Nos últimos anos, Claude Chabrol tem vindo a desenvolver uma cinematografia mais comedida nos objectivos, mas equilibradamente elegante no modo como consegue adaptar o enigma policial ao mistério da vida e do amor. A base literária desta incursão encontra-a Chabrol pela segunda vez nos exercícios de estilo de Ruth Rendell. Esta “parceria” já havia dado resultados bastante positivos em “A Cerimónia” (1995) – numa inesquecível interpretação de Isabelle Hupert – tendo agora alcançado um registo que se desvenda em velocidade de cruzeiro, sem urgências nem inovações de circunstância.
Desta vez, o realizador mais diletante dos que fundaram o paradigma da “Nouvelle Vague” dá-nos uma história obsidiante, delineada em torno de um jovem (Benoît Magimel) e da sua inesperada e magnetizante paixão por uma das “damas de honor” (Laura Smet) do casamento da sua irmã mais velha. Se, na primeira parte do filme, observamos um jovem empreendedor e disciplinado pela ambição profissional, alheio aos desvarios românticos das irmãs mais novas e mesmo da sua mãe viúva, já na segunda metade seguimos fundamentalmente a crescente obsessão do protagonista em conhecer melhor o fogo que o alimenta e inquieta, conduzindo-o inevitavelmente a uma atmosfera densa, mesmo aracnídea.
Preso à teia dessa estranha e enigmática “dama de honor” – simbolizada ainda por um busto de jardim que apresenta incríveis semelhanças com Smet e que une poeticamente toda a narrativa – Magimel vai cedendo a um jogo de luz e sombra, verdade e mentira que confunde o observador, tanto quanto o protagonista, numa clássica identificação narrativa. O amor jurado pelo casal apresenta desde o início uma aura de inquietação sombria. Isso é evidente quando a bela e jovem “dama de honor” insiste na ideia dos destinos traçados, quando se apresenta dona e senhora de uma história que assegura conhecer antecipadamente o desfecho. Desenha-se desde aí uma bizarra atmosfera que envolverá, até ao fim, Magimel e a sua crescente atracção por essa mágica “dama de honor”. A estranheza que invade essa relação amorosa – marcada por sinais (o predomínio do azul na “mise-en-scène”) e metáforas que remetem para a ideia de um conflito entre o Céu e o Inferno (a luz da casa da família de Magimel, ou a sombra misteriosa que domina a cave de Smet) – progride até ao domínio da dúvida quando Smet exige a mais extrema prova de amor: matar outrem em nome de um amor maior, transcendente. A partir daí, Magimel questiona, ainda que continuamente enfeitiçado, a tendência da sua amada para a elaboração de histórias pouco verosímeis.
Enredado ao mesmo tempo pelo jogo de sedução e pelo temor da confirmação sobre as crescentes suspeitas de que a sua “dama de honor” terá um passado obscuro e hipoteticamente criminoso, o protagonista abandona o seu perfil de profissional cumpridor e passa a encontrar nessa nova obsessão o alimento para os seus dias. A partir de então, todos os outros personagens desta história, nomeadamente a família de Magimel, passam apenas a servir um enredo que se concentra cada vez mais nessa insinuante e enigmática “dama de honor”. Depois de um tortuoso caminho, marcado por alívios e novas suspeitas, Magimel enfrenta a mais indesejável das confirmações: afinal, a sua “dama de honor” é uma incontrolável mitómana de impulso assassino, ligada inclusive a crimes passionais que arrastam consigo mais do que um cadáver. Após uma macabra descoberta, o nosso protagonista acaba por denunciar às autoridades a sua amada, na esperança vã de uma derradeira hipótese de redenção.
Embora sem a magia de “A Mulher Infiel” (1969) ou de “O Inferno” (1994), Claude Chabrol realiza assim com “A Dama de Honor” uma aproximação mais à matriz sempre insondável desse “obscuro objecto de desejo” que é a mulher.
“A Dama de Honor/La Demoiselle d’Honneur” (França/Alemanha/Itália, 2004) ***
Realização: Claude Chabrol
Actores principais: Benoît Magimel, Laura Smet, Aurore Clément, Bernard Le Coq.