2017 Exit [no] exit – sobre a decisão ou a hesitação que enforma a ação, a história, a memória e a sua temporalidade Paulo Mendes

Exit [no] exit – sobre a decisão ou a hesitação que enforma a ação, a história, a memória e a sua temporalidade

 

1. A longa temporalidade de que falava Walter Benjamin a propósito do subtilíssimo movimento de um edifício captado em fotografias de diferentes épocas representa uma consciência essencial mas quase intangível sobre o impacto da chamada memória coletiva. A fotografia tem essa capacidade de nos dar, ainda que de modo parcial, a substância do tempo e com ela uma infra impressão do movimento, ou mais propriamente da vida que se suspende em imagem e, dessa forma particular, em memória. Porém, mais do que pelo efeito fantasmático da fotografia, a temporalidade da memória só se mantém ativa pela sua reinscrição ou reanimação episódica, isto é, na ação quotidiana e civilizacional, mais ou menos consciente, ou pelo menos através do discurso dialético da sua evocação, confrontando conceitos, ideias, palavras, gestos e imagens recriadas. Na verdade, se a memória é uma espécie de arquivo (individual ou coletivo), este só funciona enquanto resíduo influente, ativo e produtor de realidades onde se considera um legado, algo que tem raízes noutro tempo, vivido ou protagonizado por outras pessoas e gerações. Trata-se sempre, por isso, de um exercício de sensibilidade mnemónica, enquanto experiência de recurso intelectual seletivo. Por outro lado, recordemos que o arquivo é um sistema mnemónico e sobretudo mnemotécnico que preserva a memória e resgata do esquecimento, da perda ou da destruição definitiva o que se julga fundamental a preservar, convertendo-se assim num verdadeiro memorandum.
Mas a temporalidade própria da memória, seja ela qual for, apresenta quase sempre um trilho sinuoso, de difícil constância, embalado pelas diversas leituras e interpretações que suscita ao longo do tempo. Quando essa memória contorna um acontecimento político, revela-se então determinante a ambiguidade da significação, muitas vezes mascarada de verdade factual, mas onde se desenha, no essencial, um território de amplo conflito, não apenas ao nível da interpretação e da defesa do seu sentido, como ainda no que diz respeito às consequências mesmas dos caminhos abertos pelo seu gesto original.
De outro modo, a oposição de leitura que enforma um episódio político marcante na história de um país ou de uma sociedade – porque, apesar de toda a analítica, se observa uma consensualidade sobre a sua influencia transformadora – resulta na construção de uma oblíqua trajetória que não raras vezes se converte num longo e extraordinário equívoco, perdido na longa temporalidade que sustenta o esquecimento, a ausência e o nada.
Quem se lembra hoje, passados mais de quarenta anos, do dia 25 de novembro de 1975, do seu movimento militar e dos seus múltiplos significados históricos e políticos. Ou, sobretudo, quem reflete ainda sobre as suas consequências na nossa contemporaneidade? E quem se atreve narrar a memória desse dia?
Correndo o risco de uma decisão que é ao mesmo tempo uma hesitação em relatar sumariamente alguns aspetos históricos dessa memória hoje cada vez mais difusa ou mesmo invisível, aqui vos deixo a vossa própria decisão de uma leitura ou porventura a hesitação de um ato reflexivo ou mesmo político. Sair ou não sair desta memória, participar ou não da proposta artística que se anuncia com este título, eis a questão, ou melhor, eis a decisão…

 

2. Quando somos crianças, todas as histórias e estórias que nos contam aparecem preenchidas ao mesmo tempo pela lição da fantasia e a imaginação da realidade. No tempo da infância, a narrativa obedece a um formato que nos encanta e que nos transporta a um ritmo concreto. Há não muito tempo, isto é, na infância de cada um, as narrativas começavam quase sempre com a mesma abertura límpida, a energia fluída e inesquecível desse eco: “era uma vez…” e, como que por magia, uma temporalidade alegre desenhava invariavelmente a esperança de uma história ainda virgem, prometedora e infinita no seu desenlace longínquo. Após o avanço de um núcleo de forças que davam substância e crédito à história contada, chegava aos poucos o tom de epílogo com a esquina dessa expressão: “um dia…” E aquilo que parecia interminável, pelo menos em potência, traduzia-se, assim, no beco sem saída da palavra “fim”. Essa era a malha de uma composição, o espírito de um envolvimento narrativo, criativo, ficcional ou documental, onde muitas referências se misturavam para dar lugar à credibilidade emocional de uma história ou de uma estória. Porque não acreditamos mais em narrativas com um princípio, um meio e um fim, deixámos de ouvir histórias desse modo contadas. Nesse processo de crescimento e maturidade, porém, esquecemos ou abandonámos a necessidade de considerar a história um instrumento de acesso privilegiado a uma memória e a uma temporalidade com influência na nossa tomada de consciência social e política, em relação à qual também a arte pode ainda dar um contributo de algum modo decisivo…

 

3. E porque não foi com base no jogo do acaso que Paulo Mendes escolheu o dia 25 de novembro para a sua intervenção no “empty cube”, segue a memória assumidamente pouco rigorosa de uma temporalidade concreta mas, em muitos aspetos, hoje olvidada…

Em Portugal, após a efetivação do golpe militar de 25 de Abril de 1974, e a rendição dos dirigentes do Estado Novo, criou-se um organismo para governar o país durante o “processo revolucionário em curso”, (PREC). Ou seja, o poder foi entregue a uma “Junta da Salvação Nacional”, representando as forças militares golpistas, isto é, o Movimento das Forças Armadas (MFA), e ainda alguns sectores da sociedade civil. De entre as primeiras medidas do pós-25 de Abril destacam-se o termo da guerra colonial, iniciando-se desde logo o doloroso processo da independência das ex-colónias ultramarinas; o desmantelamento da PIDE, restabelecendo-se o direito fundamental da liberdade de expressão com a abolição da censura, tomando forma, igualmente, a liberdade de associação e o direito à greve. Nesses dias, as primeiras reivindicações dos trabalhadores e a libertação dos presos políticos fizeram o país viver a euforia do fim do Estado Novo, protagonizada, em última análise, na grandiosa concentração popular das comemorações do 1º de Maio desse ano.  Contudo, era necessário preparar o futuro do país, estabelecer as regras do novo regime político, definir estratégias, perspetivas ideológicas e constitucionais. A ação radical dos partidos políticos, então tornados legais, determinou um período incerto e de grande agitação militar, política e social, nas palavras de José Medeiros Ferreira, um “Portugal em transe”, tomado por divergências e lutas pelo poder político revolucionário, que duraria sensivelmente até à movimentação militar do dia 25 de novembro de 1975. Na leitura de muitos, a vitória dessa ação militar terá evitado o início de um conflito generalizado – quem sabe uma guerra civil no nosso país? De facto, as clivagens políticas no seio do MFA e o seu afastamento em relação às reivindicações dos sectores moderados da sociedade portuguesa conduzira, durante o “Verão Quente” de 75, a diversas tentativas de golpes e assaltos a sedes partidárias, com o país a revelar um extremar de posições políticas obviamente irreconciliáveis. Na sequência de várias movimentações de apoio militar ao radicalismo nunca assumido de algumas fações do MFA, conotadas com Otelo Saraiva de Carvalho, o rastilho que fez desencadear o “25 de novembro” foi a substituição de alguns comandantes militares e a dissolução da Base-Escola de Pára-quedistas de Tancos pelo Conselho da Revolução. Desse modo, Pára-quedistas da Base-Escola de Tancos ligados à extrema-esquerda ocupam nesse dia as bases aéreas de Tancos, OTA e Monte Real, enquanto tropas do Ralis tomam posições estratégicas nas principais vias de comunicação de acesso a Lisboa. O presidente da República, General Costa Gomes, decreta então o estado de sítio. O Regimento de Comandos da Amadora, dirigido pelo tenente-coronel Ramalho Eanes, acaba por ter um papel decisivo na neutralização das unidades de esquerda radical. Como consequência imediata dessa movimentação militar, Otelo Saraiva Carvalho e Carlos Fabião pedem a demissão dos seus cargos. A legitimidade democrática havia triunfado sobre a legitimidade revolucionária. Com o fim do vanguardismo militar, e a lógica de revolta das suas bases, entra em declínio o MFA, perdendo progressivamente influência no desenvolvimento do pós-25 de Abril. Criadas as condições para que a política voltasse ao parlamento, o resultado do “25 de novembro” culmina com a elaboração do novo texto constitucional de 1976, que reservava aos partidos, eleitos diretamente e por sufrágio universal, a governação do país. Ainda assim, o processo político e constitucional desenvolvido nesse período revelava uma clara tendência para a estatização da economia, projetando o domínio do Estado na área das finanças e da macroeconomia, a partir do processo das nacionalizações da industria pesada, da banca e dos seguros, entre outras áreas. A questão da reforma agrária, traduzia, por outro lado, uma peculiar aproximação ao socialismo de Estado, que chegou a preocupar a política ocidental, nomeadamente os EUA…

Quem se lembra hoje desta história, dos seus protagonistas e dos valores que então colocaram Portugal no mapa político internacional? E quem se deixa ainda envolver pela leitura deste episódio decisivo para a história da nossa contemporaneidade? Afinal, a decisão ou a hesitação sobre a ativação da memória dessa temporalidade conflituam hoje, tal como ontem, na consciência e na ação de cada um de nós… É essa ambiguidade que, em parte, a proposta de Paulo Mendes promete reativar. Estejam atentos…

 

(versão original: in folha de sala distribuída antes da performance “Exit [no] Exit” de Paulo Mendes, realizada a 25 de Novembro de 2017, Projeto Empty Cube, curadoria de João Silvério, Galeria Appleton Square, Lisboa)