Alguns artistas (há) que pintam no Inverno para a SNBA e no Verão para o SPN,
segundo o receituário e os prémios dos regulamentos […] Cada um procura onde lhe parece mais fácil o disfarce de uma assimilaçãozinha europeia, torcendo os jeitos de mão para se iludir na visão ou agradar aos espectadores das salas onde concorre simultaneamente.[1]
Diogo de Macedo, 1940-41
Depois da morte prematura de artistas como Santa Rita e Amadeo Sousa-Cardozo, precisamente em 1918, com o fim já anunciado de uma I Guerra Mundial a todos os títulos inesquecível, o modernismo português sofreria um abalo sem retorno, registando uma espécie de ressaca relativamente aos anos de exaltação futurista. A liberdade efusiva da década de 10, bem como o seu carácter politicamente agitado, de afirmação panfletária e doutrinária, davam então lugar a uma certa atmosfera de resignação, como fuga elitista a todo e qualquer sentimento de verdade absoluta, culminando todo esse aparato e desilusão no simbólico “exílio” castelhano de Almada Negreiros, já no início dos anos 20.
Delineando uma estilização apaziguadora, discretamente consonante com o “regresso à ordem” da pintura parisiense, o meio artístico nacional promoveu de si próprio, e desde essa altura, uma imagem ténue e descomprometida, acentuada pelo gosto blasé característico de uma cultura visual de requinte essencialmente mundano, vivido a partir de um contexto periférico, quase provinciano, marcado sobretudo pela leitura possível e distanciada do que é viver de modo moderno os sintomas de crise de um saturado pós-guerra.
Não por acaso, o único “sobrevivente” dos tempos desse entusiasmo modernista indelevelmente marcado pelos Delaunay, ou seja, Eduardo Viana (1881-1967), registaria uma acentuada inflexão no que diz respeito às suas experiências de assimilação abstracto-modernista. Pois dos ecos dessa “pintura órfica” e pós-cubista, Viana pôde apenas absorver uma leve intenção dos “discos” de cores puras com que Robert Delaunay brindara a pintura de vanguarda, adaptando-os em contenção figurativa à sua paleta mais cezanneana, destacando-se, do conjunto da sua obra produzida nos anos 20, essa inquietante Pousada dos Ciganos, de 1923-25, pela feliz distorção perspéctica apresentada, ou ainda os dois Nu(s) de 1925, realizados para a Brasileira do Chiado e para o Bristol Club, onde se procede, uma vez mais, a cezanneano entendimento sobre a exuberante carnalidade do corpo feminino. Do período directamente influenciado pelo convívio com os Delaunay, bem patente em algumas obras como A Revolta: a Revolta das bonecas (1916), Eduardo Viana havia perdido, na verdade, o sentido e a particularidade da aproximação aos valores desse formalismo abstracto, purista e de cromatismo intenso, que apreendera na pintura do casal francês. Não eram já essas as razões do seu trabalho. Para Viana, a dimensão construtiva de Cézanne ou dos Delaunay tinha de ser entendida dentro de um quadro de harmonia prazenteira, onde o cromatismo denunciasse uma espessura sensual, quase matérica, marcada pela vibração figurativa das formas. Mesmo assim, Viana tornar-se-ia uma espécie de chefe de fila da nossa modernidade pictórica, marcando o ritmo e a sensibilidade dominante. Em sintonia com o gosto suavemente moderno dessa pintura poderemos apontar figuras tão decisivas como o portuense Dordio Gomes (1890-1976) no exemplo místico e animalista de Éguas de Manada (1929), Abel Manta (1888-1982) com Jogo de Damas (1927), ou ainda Milly Possoz (1888-1967) em Paris-Quai Voltaire; Paris antigo (cerca de 1930-37). Podemos afirmar que todos eles prolongaram apenas uma modernidade pictórica levemente inspirada na lição espacial de Cézanne, numa orientação conciliadora ainda, de alguma forma, com os valores dominantes do naturalismo oitocentista. Foi esse o caminho de sobrevivência de uma certa inspiração moderna praticada entre nós em obediência ao gosto essencialmente conservador das elites sociais.
Já nos anos 30, deparamos com uma necessidade de registo pictórico onde o individualismo estilístico mais marginal se informa por alguma orientação expressionista, alimentada também, por certo, no humanismo da “folha de arte e crítica” da revista Presença (1927-1940). A mais idiossincrática e valiosa obra destes anos é a do pintor Mário Eloy (1900-1951), que representa uma espécie de dolorosa introspecção, como via-sacra em busca de si próprio, traduzida ainda num tormentoso equivalente de expressão estética, em auto-retratos e encenações dramaticamente líricas, dinamizadas em pessoalíssima organização cromático-formal, onde a espessura matérica da pintura se reflecte em particular iluminação dos volumes, sempre modernamente entendidos, de Picasso ao desencanto expressionista. Por exemplo, o tonalismo nostálgico das figuras, tanto em Bailarico no Bairro (1936) como sobretudo em O Poeta e o anjo (c. 1938) e Da Minha Janela (1938), remete invariavelmente para uma forte densidade psicológica das figuras imaginadas, como forma mais delirante de alcançar uma realidade intangível, entre a presença da morte e uma forte e desesperada paixão interior. Também na disciplina do desenho, Mário Eloy desenvolveu um universo particular de expansão das suas ansiedades estilísticas e espirituais. Por isso, a recorrência igualmente aos auto-retratos, ou melhor, a uma auto-represenatção por vezes diferida, pontuada por outras figuras que funcionam enquanto expressão simbolizada ou metonímica. Os jogos de síntese formal e sígnica que caracterizam já os trabalhos de aprendizagem dos anos 20 – onde a noção de espaço em Cézanne e a geometria das formas própria do formulário cubista se confundem em experiências de teor moderno – são conduzidos mais tarde a uma mestria de liberdade linear e gráfica, partilhada em atmosferas de sintaxe lírica, de linha picassiana também, como nesse Auto-retrato com família (c. 1930-31), onde a simplicidade de composição formal se alia ainda a alguns valores clássicos, entre a estrutura das figuras, de olhar oblíquo no casal e oposta frontalidade no rosto da criança, e o subtil enquadramento de uma janela. Noutros exemplos ao nível do desenho, Eloy aperece sublinhar a marcação da sua instabilidade espiritual. Aliás, a desrealização que se opera progressivamente na sua personalidade influenciará de modo decisivo toda a sua produção futura, particularmente marcante no desenho. A sintaxe de matriz lírica dará lugar a transfigurações narrativas onde se acumulam figuras isoladas ou em grupo (de retratos de amigos a cenas familiares) que denotam um maior pendor fantasmático, melancólico, ou em situação expectante, recorrendo para isso, cada vez mais, à presença de máscaras ou estranhos animais que vão preenchendo de forma exaustiva e dinâmica toda a superfície do plano. A transgressão modernista destes desenhos terá maior afirmação desde essa autonomização do imaginário que conduz Eloy a narrativas quase surreais, encenando a morte de modo cada vez mais fragmentário, em alegorias onde o terrífico se concilia com uma ternura chagalliana, de casais que esvoaçam entrelaçados. Dos anos 30 a meados de 40, a arte de Mário Eloy convoca sistematicamente os temas da fuga, da destruição ou da loucura, actuando como espécie de expiação final, conciliando figuras do suicídio e dragões assustadores que povoam o céu e a terra, ao lado de violinistas e anjos redentores, enquanto premonição da sua própria morte, ocorrida em 1951.
Por outro lado, Dominguez Alvarez (1906-1942), pintor que à semelhança de Eloy também se auto-marginalizou, apresenta uma atmosfera visual muito particular, entre paisagens expressionisticamente isoladas, nesses negros céus de Inverno, como em Bairro de Pescadores, de casario e janelas abandonadas, e os auto-retratos deformados por uma emoção certamente mais contida e asfixiante. De outro modo, Júlio (1902-1983) recorre a um lirismo dependente, em parte, do formalismo pós-cubista e da figuração de um Marc Chagall, encenando vários momentos narrativos no mesmo plano do quadro. Entre um imaginário infantil sem alegria e a organização formal orientada por um forte contraste de cores, Júlio equilibra uma pintura feita de sugestões expressivas e alguma desilusão social, sobretudo em obras como Espera (1930), O Circo (1931), e O Burguês e a Menina (1931).
De entre outros pintores afirmados nos anos 30, do desenho publicado em periódicos à pintura de cavalete, refira-se ainda o trabalho de Carlos Botelho (1899-1982) e a sua célebre página de sátira social, intitulada Ecos da Semana (1928-50) e regularmente publicada no Sempre Fixe. Botelho pontua aí um desenho que não esquece uma certa herança modernista mais desenvolta, em contraste com a sensibilidade timidamente expressionista das suas vistas de Lisboa, em muitas telas reinventadas maioritariamente pela persistência poética do seu olhar.
De entre os artistas iniciados na ilustração humorista dos anos 20, Bernardo Marques (1899-1962) viria a desenvolver um sólido trabalho de expressão moderna, ainda que de ritmos e resultados variados. Oriundo do Algarve, Bernardo Marques chega a Lisboa ainda a tempo de participar no III Salão dos Humoristas, em 1920, revelando um traço refinado de plural orientação estilística e inspirado desde logo, tal como Cristiano Cruz e alguns outros, na estética da ilustração alemã e austríaca do início do século, podendo verificar-se em Despedida de Soldado (1920) como a caricatura alongada (quase expressionista) dos braços e das mãos do casal representado se concilia com um decorativismo de padrões e texturas, denunciando uma certa influência de Gustav Klimt, tanto nos tecidos que fazem o vestido humilde da mulher, como no saco de remendos desse soldado que está de partida. Características primeiras de uma prática de desenhador e humorista que Bernardo Marques saberá dirigir das figuras populares para os ambientes elitistas da burguesia lisboeta dos “loucos anos 20”, onde a moda parisiense e a diversão de referência cosmopolita ditavam as novas normas de comportamento social. Envolvido rapidamente pela necessidade profissional e o prazer de colaboração gráfica nas páginas de revistas como a ABC (1920-32), o Notícias Ilustrado (1928-1952), ou a Ilustração (1926-1935), também a mais famosa Contemporânea (1922-1926), dirigida por José Pacheko, ou o Sempre Fixe (1926-1959) e a Civilização (1928-1936), Bernardo Marques realiza uma prática do desenho, sobretudo em hors-textes, ilustrações ou vinhetas caricaturais, alimentada sempre numa suave ironia, ou num sarcasmo contido e implícito, em figuração de leve tendência expressionista. Com efeito, na melhor fase da sua obra, desenvolvida com base na apresentação das elites lisboetas dos seus estereótipos formais de apresentação social – no início da década de 20 – e os desenhos inspirados numa estadia em Berlim (1929-30) – que seguem de perto a estética pós-expressionista da “Nova Objectividade”, promovida na Alemanha pelo desenho veemente de um George Grosz, ou de um Otto Dix – o que se revela é afinal uma tendência para a conciliação entre uma certa desilusão crítica, mais ou menos explicitada, e uma elegante ironização em torno da superficialidade e mundanismo da vida pseudo-cosmopolita que a zona da Baixa-Chiado podia então oferecer.
Desde o início à margem da realidade artística portuguesa, Maria Helena Vieira da Silva (1908-1992) cedo encontrou na cidade de Paris e no convívio com alguns dos seus artistas uma centelha de aproximação ao que de mais decisivo aí se fazia em termos pictóricos. Aliás, o reconhecimento inicial, em termos internacionais, do seu trabalho deve-se, em grande parte, não só ao afastamento deliberado ou circunstancial que durante décadas a afastaram do expediente artístico do nosso país, como igualmente ao facto de ter sido adoptada pela tendência abstracta da chamada “Escola de Paris” dos anos 30 e 40. Nessa época, na capital francesa, reinterpretavam-se ainda as pesquisa formais pós-cubistas, ou o regresso a uma modernizada figuração, associando também cada vez mais a conquista da abstracção pictórica com a longa tradição pós-impressionista de um Cézanne ou da fase final da obra de Claude Monet. O lirismo abstracto de raiz impressionista que caracteriza a “Escola de Paris” nesta fase, individualiza-se assim na obra da pintora portuguesa pela relação que esta mantém com a memória da sua infância, sugerida nas paisagens de Lisboa, nos azulejos, nas colinas, nas encruzilhadas das ruelas, ou nessa geometria clara que se transforma em sinais coloridos, nas linhas que adquirem uma nova função espacial e nos revelam perspectivas surpreendentes. As paisagens de cidades, ou de espaços interiores, são assim uma constante temática na obra de Vieira da Silva. As marcas dessa paisagem convertem-se estruturalmente num labirinto de arquitecturas, em particular “rede de sinais” que povoam o espaço pictórico e envolvem o observador numa pluralidade de planos. É uma pintura que vai construindo o seu próprio sistema linguístico e simbólico, em persistente obstinação mantida ao longo de toda a carreira da pintora.
No contexto da pintura abstracta, Vieira promove uma sólida revalorização da estrutura da imagem pictórica, ao criar uma nova imagística da linha e da perspectiva, seduzida pelas marcas físicas do mundo, e pela acção humana na sua edificação, realizando desse modo uma singular objectivação da imagem e da memória. O lirismo abstracto desse processo confronta-se, muitas vezes em paradoxal harmonia, com a proposta figurativa, num registo, ainda que pouco perceptivo, dos objectos, dos sinais do real. Da mesma forma, os valores da luz exterior e natural são reordenados através da disciplina e geometria cubistas. Esta reinterpretação iniciada em Delaunay tem na pintora portuguesa a particularidade de uma progressiva abstractização do referente, sobretudo apoiada na presença da linha como signo, tornada assim nova caligrafia. Na realidade, os valores suavemente impressionistas da pintura parisiense de entre as duas guerras haviam possibilitado a Vieira da Silva a formulação de uma pintura cada vez mais etérea, fixada na busca de uma paisagem imaginada e labiríntica, mantida entre a memória visual e uma nova “cenografia dos espaços”.
Também nos anos 30, um outro português apresenta um percurso original e ainda por reavaliar. Como pioneiro inquestionável de uma surrealidade na prática do desenho livre, ou ainda enquanto divulgador das vanguardas que Paris podia oferecer nas décadas de 30 e 40, António Pedro (1909-1966) procurou sistematicamente uma espécie de confluência criativa e disciplinar que teve por base uma atitude experimental entre a poesia e a pintura moderna, sublinhando desde cedo o jogo de percepções estabelecido entre combinatórias verbais e a sua diluição sígnica ou semiológica, na recusa da poesia como técnica invariavelmente sujeita a um quadro de géneros literários. O seu trabalho poético e visual procurava um cruzamento disciplinar capaz de reactivar e reinventar os sentidos, através de desconstruções fonéticas e visuais. Interessava-lhe sobretudo alcançar, como ele próprio defendia, “uma ritual exaltação sensível”. Ao estabelecer-se em Paris, entre 1934 e 1935, António Pedro viria a desenvolver e confirmar estas teorias, convivendo e assinando, com muitos outros artistas (de Calder a Duchamp), o menos conhecido mas não menos parisiense “Manifesto Dimensionista” (1935). Centralizada na procura de uma espécie de valor espacial da expressão poética, a teoria dimensionista significaria uma atitude revolucionária de vida curta. Proclamava-se essencialmente uma união espaço-tempo, reinterpretada à luz das teorias de Bergson e Einstein, e que introduzia uma interessante desarticulação de fronteiras entre disciplinas e géneros, mesmo que pretensamente envolvida por uma pouco clara “ordem cósmica” dessa nova “quarta dimensão”. Contudo, não foi a ideia de absoluto que moveu António Pedro nesta aproximação ao Dimensionismo, mas antes uma particular interpretação organizada em torno do conceito de devir. É disso exemplo o magnífico Aparelho Metafísico de Meditação (1935), esse objecto tautológico revelado em absoluta poética vanguardista. Por outro lado, não podemos esquecer que para António Pedro a arte é, sobretudo, do domínio do sensível e não do inteligível. Por isso, a sua aproximação formal à abstracção – como em Abstractions Géometriques (1935) – poema constituído por quatro abstracções geométricas, concebidas como versos intercambiáveis – nada tem que ver com o imanentismo essencialista de Kandinsky ou Mondrian, nem tão pouco com o utopismo abstraccionista do construtivismo russo. A partir de um universo mais poético e livre, António Pedro definiu uma criatividade lógico-sensível que ora se revelava em visualizações isomórficas do signo, ora se reorientaria depois na emergência de uma imagética alimentada pelo inconsciente, nesse surrealismo que viria a revelar a face mais mediatizada do artista. Em termos de um prática pictórica surrealista – manifestada logo em 1940, numa exposição realizada a par de António Dacosta (1914-1990) e Pamela Boden, António Pedro não chega a alcançar os resultados da sua fase dimensionista, embora tenha funcionado como figura tutelar para uma série de jovens artistas que viam na ordem bretoniana do segundo pós-guerra uma renovada orientação vanguardista, confirmando a esperança do final dos anos 40 em torno de uma prática artística que definitivamente estabelecesse uma ordem de sintonia com o modernismo internacional.
No período sub-repticiamente agitado de entre as duas grandes guerras mundiais, e com excepção de Mário Eloy ou ainda dos dois últimos casos aqui lembrados, a arte portuguesa pereceu sobretudo demorar-se em lirismos de expressão individual, pouco motivada em promover qualquer dimensão perene dos seus actos, abandonando assim o carácter polémico e a ambição do nosso primeiro modernismo artístico e literário. Ao sabor da voga ou do gosto das elites e das suas desilusões mundanas, e expondo sobretudo no equilíbrio dos salões oficialmente modernos da SNBA e do SPN, os nossos artistas atravessaram as décadas de 20 e 30 longe de qualquer compromisso mais sólido com o experimentalismo estético da vanguarda europeia.
[versão original: Arq.a – Revista de Arquitectura e Arte, nº 23, janeiro/fevereiro de 2004]
[imagem: Mário Eloy, O Poeta e o Anjo, (pintura a óleo s/tela), c. 1938, Coleção Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado ]