Num espaço exíguo para qualquer retrospectiva, o Museu do Chiado prossegue, com rigor, a revisão crítica de alguns dos artistas que, ainda no activo, iniciaram o seu percurso na década de 50. Depois de Jorge Vieira e Nikias Skapinakis, é agora a vez de Rolando Sá Nogueira (n. 1921), artista atento a um quotidiano íntimo e contemplativo que ainda hoje mantém aceso o desejo de uma prática: a pintura.
Convém desde já esclarecer que parecem-nos despropositadas algumas críticas levantadas recentemente, alegando uma pretensa disparidade entre a amplitude retrospectiva do próprio catálogo – que inclui assinaláveis estudos de María Jesus Ávila, Idalina Conde e Rui Afonso Santos – e o reduzido número de obras presentes nesta exposição. No seu conjunto, a actual mostra pontua razoavelmente as fases mais decisivas do percurso artístico de Sá Nogueira. A selecção dos seus trabalhos essenciais dispensa, de um modo geral, a ideia de quantidade ou totalidade da obra, argumentos aparentemente fundamentais quando se trata de uma retrospectiva.
Valores de uma pintura
Alheio às polémicas que animaram o debate intelectual e artístico de finais de 40 e meados de 50, estabelecidas entre surrealismo e neo-realismo e, pouco depois, entre figuração e abstracção, Sá Nogueira inicia desde aí um percurso paralelo, realizando uma pintura organizada em torno de valores plásticos conciliadores, situados numa sensibilidade lírica, de raiz naturalista, que convoca simultaneamente ora a influência dos pintores de Lisboa, de Carlos Botelho a Bernardo Marques, ora a herança e o estilo de um Pierre Bonnard, no tratamento da cor e no intimismo velado das cenas de interior, ou de um Modigliani, no modo como trabalha o retrato e a figura humana, para além da presença ainda tutelar de Henri Matisse, no modo equilibrado de entender as relações cor-forma. Desse período destacam-se as pinturas que retratam o quotidiano dos cafés de Lisboa (Café A Brasileira, 1961) e o lirismo suave de obras como Jardim, (1957) ou Menina com Gato (1955), aí se reconhecendo ainda a influência dominante que o meio artístico parisiense exercia sobre os artistas portugueses, patente desde logo no tardio entendimento de uma prática pós-impressionista dominada pelos valores lumínicos sugeridos pela capital.
No início dos anos 60, a obra de Sá Nogueira vai orientar-se a partir da descoberta essencial dessa nova aventura que lhe oferece a cidade de Londres, o destino alternativo a uma Paris mais solicitada pelas bolsas da Fundação Gulbenkian, (desejo de uma maioria que via ainda na capital francesa o centro da arte internacional). Mas era Londres, e não Paris, que apresentava já os valores essenciais da estética que iria dominar a década. Efectivamente, Sá Nogueira receberá da Pop britânica a informação decisiva responsável pela definição mais conseguida de todo o seu trabalho, adoptando então as técnicas da colagem (até aí voluntariamente dispensada pelo pintor) e da fotomontagem como modo fragmentário de manipulação da imagem, num laborioso processo de acumulação de referências, apontado mesmo como pioneiro no contexto da arte praticada em Portugal (Cf. María Jesús Ávila, in Catálogo).
Nesses trabalhos dos anos da Slade School of Arts, o lirismo do quotidiano dos cafés de Lisboa dá lugar ao tímido cromatismo pop dos “pub’s” londrinos. Essas pinturas de 1963-64 anunciam já, na sua plasticidade, o desejo velado da colagem. Em Retrato de Salazar (1964) – obra só assinada depois do 25 de Abril de 1974 – é nítida a estruturação fragmentária do plano do quadro, ainda realizada no entanto segundo as técnicas características da expressão pictórica, que mais tarde evoluirão em direcção à colagem, a partir daí assumida enquanto técnica fundamental de composição. Na colagem, os vestígios de uma sociedade de consumo característica da vida contemporânea introduzem no plano da tela esse quotidiano que antes era apenas representado. Contudo, Sá Nogueira nunca abandona o referente e a prática da pintura, mantendo sempre presente o tratamento gestual característico da sua pintura, ou os escorridos que actuam em complementaridade com a colagem. Podemos aí reconhecer nitidamente a influência de um Richard Hamilton (na série L’Étude Académique – 1965, que Sá Nogueira mantém em título francês…) ou de um Larry Rivers (na série Gitanes, 1967), enquanto sinais de uma sensibilidade pop determinante para o tratamento formal desenvolvido, em pinturas que abrem definitivamente o domínio de um novo quotidiano apreendido.
De regresso ao nosso país, Sá Nogueira trabalha de forma continuada esses valores trazidos de Londres, revelando também ao mesmo tempo uma subtil ironia que, no entanto, não chega a manifestar qualquer crítica política explícita, visível somente a partir dos trabalhos da década de 70, sobretudo com as fotomontagens pictoricamente trabalhadas, como as da série Fá-los ouvir a tua corneta, negro! (1973-74). O valores temáticos são aí assumidos como forma denunciatória de problemas sociais comuns à vida do nosso país. O racismo, uma guerra colonial fratricida e inconsequente, bem como as reivindicações do feminismo dos anos 70, são as marcas mais evidentes de uma pintura de crítica social declarada. Já antes, com as obras da série Shunga (1969), inspiradas no erotismo de antigas estampas japonesas, e com Erotropo (1969-70) – esse conjunto que concilia o acrílico e a fotografia impressionada sobre a tela, numa técnica pouco comum entre nós – Sá Nogueira apresentara o desejo tímido de uma libertação temática, através da utilização do referente da pornografia, aí dissimulada em combinatórias de pintura-fotografia que anulam quer a eventual “perversidade” das imagens originais, quer o código perceptivo aparentemente dominante da imagem fotográfica. Também aí, como até hoje, Sá Nogueira opta pela assunção de uma forte visualidade pictórica como modo parodoxal de confirmação de todas as suas experiências artísticas.
(versão original: in Arte Ibérica, Maio de 1998)
(imagem: Sá Nogueira, Shunga (da série), 1969)