A trama narrativa do último filme de Woody Allen obriga-nos a recordar as duas grandes fases do realizador independente mais popular do mundo: a primeira, marcada pelas comédias do absurdo, onde a obsessão do tema do sexo e a caracterização dos estereótipos sociais definiram um novo estilo de humor, ficaria ligada a títulos inesquecíveis como “Bananas” (1971), o “ABC do Sexo” (1972) ou, já próximo de um outro registo, “Annie Hall” (1977) e “Manhattan” (1979) – estes conciliavam o humor com a sofisticação maníaco-depressiva dos nova-iorquinos, criando assim a imagem de marca do realizador; e a segunda, dominada já pela análise psicológica dos personagens – construídos numa intensa expressão dramática que fazia ainda homenagem a Ingmar Bergman, uma influência tardia mas bastante fecunda – seria responsável por películas como “Hannah e as suas Irmãs” (1986), “Setembro” (1987) e “Uma Outra Mulher” (1988).
Deste modo, o novíssimo “Melinda e Melinda” reafirma, na sua circularidade pulsional, entre o drama e a comédia, os dois registos cinematográficos mais íntimos a Woody Allen, numa leve mas sedutora construção de hipóteses duplas discutidas por um grupo de amigos como forma de aplicação narrativa do mesmo argumento. Enquanto um deles defende a análise dramática e a sua pretensa profundidade, o outro apresenta uma versão risível e bem disposta, ambas apresentando-se como a outra face da mesma moeda, isto é, da vida. Na verdade, Woody Allen convida-nos a relativizar o sentido da vida, os seus eventuais dramas ou comédias, registando a invariável persistência das perspectivas diferentes ou até opostas que temos do mesmo assunto. O ponto de partida é a acção desesperada de Melinda (Radha Mitchell), uma mulher na casa dos trinta anos, que invade o espaço e a vida dos seus amigos depois de uma ruptura radical, forçada e neurótica com o seu passado recente, marcado por um casamento desfeito, apresentando-se a partir daí todo um inevitável rol de traições e lamentos, bem como a necessidade de superação do trauma, na busca desenfreada de uma nova aventura amorosa ou mesmo de uma relação mais séria. Todavia, o enredo para o exercício narrativo aqui desenvolvido, pontuado sempre pela disputa entre a comédia e a visão dramática dos acontecimentos, parece ficar muito aquém da sofisticação e humor dos diálogos do realizador norte-americano – afinal, uma das suas principais especialidades. Com efeito, ao gozo do exercício falta a chama de uma narrativa mais viva, divertida ou plena de dramatismo, que fizesse deste jogo especular uma verdadeira e inesquecível lição sobre o poder do argumento e da realização em cinema. Apesar de uma ou outra situação mais hilariante, que esporadicamente consegue arrancar um sorriso da plateia, este “Melinda e Melinda” é apenas mais um episódio na já longa filmografia Alleniana. Longe vai o ano de 1997, data desse prodigioso e cáustico “As Faces de Harry/Deconstructing Harry” (1997), o último grande filme de Woody Allen. Desde essa altura, o realizador nova-iorquino apenas deu um ar da sua graça em “Celebridades/Celebrity” (1998), perdendo-se pouco depois numa luta contra o tempo, filmando, em média, um filme por ano, diminuindo assim a luz dessa magia tão particular, pontuada pela ironia, o humor e o drama da vida, que fez dele uma figura ímpar no mundo do cinema.
“Melinda e Melinda/Melinda and Melinda” (EUA, 2004) * *
Realização: Woody Allen
Actores principais: Radha Mitchell, Will Ferrell, Jonny Lee
(in Vida Ribatejana, 26-1-2005)