2005 Desvio Cédric Kahn

Desvio

 

Um homem sofre, sente a humilhação diária de uma vida conjugal que permanece num impasse. Perante o vazio que trepa a alma, Antoine (magnífico Jean-Pierre Darroussin) sente o apelo desesperado da auto-estima, provocando uma ruptura (momentânea que seja) com a sua mulher Hélène (segura interpretação da elegantíssima Carole Bouquet). Ela é uma profissional de sucesso, que não pára um segundo, enquanto ele vai definhando no marasmo rotineiro de uma companhia de seguros. Antoine encontra no álcool um refúgio, (evidente desde a longa espera que o retém num café parisiense) bebendo compulsivamente para combater a sua frustração. Ele espera a mulher que demora mais do que o previsto por atender às muitas solicitações de última hora. Ele bebe para ganhar coragem de se impor à situação. Quando Hélène chega, por fim, vemo-la despedir-se alegremente de um homem de negócios, desenhando-se desde logo uma insinuante sombra de adultério. O clima fica desde aí bastante tenso, prolongando-se na preparação e no início da viagem que os deverá levar a Tours, onde estão os seus filhos numa colónia de férias. Acontece que Antoine não resiste ao trânsito intenso da auto-estrada, com a marcha dos automóveis a assemelhar-se a uma monótona viagem de comboio marcada pela multiplicação dos primeiros sinais vermelhos: as luzes de presença dos automóveis que seguem o mesmo caminho. Antoine faz então o primeiro desvio (literal e simbólico), saindo da povoada auto-estrada para procurar uma via alternativa, mais rápida e inesperada. Mas a demanda de Antoine é determinada pela necessidade de parar para beber ainda mais, num qualquer bar à beira da estrada. Vêem-se então outros sinais vermelhos, os dos néons que seduzem o condutor. Antoine esconde de Hélène o que já bebeu, mas esta rapidamente se apercebe do estado alterado do marido. A discussão torna-se inevitável, e Antoine sabe que desse modo pode tomar o controlo da situação, afinal é ele que dirige esse veículo fetichizado que é o automóvel. A bebida leva-o a perder as coordenadas do caminho, mas o seu desvio não é apenas cartográfico, é também e sobretudo de ordem emocional ou mesmo existencial. Ele está na encruzilhada da sua vida futura e, perante o caminho desconhecido, tem de tomar decisões. Então, Antoine resvala para a ruptura, parando uma vez mais para beber. Hélène ameaça que continuará de comboio a viagem para reencontrar os filhos. A partir daí, o casal separa-se e o suspense deste intenso e maturado filme de Cédric Kahn eleva-se numa espiral de surpresas que o torna uma das grandes referências do cinema francês dos últimos anos. Cresce então uma magnífica sombra hitchcockiana que envolve ainda um foragido da prisão (Vincent Deniard) que acompanhará a segunda parte da viagem desse solitário perdido e abandonado que é Antoine. Depois de uma intensa série de desvios que aproximam “Sinais Vermelhos” dos filmes de série B, dos “road movies” ou mesmo dos “thrillers gore”, onde há violência, sangue, alienação, dúvida e uma noite profunda nessa floresta imensa que mistura o sonho com a realidade, Antoine acorda do pesadelo num caminho rural, pedindo ajuda a um agricultor (numa cena que evoca o impasse de Cary Grant antes da mítica fuga num milheiral em “Intriga Internacional”) que o conduzirá à aldeia mais próxima para arranjar o carro e tomar contacto com Hélène, desaparecida desde o momento da ruptura. Com o dia chega também a consciência de uma atitude irreflectida, segue-se uma inesquecível sequência em que Antoine telefona para todo o lado à procura da sua mulher. Por fim encontra-a num hospital de província, ferida na cabeça e na alma, e onde lhe é revelado, progressivamente, a longa história da noite anterior. A revelação liga assim, num sentido macabro e surpreendente, todos personagens na mesma viagem, marcada pelo desvio e a fuga (Antoine faz um desvio à sua submissão conjugal; Hélène foge do marido ébrio; e o estranho evadido da prisão, que ficará indelevelmente ligado ao casal, foge do cárcere depois de um hipotético desvio às normas da sociedade).

Costuma dizer-se que depois a tempestade vem a bonança, e apesar da infelicidade desencadeada pelo desespero de Antoine, Hélène acaba por perdoá-lo, reconhecendo afinal que o traumático episódio fortalecera a moral e união do casal, superando de uma vez os “sinais vermelhos” que pareciam ensombrar não só o destino dessa fatídica viagem, como o próprio futuro do seu matrimónio.

Baseado numa novela de Georges Simenon, intitulada “Feux Rouges” (1953), o último filme de Cédric Kahn convoca livremente todo um universo de ambiguidade, estranheza e suspense que lembra ainda, por comparação inevitável ao nível da atmosfera narrativa, esse magnífico e obrigatório filme que é “Detour/Desvio” de Edgar G. Ulmer, realizado no já longínquo ano de 1945.

 

“Sinais Vermelhos/Feux rouges” (França, 2004) ****
Realização: Cédric Kahn

Actores principais: Jean-Pierre Darroussin, Carole Bouquet e Vincent Deniard