2005 dor maior Marco Martins

dor maior

 

No seu contido dramatismo, “Alice” é um filme singularmente doloroso, triste e cinzento, como as ruas dessa Lisboa sem luz que Marco Martins fez questão de observar.

O tema do desaparecimento de um filho constitui-se “a priori” como forte conteúdo sobre a dor indizível: a ausência do amor maior que na vida pode existir. Por isso, o jovem realizador português teve o cuidado de evitar uma narrativa de excesso melodramático, optando por equilibrar a sua primeira longa-metragem num registo sóbrio, ainda que magoado, sem ceder ao facilitismo compulsivo e invasor da dor alheia. Ele sabe afinal que, apesar dos efeitos dramáticos na construção dos seus personagens, haverá sempre uma barreira entre a dor real e a sua representação. Ao preservar essa fronteira, baseando-se num caso verídico e bastante mediatizado – o desaparecimento em 1997 do jovem Rui Pedro – Marco Martins apresenta-nos a sobrevivência possível de um jovem casal que acaba de perder a sua única filha. Alice é por isso, desde o início e até bem perto do fim, um personagem ausente, à volta do qual se estrutura toda uma narrativa feita de rotinas e perseverança. A sua ausência marca o ritmo da “via-sacra” de Mário (magnificamente interpretado por Nuno Lopes), um pai arrasado pela dor, mas firme na demanda obsessiva de uma esperança no reencontro. Contra a inoperância das autoridades e recorrendo a câmaras de vídeo estrategicamente colocadas nas principais ruas da cidade, Mário procura identificar, por entre a imensa mole humana que todos os dias aí se desloca, uma pista, um sinal que seja da sua filha desaparecida. Acompanhamos assim diariamente a persistência determinada de Mário em manter uma luz que contraste não só com o desespero da sua mulher (excelente desempenho de Beatriz Batarda), que não aguenta a dor nem a realidade e se refugia em barbitúricos, como essa noite escura que se abateu sobra as suas vidas.

Mas, ao fim de alguns meses de insucesso, as ajudas e solidariedades amigas vão-se desvanecendo, dando lugar a uma outra resistência: continuar a vida que lhes resta. Mário não desiste contudo, alimentando-se do seu próprio desejo ao ponto de vislumbrar uma pista nessas muitas horas de filme que todas as noites examina até à exaustão. Deixa então de deambular com os seus folhetos e passa a investigar esse sinal que momentaneamente lhe devolve a esperança, apesar da racionalidade das imagens (uma menina que, tal como Alice no dia em que desapareceu, veste um inesquecível casaco azul) nos avisar desde logo tratar-se de uma falsa pista. Após a fortíssima desilusão dessa última esperança, resta a mágoa, o sofrimento e a urgência de um tempo que se esgota, conduzindo Mário à desesperança dos dias que passam sem notícia alguma.

Evocando ainda uma famosa sequência de “Doutor Jivago” (1956) de David Lean, a cena final deixa uma marca indelével, quando a pequena Alice, de cabelo curto e guiada pela mão de outra pessoa, se cruza de muito perto e inadvertidamente com Mário, agora um pai ausente e confuso. Imbuído de um estranho pressentimento, este pára num longo instante de indecisão, deixando o espectador em “suspense”, quase em desespero perante a hipótese de um final feliz. Mas, para tristeza de todos, ao vacilar entre o renovar da esperança e o medo de uma nova e irrecuperável decepção, Mário perde essa derradeira e inesperada oportunidade de reencontrar a sua Alice.

 

 

“Alice” (Portugal, 2004) ***
Realização: Marco Martins

Actores principais: Nuno Lopes, Beatriz Batarda, Miguel Guilherme, Laura Soveral, Ana Bustorff e José Wallenstein.