida e disponível para a renovação formal e iconográfica do novo século. Desta forma, só compreendendo a dinâmica oitocentista das grandes cidades espanholas, poderemos entender a riqueza da sua produção artística, e o modo como foi atraída pelas grandes transformações sociais e artísticas do início do século XX.

Comissariada por Juan Manuel Bonet, director do IVAM de Valência e grande especialista da arte espanhola da primeira metade do século, a exposição agora apresentada no Museu do Chiado, intitulada: “De Picasso a Dali. As raízes da vanguarda espanhola, 1907-1936”, dá-nos uma panorâmica histórica sobre o contributo dos artistas espanhóis para o desenvolvimento do primeiro modernismo internacional, ao mesmo tempo que nos oferece uma visão de conjunto sobre o modo como a herança vanguardista foi sendo assimilada no interior da própria Espanha. Entre os que resistiram ao apelo da grande Paris dos anos 10 e 20, e aqueles que aderiram a essa vertigem europeia e internacional, Bonet reúne aqui um grupo de artistas e de obras que pontua, de forma sintética mas rigorosa, as várias correntes artísticas que marcaram as três primeiras décadas do século XX espanhol, defendendo aí uma particular pluralidade estilística que, em sua opinião, define e caracteriza a evolução histórica que vai do cubismo ao surrealismo. Juan Manuel Bonet defende ainda que, nesse percurso de contacto com as vanguardas, a Espanha foi apresentando adaptações locais, assimilações muito diferenciadas de região para região e que permitem compreender alguns dos movimentos criados paralelamente às vanguardas parisienses, como o Nuocentismo catalão (um classicismo teorizado por Eugenio D’Ors), onde se destacaram Manolo Hugué ou Joaquin Sunyer; o Ultraísmo (movimento vanguardista sobretudo literário mas que teve implicações nas artes plásticas), por onde vaguearam Francisco Bores, Pancho Cossío, Alberto Sánchez ou o uruguaio Rafael Barradas; o grupo de Vallecas (localidade dos arredores de Madrid) que pretendia, segundo Alberto Sánchez e Benjamín Palência, “rivalizar” com os grupos que trabalhavam em Paris; ou ainda o “realismo mágico”, acentuado por Bonet como um “retorno à ordem” na pintura espanhola, mesmo que já definitivamente marcado pelos conseguimentos formais do cubismo.

Por outro lado, apesar da força renovadora que desde cedo o cubismo representou, Bonet não esquece igualmente a importância do simbolismo, do impressionismo e do pós-impressionismo na gestação dessas vanguardas que viriam a reordenar, de uma forma ou de outra, a obra da maioria dos artistas espanhóis – não só os que viajaram até Paris, como também aqueles que, em Espanha, souberam introduzir na sua prática artística o estímulo e a nova dinâmica do modernismo. Nesta exposição, sugere-se um percurso pela maioria dos nomes que fizeram essa época de vanguarda e alguma tradição até à Guerra Civil espanhola.

Dessa constelação vanguardista que vai de Picasso a Dali, a exposição oferece-nos algumas obras significativas. Dos “parisienses” como Picasso, temos uma Cabeça de Homem (1913-14), marcada pela sensibilidade de um cubismo sintético onde a cor e a textura são cada vez mais assumidas como expressão dessa linguagem. Já de 28 é essa Figure (Também conhecido como Tête) que Picasso soube adivinhar no contacto com o surrealismo biomórfico de Miró, e que aqui se apresenta no perfil esquemático e anguloso de uma cabeça-silhueta que revela a problemática picassiana da representação frontal e lateral da figura.

De Juan Gris, o mais puro dos cubistas, e o mais amado por D. H. Kahnweiler (o “marchand” do cubismo), são apresentados três trabalhos: O arlequim (1918), que revela já um cubismo sintético e monumental, e duas “naturezas-mortas” de 1919, onde são ampliados alguns dos rasgos formais do cubismo, não só pela desordenação do ilusionismo da perspectiva, como pelo colorido (longe da frieza do período analítico) dessa representação sempre facetada e decomposta nos seus elementos. Para além destes, destaque também para uma escultura de Júlio González. Homme Cactus (1939), sintetiza o melhor da escultura cubista, numa tendência formal que sugere ao mesmo tempo não só um imaginário surrealista como um reducionismo abstractizante muito próprio.

O mais excêntrico Salvador Dali é aqui representado por três obras que nos dão a clara ideia da sua evolução, desde a influência de Picasso até ao mais puro do seu surrealismo, passando por uma composição quase abstracta que parece evocar a presença de um Jan Arp. Os outros dois surrealistas espanhóis que fizeram parte do grupo formado em 1924 por André Breton, são Oscar Domínguez, com um cósmico Souvenir de Paris (1930), e Joan Miró, com Aviat L’Instant, um projecto de capa para uma revista franco-catalã, onde se pode observar ainda a influência de uma certa atmosfera da “Arte Déco”, e Hirondelle (1937), uma pintura marcada já pela subtileza formal e intimista que viria a caracterizar a sua obra.

Dos artistas espanhóis de menor visibilidade deste período, destaque sobretudo para o autodidactismo de Leandre Cristòfol, e a sua particular interpretação do surrealismo, bem como para a depuração formal das abstracções de Luis Fernández, ou do uruguaio Joaquín Torres García.

Por último, será importante para o visitante estabelecer uma leitura comparada entre estas obras e a arte portuguesa do mesmo período que o Museu do Chiado nos propõe, em nova montagem condicionada, uma vez mais, por razões de espaço. Apesar de algum pretensiosismo espanhol (sobretudo visível na organização do catálogo), esta é uma exposição fundamental para melhor compreendermos as raízes da sua vanguarda.

 

(versão original: O Independente, 10-8-1998)

 

(imagem: Rafael Barradas, Hombre en el Café, 1923)
© Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia