O próprio Jim Jarmusch confessa que este filme foi feito para Bill Murray. O actor mais “cool” da actualidade, protagonista igualmente de “Lost in Translation” (2003) de Sofia Coppola e de “Um Peixe Fora de Água” (2004) de Wes Anderson, veste aqui a pele de um Don Juan aposentado, inerte, exaurido pelo desgaste de uma vida de solteirão. Apesar de ter tido muitas mulheres, Don Johnston (Bill Murray) vive o vazio da indiferença dos afectos, perdido nos meandros de um rumo ainda por revelar.
O filme começa com a viagem de uma carta de envelope cor-de-rosa que atravessa os EUA para desembocar na caixa de correio de Don. Segue-se o abandono da última mulher do nosso protagonista, que não suporta mais o papel de amante na vida de um homem que nem casado é. Quando Julie Delpy deixa a casa, Don vê filmes antigos na televisão e esboça uma tímida reacção, cumprindo os mínimos emocionais para quem acaba de ser abandonado. Para ele, essa é apenas mais uma daquelas cenas a que já se habituou. Depois do abandono, Don mergulha de novo no sofá, dormindo como se nada fosse. Acorda algumas horas depois e cruza-se finalmente com a carta cor-de-rosa, vendo-se inadvertidamente confrontado com uma hipotética paternidade que, todavia, pouco ou nada parece alterar o seu quotidiano, não fosse a insistência de um vizinho etíope que alimenta uma dupla paixão por histórias policiais e pela Internet e que vê nessa carta um importante mistério de repercussões existenciais. Winston (Jeffrey Wright) acaba por convencer o vizinho Don de que não pode deixar de procurar as mulheres que poderiam ter escrito essa carta anónima. Pouco interessado no assunto, Don deixa-se contudo levar pelas investigações de Winston, cedendo finalmente à ideia de reencontrar as quatro mulheres que com ele poderiam ter tido um filho, vinte anos antes.
É então que “Broken Flowers” assume o estatuto de “road movie” (numa alusão a Wim Wenders, uma das principais filiações cinematográficas de Jim Jarmusch), conduzindo Bill Murray, ao ritmo narrativo de quatro hilariantes capítulos, a um estranho reencontro com essas mulheres que representam também, cada uma delas, uma certa marginalidade norte-americana. De ramo de flores em punho, atordoado pela coragem subitamente desencadeada, Don aborda sem sucesso as suas antigas companheiras, realizando essencialmente, aos poucos, uma espécie de viagem em torno de si próprio. Com efeito, a pretexto de confirmar a veracidade da sua paternidade, Don realiza finalmente, e pela primeira vez na sua vida, uma verdadeira etapa de auto-descoberta existencial. Perdido no eco de um passado que não volta, mas que o consciencializa da passagem do tempo e dos afectos, Don regressa a casa sem respostas sobre o mistério da carta cor-de-rosa, desejando todavia, de um modo quase desesperado, encontrar um filho que aí se prometia ou anunciava. Mas é claro que esse filho não existe, funcionado apenas como uma espécie de “clic” emocional que abala a vida entediante de Don Johnston. Entre o humor e o drama pós-modernos, “Broken Flowers” é uma belíssima e subtil homenagem a Jean Eustache, que marca assim o regresso de Jim Jarmusch, um dos mais interessantes realizadores independentes norte-americanos.
“Broken Flowers/Flores Partidas” (EUA/França, 2004) ****
Realização: Jim Jarmusch
Actores: Bill Murray, Jeffrey Wright, Sharon Stone, Jessica Lange, Julie Delpy, Frances Conroy, Tilda Swinton.