2005 Em busca da verdade Ingmar Bergman

Em busca da verdade

 

Como em todos os filmes de Ingmar Bergman, estamos de novo perante o abismo da solidão, do recalcamento, da angústia, da fé, do mistério da vida e do amor, e por isso no mais insondável do ser humano, “em busca da verdade” (título de outro filme de Bergman, realizado em 1961), como se de uma maldição se tratasse, enquanto caminhada, ou destino enigmático. Esta é mais uma obra-prima absoluta de Bergman, o maior dos realizadores vivos, que volta a filmar para o grande ecrã, mais de vinte anos após “Fanny e Alexandre” (1982), o último título da sua longa filmografia, apesar de lhe conhecermos uma ou outra incursão pela imagem cinematográfica destinada à televisão. Numa intitulação que traduz a justa homenagem do realizador sueco à magnificência de J. S. Bach enquanto músico da experiência divina, “Saraband” é por certo um dos grandes filmes estreados neste ano de 2005.

Tomando como ponto de referência “Cenas da Vida Conjugal” (1973), película igualmente protagonizada por Liv Ullmann e Erland Josephson, Bergman filma num sublime e ascético “efeito teatro” (sublinhado pela beleza da imagem digital) a sua obsessão maior: a verdade que se esconde no comportamento humano, ou a sua profunda psicologia, numa serena desesperança que serpenteia e envolve os personagens, como excelsa “sarabanda”, essa antiga dança lasciva que arrasta a verdadeira revelação do amor. A dança dos quatro personagens (dois casais) é uma transmissão do desespero, de rosto em rosto, de lágrima em lágrima, em busca de um amor impossível, o amor de Anna – o personagem ausente – morta dois anos antes e presente apenas como fantasma nas fotografias espalhadas pelas duas casas visitadas. Anna, o amor não só perdido mas sobretudo incompreendido e proibido de três personagens – do marido Henrik, da filha Karin e do sogro Johan – revela-se então pela experiência mística da dor e da ausência, como nas cenas de Henrik e Karin na cama, antes de adormecerem; na discussão de mácula recalcada entre pai e filho; ou na confissão de Karin a Marianne, nessa frágil e árdua releitura da carta de Anna, onde se percebe a relação de amor incestuoso que existe entre pai e filha (Henrik e Karin) e que Anna escondera de si mesmo e dos outros pelo seu incondicional amor aos dois. “Dói muito…” diz Karin, sem ficar explícito de chora apenas pela ausência da sua mãe ou ainda pelos limites da sua liberdade, da teia obsessiva montada pelo seu próprio pai, outro personagem bastante frágil, que acaba por se suicidar. “Dói muito…” poderiam ser igualmente as palavras de Johan, quando este se despe numa “diarreia de angústia” para se deitar com Marianne, numa cena onde a lágrima furtiva no rosto de Johan simboliza o seu amor por Anna, desmedido e recalcado ao longo de uma vida, e que é o centro de tanta infelicidade e incomunicabilidade no seio de uma família isolada do mundo e entre si. Aliás, a libertação final de Karin, (depois da maravilhosa cena em que esta corre pela floresta e se transforma naquela que terá mais tarde toda a coragem) começa na sua recusa em tocar “Saraband” – o quarto andamento da quinta “Suite para Violoncelo Solo” de Bach – para contar ao pai, seu tutor e amor, a decisão de integrar uma orquestra, abandonando o sonho paterno de uma carreira a solo (que nem ele nem Anna conseguiram ter), desenhando-se aí a metáfora perfeita sobre o estigma da solidão (solista) e do isolamento de toda uma família que optou por se afastar da cidade, para viver a ilusão “solista” do aplauso geral, sem perceber que a integração na sociedade (orquestra) é determinante para uma vida equilibrada e sem mágoa maior. Karin recusa esta “sarabanda” lasciva e doentia, fugindo em direcção ao mundo, deixando para trás o que lhe resta de uma ligação familiar à sua mãe Anna, esse amor ausente, a preto e branco, que domina toda a narrativa e paira como alma que re-liga (religião) todos os personagens e lhes devolve, a cada instante, a imagem do desamor que tomou conta das suas vidas. Uma vez mais, em Bergman, a espiritualidade religiosa perpetua-se por entre o amor humano, é entre todos nós que se opera “o silêncio” (1963) do milagre, e aqui é Anna que faz de Deus, ícone do amor todo-poderoso e omnipresente.

No epílogo, contudo, após a estonteante viagem de um prólogo e dez cenas, Bergman leva Marianne a visitar a sua própria filha, que vive mergulhada num autismo profundo (a verdadeira solista que metaforiza deste modo o isolamento de todos os outros), prometendo ainda uma janela de esperança, nessa lágrima de afinidade que finalmente se estabelece entre ambas, e entre nós.

 

“Saraband” (Suécia, 2004) * * * * *

Realização: Ingmar Bergman

Actores principais: Liv Ullmann, Erland Josephson,

Börje Ahlstedt e Julia Dufvenius

 

(in Vida Ribatejana, 2-2-2005)