2004 Práticas ABSTRACCIONISTAS EM PORTUGAL Da abstracção onírica às experiências geométricas

Práticas ABSTRACCIONISTAS EM PORTUGAL

 

Com a exposição da «Casa Jalco» (1952), Vespeira, Fernando Azevedo e Fernando Lemos confirmavam não só a crescente opção não-figurativa como o acentuado arrefecimento do primeiro Surrealismo nos seus trabalhos do início da década de 50. De cariz informal ou abstracto-expressionista, essa pintura cedo se viu desafiada ainda pela tendência geometrizante da abstracção que a «Galeria de Março» (1952-1954), fundada e dirigida por José-Augusto França e Fernando Lemos, parecia promover inicialmente com a mostra individual de Edgard Pillet e a forte sugestão que trazia desse sucesso parisiense: os Salons des Réalités Nouvelles (1946-1956). Sob a égide do progressivo formalismo abstracto que os grupos Cercle et Carré e Abstraction-Création defenderam durante os anos 30 em Paris, a primeira década da “guerra fria” iniciava-se pela divisão entre os defensores da “Escola de Paris” (sustentada nas múltiplas variantes da abstracção informalista) e o rigor analítico-formal e de composição expresso nos salões onde – seguindo de perto as teorias de Theo Van Doesburg sobre a forma concreta – Dewasne, Magnelli, Pillet, Vasarely ou Auguste Herbin, faziam a apologia da composição geométrica e autónoma.[1] Em Portugal, a «Galeria de Março» manifestava a sua atenção sobre o programa abstracto apontando novas orientações aos artistas portugueses, abrindo desse modo a uma nova geração a riqueza sintáctica de uma estética sempre reprimida pela política oficial do Estado Novo. Desde os salões do SPN-SNI ao esgotamento da “Política do Espírito”, os valores do modernismo formalista e da Abstracção em geral estiverem quase sempre arredados de qualquer visibilidade ou entendimento até à década de 50.[2]

Será fundamental, todavia, lembrar aqui a influência das «Exposições Independentes» que, no Porto, e desde 1943 até 1950, introduziram alguns dos valores modernistas na pintura portuguesa produzida a partir da Escola de Belas-Artes dessa cidade. Primeiro, com leves sugestões de inspiração neo-realista, na obra de Dordio Gomes, Augusto Gomes, ou no trabalho inicial de Júlio Resende (n. 1917) – que, no entanto, sempre considerou igualmente valores de tendência lírica e abstractizante como em Mulheres de Pescadores (1951) – e, depois, introduzindo a abstracção geométrica pela mão de Fernando Lanhas (n. 1923) e Nadir Afonso (n. 1920) na pintura, e Arlindo Rocha (n. 1921) no âmbito da escultura, essas exposições itinerantes manifestaram a pluralidade estilística (daí o termo Independentes, para lá da necessária leitura polítca sobre o mesmo) que reinava entre esse ecléctico grupo de alunos (ao qual se juntara, vindo de Lisboa, Júlio Pomar) que frequentemente se reunia no café Majestic, aí perfazendo importante tertúlia intelectual e artística.

No entanto, no início dos anos 40, as experiências em torno de uma arte abstracto-geométrica reduziam-se em Portugal ao labor isolado de Fernando Lanhas, uma figura determinante para a arte moderna portuguesa, que, partindo da sua formação em Arquitectura, estabelecera um projecto criativo de forte conotação humanista, considerando primordial desde o seu início a convocação de outras ciências, confluindo na sua acção pictórica valores de respeito pela natureza e a sua dimensão cósmica, numa declaração de intenções iniciada desde 1943-44 e que se prolonga inclusive até hoje.

Assumindo um projecto coerente na sua utopia, Nadir Afonso converteria a formação inicial de arquitecto – nomeadamente o estímulo que significaram as colaborações com Le Corbusier em Paris e com Niemeyer no Brasil – numa espécie de projecção do rigor e da analítica do espaço sobre uma nova experiência pictórica de formas e cores puras simplificadas, traçando imaginárias fusões de cor, linha e plano, onde se reinterpretam ainda sugestões surrealizantes. Procedendo a ilimitados processos de interligação entre forma abstracta concreta e cinética, o artista promove sobretudo uma forte sensibilidade espacial, como em Espacilimité (1957). Traduzida pelo consequente exercício de uma pintura só assumida de modo abstracto-geométrico a partir do início da década de 50, a obra de Nadir Afonso alcança nesses anos uma qualidade formal e de composição que o tornam numa referência incontornável da abstracção portuguesa da segunda metade do século XX.

Mas se os artistas fixados na cidade do Porto haviam introduzido entre nós, durante os anos 40, a experiência de uma arte abstracto-geométrica, a acção pedagógica da Galeria de Março[3] iria influenciar por essa via, já nos primeiros anos de 50, artistas como Joaquim Rodrigo, Fernando Lemos, Nuno Siqueiros, Cargaleiro, ou Nuno San-Payo. Não se confinando à abstracção de cariz geométrico, esta galeria apresentou também outras sensibilidades e imagéticas de referência na experiência abstracta, desde Amadeo Sousa Cardozo a Maria Helena Vieira da Silva.

No «I Salão de Arte Abstracta», sintomaticamente inaugurado a 3 de Abril de 1954 na «Galeria de Março», podiam ver-se, para além de guaches abstractos de Vespeira (de menor valor), trabalhos de Fernando Lanhas, Cargaleiro, Artur Bual, René Bértholo, Jorge Vieira, Joaquim Rodrigo, ou Jorge de Oliveira, entre outros. Na sua pluralidade, e apesar de mal recebida pela crítica e sobretudo pelo público, essa colectiva revelava afinal o quanto a pintura abstracta, entre o gestualismo informal, a forma geométrica e o expressionismo lírico, determinava já a prática pictórica entre os mais jovens. Entre todos, apenas Fernando Lanhas e Rodrigo revelavam já uma satisfatória segurança no domínio dos valores geométricos da sua pintura, e ambos constituiriam, nos anos seguintes e de modos radicalmente diferentes, os mais idiossincráticos projectos artísticos da segunda metade do século XX.

 

A Forma do Cosmos: o “sistema-Lanhas”

 

Ao contrário de Joaquim Rodrigo, Fernando Lanhas não chegou à prática da abstracção geométrica através dos grupos parisienses que nos anos 50 faziam o reenquadramento da pintura abstracta, mas antes dez anos mais cedo e de um modo absolutamente intuitivo e solitário, quase místico, elaborando desde então, e até hoje, uma minuciosa e particularíssima cosmogonia.

Iniciando a sua prática artística à revelia da situação internacional, Lanhas não recusará contudo o paralelismo de uma sua leitura, quando em 1947 visita Paris, tomando contacto com as exposições não só do Salon de Réalités Nouvelles, como da Art Concret – onde Albert Gleizes ou Jean Gourin partiam das directrizes elaboradas nos anos 30 por Theo Van Doesburg.[4] Isto é, Lanhas confirmava por esses anos a coincidência da aposta de algumas galerias francesas (como a René Drouin ou a Denise René) numa abstracção geométrica que só formalmente se aparentava com o seu projecto. Apesar disso, a linha de investigação criativa de Fernando Lanhas não deixaria mais de se sustentar numa estratégia absolutamente independente e adversa a leituras internacionais, saindo assim quase sempre frustradas todas as tentativas de comparação dialéctica com a obra de alguns dos mestres fundadores da abstracção europeia, como Mondrian, Kupka, Doesburg, ou Kandisnsky.

Na verdade, o trabalho de Fernando Lanhas considera valores de absoluta e quase imperscrutável presença cósmica, dificilmente categorizáveis pelo jargão das artes. Aliás, sobre essa diferença de consideração, João Fernandes alerta-nos, seguindo os testemunhos assumidos pelo próprio artista, que “A arte não chega a ser assunto numa obra em que a interrogação do Conhecimento surge como um princípio do exercício de um acontecer. A obra não se faz, a obra acontece e, como tal, constitui uma manifestação gnosiológica particular. É precisamente o acontecer das coisas e dos eventos do mundo que estimula as interrogações que motivam a poiesis e a investigação de Fernando Lanhas.”[5]

Assim sendo, este projecto criativo, também denominado pela crítica de o “sistema-Lanhas”, desenvolve desde o seu início um cruzamento constante de informações oriundas de disciplinas só aparentemente opostas e distantes da pintura, como a arquitectura, a astronomia, a arqueologia ou a etnografia, estabelecendo a partir dessas premissas uma complexa teia mitológica que traduz não só uma inabalável vontade individual como o desejo da sua manifestação e validade universais.

Inicialmente, essa heterodoxia processual conduz Lanhas a uma forte tensão entre representação e abstracção, enquanto projecto de conciliação imagética que deveria considerar os registos de sonhos, a análise da forma e a sua interpretação cósmica ou lugar no mundo dos fenómenos. Daí que, mesmo quando a figura é assumida como tema central, como em Tambores (1945) ou no já desaparecido O Artista Abstracto (1945), a dimensão abstracta se insinua já na exploração bidimensional da tela e na forte presença de linhas oblíquas e paralelas que promovem necessariamente o questionamento dos limites do quadro. A leitura para além da moldura que essas linhas realizam será uma das características mais constantes na abstracção geométrica de Fernando Lanhas. Redimensionar a dinâmica composicional entre linhas e círculos, deixando sempre ambíguo o reconhecimento figurativo ou abstracto, como em Cais44 (1943-44), Rochedos (Ansiedade) (1945), ou Barcos no Sena (1947) constituirá, por outro lado, a referência mais comum dos trabalhos realizados entre 1943 e 1948, enquanto assunção progressiva da bidimensionalidade que a pura Abstracção geométrica irá pouco depois confirmar em pleno.

A primeira pintura puramente abstracta de Fernando Lanhas, 02-43-44 (O Violino), é apresentada na «Exposição Independente» de 1944, tornando-se igualmente na primeira obra do género a surgir entre nós desde as polémicas exposições de Amadeo-Souza Cardoso, em 1916. Aí se assume já uma gramática pictórica onde a geometria das formas se organiza numa leitura ziguezagueante que quebra a monoccromia castanha da superfície. A sugestão desses valores abstractos tinha como objectivo suscitar um diálogo com obras futuras de outros jovens artistas, que só mais tarde, nomeadamente com Nadir Afonso, viria a ter resposta concreta, formalizando-se então outros caminhos abstracto-geométricos na pintura portuense.

Entre 1949 e 1970, Lanhas enceta um jogo gramatical de linhas coloridas que dividem o plano do quadro, recorrendo também a formas circulares autónomas que organizam um desejo de evasão do plano, como modo rigoroso de segmentação de novos equilíbrios, numa escala exercitada em contida paleta (sobretudo o azul cinza), conduzindo a cor à articulação da forma/espaço,[6] como em 015-53 (1953) ou C8-56 (1956), onde ao assumir outras tonalidades mais planas, em formas geométricas triangulares se submete a monocromia bidimensional ao reconhecimento dos limites geométricos do próprio suporte. Embora desconhecendo a teoria modernista de Clement Greenberg, e tal como lembra João Pinharanda, o Abstraccionismo de Lanhas procura igualmente atingir “uma ordenação espacial e temporal na imaginação das percepções.”[7] De facto, a problemática do espaço e da sua organização autónoma, a partir de leis próprias sugeridas no fazer da pintura, torna-se num dos parâmetros ou linha de pesquisa formal mais constantes na pintura abstracta de Fernando Lanhas.

De outro modo alicerçada, a procura de uma sensibilidade estético-cósmica do mundo tem levado Fernando Lanhas a pintar e intervir, desde 1949, em pequenos seixos encontrados nas cercanias do Douro. Linhas, círculos ou triângulos são desenhados sobre a rugosidade da pedra, enquanto processo mínimo de apropriação panteísta, marcando assim a Natureza com a identificação estética do ser humano, esboçando-se aí talvez o selar de um enigma e comunhão milenares. Neste labor mínimo, “é o próprio seixo que irá comandar a mão do artista”, como sintetiza Fernando Guedes, “o artista apenas acrescenta uma nova cor e uma nova forma ao objecto natural, ele próprio possuindo já a sua cor e a sua forma, uma e outra conseguidas ao longo de muitos milhares de anos de trabalho no leito do rio ou no fundo do mar.”[8]

De uma forma geral, todo o trajecto de Fernando Lanhas tem por objectivo essencial, como dirá mais tarde João Pinharanda, a “busca e o estabelcimento nas suas obras de um clima de equilíbrio natural e de uma relação íntima com o universal.”[9]

 

Joaquim Rodrigo e a investigação de uma nova pintura abstracta

 

Longe das academias e das escolas de Belas-Artes, e apesar do seu processo de aprendizagem essencialmente autodidacta, Joaquim Rodrigo não deixou de realizar ao longo dos anos 50 uma absoluta radicalização de alguns dos pressupostos essenciais de um modernismo que em Portugal teve rara expressão. Produzido a partir de um pessoalíssimo “projecto cognitivo”, Rodrigo estabeleceu na verdade um sistema interno de prática pictórica bastante complexo. Descoberta a pintura modernista das vanguardas históricas como uma linguagem desenvolvida segundo um particular sistema semiológico, Rodrigo vai aliar então e para sempre as suas duas grandes fontes de informação: a ciência e a arte.[10] Aliás, será no diálogo constante deste binómio que a sua pintura evoluirá para uma racionalidade impossível de compreender por um Portugal fechado às rupturas estéticas da primeira metade do século. O essencialismo fundador que percorreu as vanguardas artísticas está presente desde cedo no projecto pictórico de Joaquim Rodrigo, fazendo do seu caso um exemplo único no contexto português. A incansável procura de um método específico de pintura – situação inédita até hoje em Portugal – conduziria o autor a um isolamento crescente, abdicando conscientemente dos favores da linha oficial e académica do regime do Estado Novo. É certo que se pode questionar o domínio técnico de Rodrigo no que diz respeito ao desenho clássico e verista, ou invocar os seus desentendimentos com o ensino academizado da SNBA com vista a justificar a sua aproximação à pintura abstracta do segundo pós-guerra. Contudo, se reduzirmos a importância desses motivos ao que eles, de facto, significam no quadro de uma criatividade moderna que está para além desses requisitos, percebemos a adaptação lógica e natural de Rodrigo ao registo revisionista desse abstraccionismo geométrico que nos anos 50 se discutia em Paris pelos Salons des Réalités Nouvelles, ou na revista Art d’Aujourd’hui – que o artista português coleccionava e sublinhava entusiasticamente. É compreensível que a Abstracção tenha funcionado então como processo ou linguagem fundamental da investigação de Rodrigo. Era um processo de composição pictórica que unia perfeitamente as bases de uma conceptualidade formal autónoma (tal como era então defendida por Jean Dewasne ou Auguste Herbin, na herança ainda dos grupos Cercle et Carré e Abstraction Création dos anos 30) e a possibilidade de levar até às últimas consequências o carácter de investigação inerente à obstinada personalidade de Joaquim Rodrigo. O desígnio do seu projecto criativo era, afinal, entender a abstracção geométrica não já como uma transcendentalização metafísica, como no primeiro Kandinsky ou, de outro modo, em Mondrian ou Malevich, mas antes enquanto novo e radical conceito operatório, partindo da ideia de uma mudança de paradigma essencial na história da arte. No início dos anos 50, a pintura abstracta praticada na Europa fazia parte de um desenvolvimento que procurava nos elementos constitutivos da pintura uma abordagem capaz de criar uma autonomia absoluta, constituindo sobretudo uma linguagem intrinsecamente descoberta na própria pintura, e reorientando assim a herança Construtivista do início do século. O quadro passa a ser entendido como espaço de investigação perceptiva, jogado a partir de uma arquitectura de composição diversa, buscando sempre a essencialidade bidimensional da tela, e recorrendo para isso a fortes contrastes formais ou lumínicos, em oposições constantes estabelecidas entre linhas, formas puras ou orgânicas e cores complementares, como em Composição (1952). Este projecto quase científico de abstracção vai assim determinar a produção pictórica de Rodrigo durante toda a década de 50. Na série de composições a óleo C1 a C10, são patentes as variações formais e cromáticas alimentadas neste contexto de informação. Entre organizações que favorecem uma leitura de composição consubstanciada na definição dos limites do quadro (C3, C4 e sobretudo em C9) e o desenvolvimento de formas de fusão quase orgânica (C6 e C7), Joaquim Rodrigo leva longe o seu esforço de compreensão sobre a essência da pintura abstracto-geométrica. Por outro lado, no caso fundamental do conjunto de pinturas associadas normalmente à pesquisa pioneira do holandês Piet Mondrian, Joaquim Rodrigo procede a uma releitura – associada por Pedro Lapa a um espírito quase neovanguardista de interpretação crítica sobre as vanguardas históricas[11] – dos problemas formais então aflorados, mas invertidos aqui no seu propósito neoplatónico original. Com efeito, Rodrigo contrapõe à linguagem formal de Mondrian uma dimensão tão-somente matemática e semiológica de composição, justificando que a proposta desse modernista do início do século não poderia ter outra consequência para além da sua organização racional e científica, desmistificando assim toda a carga humanista inicial. O que Rodrigo vê nestas pinturas é, antes de mais, uma resolução lógica e conceptual da problemática perceptiva inerente ao formalismo abstracto. Para ele não há outro caminho a seguir. Recorde-se que em Portugal – e apesar do pioneirismo do grupo dos Independentes do Porto, liderado por Fernando Lanhas nos anos 40 – a prática da abstracção geométrica só ganha alguma visibilidade no meio artístico com a apresentação em 1953, na «Galeria de Março», de um conjunto de trabalhos de Edgard Pillet, revelando-se desde logo uma incompreensão generalizada relativamente aos valores e à história da pintura abstracta. Apesar das conferências sobre o tema promovidas nesse espaço de exposição, o labor de Fernando Lanhas, Nadir Afonso, Fernando Azevedo ou Joaquim Rodrigo não alcançaria repercussão de maior. Desses, só Rodrigo e Lanhas não abandonaram a ideia de uma prática artística alicerçada num sistema coerente e universal. Daí para a frente, a passagem do primado da forma para o da cor conduzirá Rodrigo à assunção de uma nova necessidade: a do tempo, enquanto reinvenção sígnica de uma memória essencial, afirmando, em processo interno, a passagem a uma nova-figuração que chama até si também outros valores cromáticos e de conteúdo, atentos sobretudo a um novo e conturbado contexto histórico-social: os anos 60.

 

Da abstracção lírica à nova figuração

 

Os caminhos tomados pela Abstracção em Portugal seriam todavia marcados, em termos gerais, por uma orientação menos racional ou geometrizante, elevando o instinto expressionista e informal a categoria primeira da pintura não-figurativa praticada ao longo da década de 50. O lirismo gestual que a Abstracção assumiu entre nós parecia assim diluir os conflitos doutrinários de neo-realistas e surrealistas em trabalhos que reorientavam o olhar para problemas estritamente pictóricos, conciliando ainda o abstraccionismo com valores semi-figurativos, em registos tão diversos como o gestualismo intimista e sensorial de Menez (1926-1991), a inspiração sígnica da espacialidade citadina em Vieira da Silva ou Fernando Azevedo – nomeadamente em Cidade (1955-56); o domínio abstracto da paisagem em José Júlio (1916-1963) – como em Paisagem de 1954; o registo sensual de Vespeira e a exploração do seu “espaço elástico” (Óleo 119, de 1959), ou ainda a dinâmica afirmação de um “espaço-forma” com na pintura isolada de Manuel D’Assumpção (1926-1969).

Seguindo uma tendência europeia de interpretação subjectiva sobre os valores gestuais e abstractos (Bissière, Bazaine, Da Stael, Szenes), a pintura portuguesa aprofunda então uma pesquisa formal plenamente integrada na ampla definição do “espaço ambíguo” teorizado nos anos 50 e 60 por José-Augusto França. Aí se praticava uma «Abstracção» que, mesmo não assumindo expressamente o real, dele parecia partir ainda, elaborando sobretudo a exploração espacial do plano da tela mediante um jogo de disseminação lírica entre figura e as (não)formas, a luz e sombra, numa nova “invenção de espaço.”[12] Contudo, a defesa da abstracção lírica identificada não só nos artistas da terceira geração modernista já citados como também nas obras de Fernando Lemos, Artur Bual (1926-2000), ou Vasco Costa (1917-1986), assume nas palavras desse crítico uma maior decisão quando se trata de Vespeira e da sua “proposta original de um ‘espaço elástico’, com que sem dúvida se enriqueceu a expressão ‘ambígua’ do espaço moderno, em definição desde o imediato pós-guerra, na pintura ocidental”. Ainda segundo França, “Vespeira aparece-nos, assim, como um pintor de notável importância no contexto da pintura internacional; e, de novo, numa privilegiada posição de primeiro plano na sua geração.”[13] Mesmo situando no tempo o entusiasmo geracional contido nas palavras de José-Augusto França, os trabalhos abstractos realizados por Vespeira entre 1958 e 1962 exploram de um modo sensorialmente vibrante e dinâmico, as relações entre gesto, espaço e cor, sugerindo um prazer óptico que poderia ter ainda como referência residual algum automatismo da fase surrealista. Em certa medida, a abstracção ambígua de Vespeira aproxima-se numa primeira leitura do formalismo de Manuel D’Assumpção. Contudo as eventuais aproximações entre os dois projectos devem ser entendidas, desde logo, na sua especificidade. Primeiro porque ambos trabalharam sem contacto sobre o trabalho um do outro, Vespeira em Lisboa e D’Assumpção em Paris. De outro modo, se há por vezes alguma semelhança de conjunto, as opções formais têm origem em propósitos bem distintos, pois enquanto a abstracção de Vespeira opera uma percepção sensual do espaço pictórico, D’Assumpção estabelece sobretudo um jogo fragmentário entre formas e espaços bem definidos numa referência a Vieira da Silva e com intenções de inspiração espiritual. À ductilidade óptica de Vespeira, Manuel D’Assumpção prefere o registo ambíguo de um minucioso confronto formal, sugerindo por vezes profundidade e transparência, como em Lirismo Azul (1958).

Os valores do abstraccionismo lírico português tiveram ao longo da década de 50 um desenvolvimento crescente, sendo sintomática a realização por Rui Mário Gonçalves, logo em 1956, de uma Retrospectiva da pintura não-figurativa em Portugal (Faculdade de Ciências de Lisboa). Também nesse ano 56, outra importante exposição, a d’«Os Artistas Hoje», apontava para um convívio plural entre a pintura figurativa mais lírica e a expressão de um gestualismo de raiz abstracta. O carácter globalmente independente desse tipo de exibições, bem como a vitalidade da SNBA, acabaria por isolar definitivamente os Salões oficiais do SNI, reduzindo a política cultural do Estado Novo à decoração das instituições do País.

Apesar da maioria dos artistas ter participado ao longo da década em algumas exposições do SPN/SNI, já em 1959, os artistas fizeram frente às posições conservadoras do regime, assumindo uma posição ética e política que recordava a acção do MUD e a oposição ao regime no imediato pós-guerra. Sentindo-se provocados pela nomeação, nesse ano, de Eduardo Malta, o ultraconservador e retratista académico protegido do regime, para a direcção do Museu Nacional de Arte Contemporânea – que depois da acção positiva de Diogo Macedo entrara de novo em declínio – os artistas da terceira geração moderna prometeram afirmar uma clara posição política, tendo ainda na memória a fraude eleitoral que, em 1958, impedira o General Humberto Delgado de chegar à presidência da República.

A realização da exposição dos «50 Artistas Independentes», na SNBA, confirmava assim uma vontade explícita de liberdade e defesa dos valores modernos em arte, em oposição ao conservador recuo do regime salazarista. Afinal, “Independente quer dizer não dependente – e como independentes se afirmam os artistas portugueses presentes nesta exposição”,[14] podia ler-se no cabeçalho do pequeno catálogo que acompanhava a mostra. Assinavam essa declaração de significado político e estético os membros constituintes da comissão organizadora: Conceição Silva, Fernando Azevedo, João Abel Manta, Jorge Vieira, José Júlio, Júlio Pomar e Vespeira, numa manifestação clara da pluralidade que caracterizava já o final da década. Para além do evidente distanciamento político relativamente ao salão dos “Novíssimos”, criado nesse mesmo ano pelo SNI, essa manifestação marcava uma certa continuidade oposicionista às actividades culturais do regime que tinha como referência ainda a dinâmica das Exposições Gerais. Os prémios distribuidos um pouco por todas as disciplinas e opções estéticas nos Salões de Arte Moderna organizados pelo Estado procuravam desse modo silenciar qualquer necessidade de independência. Atitude contrariada de quando em vez pela acção não-organizada de alguns desses artistas que, apesar de já não envolvidos com qualquer expressão de crítica social ou política directa, permaneciam reivindicativos de maior liberdade, participação e cidadania.

Durante a segunda metade dos anos 50, a defesa da abstracção lírica seria legitimada apenas por alguns sectores do meio artístico, pois o fenómeno da Abstracção teve em Portugal pouca repercussão e uma aceitação crítica bastante tardia e raramente informada, tendo em José-Augusto França, Fernando Pernes, Rui Mário Gonçalves, Fernando Guedes e Mário de Oliveira as excepções maiores face a uma classe, de um modo geral, pouco interessada nos valores não figurativos da pintura ocidental.

Por outro lado, o registo de uma espécie de continuidade da pintura figurativa ao longo dos anos 50 revertia agora, cada vez mais, em favor de artistas como Rogério Ribeiro (n. 1930) e a sua variação lírica de cariz neo-realista; Querubim Lapa (n.1925), produzindo desde uma inicial inspiração neo-realista, escultura, pintura, azulejaria e elegantes painéis cerâmicos marcados pelo hieratismo a-histórico das suas figuras levemente modernizadas, que lembram ainda a bidimensionalidade dos ícones religiosos da antiguidade, como em O Espelho quebrado (1950); João Hogan (1914-1988) e as suas intimistas paisagens de volumes semi-abstractos; Sá Nogueira (n. 1928) e os retratos de forte pendor moderno (no final dos anos 40 por via modiglianesca, e depois jogando com uma serena e autónoma originalidade) combinando ainda cenas de referência íntima e doméstica, ou Nikias Skapinakis (n. 1931) e as suas paisagens ou figuras recortadas em forte contraste de cores puras, como que a prenunciar a sua futura atmosfera pop. Mais do que uma defesa da figuração contra o abstraccionismo, estes artistas perfizeram apenas uma outra interpretação da modernidade visual, longe das polémicas de grupo ou de vanguarda, reabilitando figuras mais moderadas do modernismo parisiense de entre guerras como Chagall ou Bonnard, bem como outras e isoladas referências estilísticas não modernas. Reafirmava-se, dessa forma, uma possibilidade de convívio entre propósitos só aparentemente opostos, ao assumir uma reformulação progressiva de valores abstracto-figurativos, criando assim as condições para o nascimento de uma nova figuração.

 

[versão original, in Arq.a – Revista de Arquitectura e Arte, nº 27, Setembro/Outubro de 2004]

 

References
1 Sobre a influência do Salon des Réalités Nouvelles na arte portuguesa dos anos 50 cf. Lapa, Pedro, “Tempo e Inscrição”, in Joaquim Rodrigo: Catálogo Raisonné. Lisboa, IPM-Museu do Chiado, 1999, pp. 20-30.
2 Curiosamente, António Ferro seria afastado do SPN em 1950 com o fim da “Política do Espírito”, deixando o Estado Novo de considerar essencial o controlo sobre a acção dos artistas plásticos, se exceptuarmos a continuidade dada à política de decoração de obras públicas, prolongada inclusive até aos anos 70. Sobre a “Política do Espírito” ver Ó, Jorge Ramos do, Os Anos de Ferro. O dispositivo cultural durante a ‘Política do Espírito’. 1933-1949. Lisboa, Editorial Estampa, 1999.
3 Significativo dessa vontade de formar artistas e público foi o conjunto de debates organizados quando do “I Salão de Arte Abstracta”, em 1954: “Durante os quinze dias do ‘Salão’ (onde se via ainda uma notável exposição bibliográfica sobre arte abstracta) realizaram-se no Instituto Francês dois serões de debates, nos quais se discutiram problemas estéticos, sociológicos e plásticos: ‘Arte Abstracta e Arte Não-figurativa’, ‘A Arte Abstracta e o Imaginário’, ‘Função da Arte Abstracta’ e ‘Problemas Plásticos da Arte Abstracta’”. Cf. França, José-Augusto, “O I Salão de Arte Abstracta – 1954”. Lisboa, Colóquio Artes, nº 28, Abril de 1964, p. 25.
4 Cf. Theo Van Doesburg, “Manifeste de l’art concret”, Concret. Paris, 1930.
5 João Fernandes, “Um pouco todos sabemos”, in Fernando Lanhas. Lugar do Desenho. Porto, Museu de Arte Contemporânea de Serralves, 2001, p. 14.
6 Sobre esta dialéctica cf. Egídio Álvaro, “Fernando Lanhas na Origem da Pintura Abstracta em Portugal”, in Revista de Artes Plásticas, nº 5, Setembro de 1974, p. 15.
7 Informação colhida em João Pinharanda, O Abstraccionismo Geométrico em Portugal.Dissertação de Mestrado, [texto policopiado]. Lisboa, FCSH-Uiniversidade Nova de Lisboa, 1988.
8 Fernando Guedes, Fernando Lanhas. Os sete rostos. Lisboa, IN-CM, 1988,  p. 16.
9 Cf. João Pinharanda, “Lanhas: Intuição e Geometria”, in Colóquio Artes, nº 71 (Dezembro), Lisboa, 1986.
10 Não podemos esquecer que Joaquim Rodrigo foi Engenheiro Agrónomo, tendo inclusive trabalhado nos anos 40 com o arquitecto Keil do Amaral no projecto de arquitectura e florestação do parque de Monsanto, em Lisboa. Essa formação científica determinará fortemente a sua investigação artística ao longo de toda a  vida.
11 Cf. Pedro Lapa, “Tempo e Inscrição”, in Pedro Lapa e María Jesús Ávila, Joaquim Rodrigo. Catálogo Raisonné. Lisboa, Museu do Chiado, 1999, pp. 14-85.
12 Cf. José-Augusto França, “A pintura não figurativa e o espaço ambíguo”, in Situação da Pintura Ocidental. Lisboa, Ática, 1958.
13 França, José-Augusto, A Arte em Portugal no Século XX. Lisboa, Bertrand Editora, 3ª ed., 1991, pp. 421-422.
14 Cf. in Catálogo 50 Artistas independentes. Lisboa, SNBA, 1959, p. 2.