No início do século XXI, “Entr’acte” (1924), essa correria louca pelos telhados e ruas de Paris, remete-nos ainda para uma extraordinária experiência do humor burlesco, marcada pela alucinação e o ritmo de um conjunto de imagens improváveis, (in)coerentemente traduzidas como espécie de (anti)narrativa sobre o fluxo, as insuspeitas passagens, entre a vida e a morte. O destino de um funeral descontrolado serve de mote a uma das mais hilariantes aventuras cinematográficas de sempre. Metáfora de uma metamorfose comum a todos os mortais, o funeral assume neste filme uma centralidade simultaneamente poética e provocatória. Um funeral é sempre, afinal, uma espécie de “intervalo”, passagem “entre actos”, que se despede da vida (simbolizado pelo corpo a enterrar) e abraça a morte, a longa noite da eternidade. Mas a escolha temática do ritual funerário não resulta aqui, todavia, de qualquer excesso do acaso, essa estratégia tão ao gosto das experiências Dada. Antes pelo contrário, se na cultura ocidental o funeral esteve sempre associado a um acto público de pesar, regulado pela seriedade comportamental e a manifestação mais ou menos genuína dos sentimentos, “Entr’acte” levanta o véu sobre essa dimensão natural e social que assinala o fim da vida, introduzindo de modo intencional uma paródica subversão do seu significado trivial. Para René Clair, Francis Picabia e Erik Satie, só a magia soturna do funeral podia simbolizar uma relativização da vida e dos seus mistérios. Ao apresentar o funeral como metáfora de uma zona de fronteira – essa “derradeira viagem” para a “última morada”-, o filme promove uma surpreendente atmosfera de liberdade, exercitando uma espécie de desdramatização sobre o sentido vida. Tal como todo o acto de criatividade Dada, “Entr’acte” não hesita em afrontar a moral dominante para encontrar ou alimentar outra leitura sobre o homem do século XX. Contra o pesar, o risível; em vez do sofrimento, a alegria, ou mesmo, a euforia. Desse modo, as surpresas estético-formais e de comportamento deste funeral conquistam o receptor, envolvendo-o numa hipnose estonteante, assegurando-lhe apenas uma subtil mensagem, a de que, para contrariar ou aceitar a morte, será talvez necessário libertar o espartilho dos códigos sociais para uma constante celebração da vida. No contexto das acções radicais de vanguarda, “Entr’acte” foi já interpretado como uma metáfora subtil sobre a “morte da arte”. Ou melhor, sobre a morte e a ressurreição da arte. O processo declarativo identificado com as vanguardas históricas, que propunha em termos genéricos o fim da pintura, traduzir-se-á em “Entr’acte” numa espécie muito particular de ironia sobre qualquer pretensão de seriedade no que então se podia identificar como arte. Ou seja, o cortejo fúnebre que as inúmeras personagens acompanham, ou tentam acompanhar, ao longo de todo o filme é, de alguma forma, não só a imagem da última jornada da vida humana, como ainda, e até certo modo, de um determinado paradigma de arte, identificado sobretudo nessa época com a expressão subjectiva da estética romântica. Marcel Duchamp chegou inclusive a sugeri-lo numa das suas entrevistas e, na verdade, este filme mantém até hoje uma aura que favorece toda uma plêiade de interpretações. A sua atmosfera enigmática pode ser identificada, desde logo, no próprio título escolhido. Como muitas outras experiências de criatividade Dada realizadas em Paris no início dos anos 20, “Entr’acte” revela-se uma espécie de “interferência” (“entre actos”, entre o feminino e o masculino, entre a união do par de dança, entre os movimentos em câmara lenta e a aceleração excessiva, entre o teatro e o cinema, entre a vida e a morte) de carácter nonsense junto de um outro espectáculo, neste caso, no intervalo do ballet “Relâche” – o resultado de uma colaboração entre Jean Borlin, coreografo e bailarino dos “Ballets Suédois” (dirigidos então por Rolf de Maré), Erik Satie e o poeta Blaise Cendrars. Francis Picabia propôs então, nessa altura, uma intervenção para o grande intervalo desse espectáculo. No espírito das manifestações Dada e com a colaboração do elenco dos “Ballets Suédois”, Picabia idealizou um filme destinado a “faire sortir le public de la salle”. Para o efeito, confiou a realização de “Entr’acte” a René Clair, autor em 1923 de uma média metragem em tons oníricos: “Paris qui dort”. Apostando essencialmente em soluções formais de grande experimentalismo, Clair fará de “Entr’acte” uma referência maior do cinema mudo do início do século XX. Na verdade, apesar de se afastar em parte de uma orientação onírica, o seu carácter inadevertido de rasgo e surpresa prevalece como expressão maior de um poder baseado nesse espírito de provocação e “choque” mais de acordo com as intenções originais do grupo Dada parisiense, liderado ainda, nesses anos, por Tristan Tzara, o poeta romeno isolado pela acção crescente do grupo surrealista de Breton. Também por essa via, “Entr’acte” surgirá ainda como imagem do funeral não só da arte como do próprio dadaísmo. Em certa medida, Picabia esperava que o filme projectado no intervalo de “Relâche” assumisse apenas uma presença de divertimento nonsense, sem compromissos de qualquer ordem, antevendo ainda que suscitasse pouca atenção entre a plateia ávida de uma pausa. Porém, o projectado efeito de neutralidade dissuasora de “Entre’acte” transformar-se-ia num momento de aclamação espontânea, não tanto pelo imediato reconhecimento do seu valor artístico, mas essencialmente pelo exuberante dinamismo anti-narrativo que as suas imagens desde o início promoveram junto de uma plateia verdadeiramente surpreendida. Se, tal como defende Thomas Elsaesser, “um filme é Dada pela sua capacidade de provocar o choque”, então “Entr’acte” é uma experiência de cinema de contornos dadaístas, que promove o choque e a rutura, inviabilizando qualquer interpretação mais expectável, na referência maior ao fluxo do tempo (simbolizado ainda, em algumas cenas, pelo sopro do vento), apontando assim uma leitura de humor sobre o sentido da vida e a sua matriz de insondável mistério. Um sentido e um mistério aqui vedados tanto à fé como à ciência. O que parece ter norteado os autores de “Entr’acte” foi, antes, o espírito de uma crítica bem-humorada sobre os valores da sua época, como espécie de blague sem utopia nem redenção, marcada pelo distúrbio contínuo sobre qualquer tipo de estrutura social. O ilógico vertiginoso produzido pela união das várias cenas – compostas na sua maioria por escassos 10 a 30 segundos – sustenta ainda, de outra forma, a ideia de que o filme pensado por Picabia e realizado por René Clair esteve sempre associado ao fluxo aleatório de um cortejo hilariante e libertário, que faz alusão à inevitabilidade da morte, como ao risível desse intervalo a que chamamos vida. E, apesar de todos os risos, ritmos, correrias ou euforias partilhadas, as avenidas nocturnas, as praças desfocadas e os telhados invertidos de Paris, na sua vertiginosa proliferação de chaminés e águas-furtadas, marcam a memória antecipada de uma cidade amada pelas vanguardas e por aqueles que buscaram, em vão, muitos anos depois, a poética ineludível dos seus vestígios.
[versão original, in AAVV, As artes visuais e as outras artes – As primeiras vanguardas, Ciências da Arte – Actas das Conferências, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa, 2007.]