A Arte não representa o visível, torna visível.
Paul Klee
- 1. Imaginemos um mundo onde o «real» se confunde com as suas imagens. Arquiconhecido e mapeado, nele só avançamos porém no espaço etéreo de uma sucessão infinita de imagens enquadradas. A perceção do mundo converte-se assim numa experiência de enquadramentos, sem visão periférica, mas dinâmica, que nos aproxima do real, evocado através dos seus fragmentos visuais. Indiscernível na sua compreensão total, o «real» desse mundo expande-se no desdobramento luminoso do registo fotográfico e a natureza da sua presença fenoménica é absoluta, omnipresente e sem exterior.
Nesse mundo, só as imagens capazes de nos guiarem pela escuridão do excesso perfilam uma espécie de viagem, onde o efeito espectral se confirma no exercício de uma ligação privilegiada, isto é, entre imagens produzidas pela capacidade de enquadrar esse real rarefeito, simultaneamente distante e mágico. Tal como nos filmes publicitários dos nossos dias, grávidos de magnéticos efeitos, observamos uma realidade tautológica, onde uma imagem abre a porta a outra e assim assistimos à deslocação das ligações imagéticas que definem as representações do real. Daí resulta uma vida feita de imagens, onde a sua realidade intrínseca, a sua «verdade», modela a perceção do «real», constituindo-o. Nessa correspondência vivemos, sem nos darmos conta do efeito e do sentimento de completude que é aprender a reconhecer as secretas relações entre as imagens, os seus referentes, cores, formas, desejos.
- 2. Quando observo um livro ou uma exposição de José Pedro Cortes, lembro-me sempre das palavras de São Tomás de Aquino: «A verdade é a correspondência entre coisas diferentes.»[1] Acrescentaria talvez: «… é a correspondência “perfeita” entre coisas diferentes». Nada mais. E o trabalho fotográfico de José Pedro Cortes insinua-se como a representação visual dessas palavras, ao revelar-nos, de modo discreto mas decisivo, ao mesmo tempo nómada e diletante, a «verdade» mais subtil da natureza, dos objetos e dos corpos que humanizam o território, ou o espaço e a luz que nos chegam através da imagem captada, ou enquadrada, entre o instante da fotografia e o olhar que o determinou. Nesse preciso momento, dou comigo a preferir viver num mundo de imagens enquadradas, perfeitas na sua experiência fragmentária, responsáveis por esse novo «real», envolvente, produzido no esplendor dos seus sinais, transfigurado ainda entre a identidade e a alteridade de uma realidade suspensa, mas atuante. Nas imagens de Cortes, e na relação de influência da sua montagem, somos convocados a uma espécie particular de osmose entre o mundo, ou o «real», o «imaginário», e a sua representação, pois os jogos cromáticos, estético-formais ou de significado que podemos estabelecer entre as imagens e os seus referentes, ampliam ou aprofundam o nosso espectro visual mas, mais ainda, a nossa consciência sobre a poética da vida e a sua apresentação fenoménica, espécie de compensação face ao fluxo do tempo e das suas imagens infinitas.
Seja no Japão mais esquecido de Toyama, na transcendência e frenesim da grande Tokyo ou num quarto em Tel Aviv, nas dunas da Caparica ou nas traseiras lúgubres de um quarteirão de Lisboa, as suas imagens potenciam o encontro secreto entre as formas da vida e as suas sombras efémeras. Essas formas cristalizadas em imagem estática não nos chegam, porém, através da clarividência convencional da comunicação fotográfica, antes pelo processo mágico dessa matriz goethiana que dá pelo nome de Afinidades Electivas ou Wahlverwandtschaft, isto é, uma alquimia da aproximação, essa analogia profunda ou ligação inesperada, complexa, entre corpos aparentemente estranhos mas que ganham consciência de um parentesco íntimo, quase imperceptível. Trata-se, perante o poder da razão e da ciência, da valorização romântica das ligações subterrâneas, espécie de substância do invisível, entre aquilo que se mostra ao mundo enquanto fenómeno físico e percetivo, e o que se esconde à espera da nossa compreensão estética sobre a sua decisiva presença, ainda que obscura ou pouco decifrável. Tal como as árvores estão ligadas umas às outras pelo imbrincado e a força das suas raízes, há no trabalho de José Pedro Cortes uma corrente formal, forte na sua expressão inframince, que suspende a existência real e concreta da vida e nos oferece, por fim, as suas insondáveis correspondências, como nova «verdade». E se, enquanto observadores, essa «verdade» é fruto, afinal, da nossa capacidade de criar imagens (mentais), sabemos que há imagens formalizadas em fotografia que, quando combinadas com outras que habitam em nós, sejam pictóricas, reais, ou imaginadas, produzem um efeito de extraordinária volatilidade ou significado metafórico, como expressão desse universo livre que é o nosso imaginário. A «imaginação» alimenta-nos, desse modo, a capacidade de «ler» e «recriar» o mundo, ou seja, de projetarmos a sua perceção mais fecunda.
- 3. Sabemos ainda, pelo gesto intuitivo, que a «imaginação» é uma capacidade imensa e perpétua, mas se, em certo sentido, pode até ser «perigosa», tal como «já a palavra imagem o era», não o será por expressão arbitrária ou contingente. Segundo Georges Didi-Huberman, devemos repetir «com Goethe, Baudelaire ou Walter Benjamin que a imaginação, por mais desconcertante que seja, nada tem a ver com uma fantasia pessoal ou gratuita. Pelo contrário, concede-nos um conhecimento transversal, graças ao seu poder intrínseco de montagem, que consiste em descobrir — precisamente no sentido em que recusa os vínculos suscitados pelas semelhanças óbvias — vínculos que a observação direta é incapaz de discernir.»[2] Ou, como sintetiza Charles Baudelaire, a propósito de Edgar Allan Poe (citado ainda por Didi-Huberman): «A imaginação não é fantasia; também não é a sensibilidade, se bem que seja difícil de conceber um homem imaginativo que não seja sensível. A imaginação é uma faculdade quase divina que antes de mais apreende, para além dos métodos filosóficos, as relações íntimas e secretas entre as coisas, as correspondências e as analogias.»[3] Observando igualmente o valor deste triunvirato, Maria João Cantinho sublinha que, «entre o conceito goethiano de imagem e a noção de correspondência baudelaireana, Benjamin vê na imagem o modo de dar a ver o conteúdo histórico das coisas.»[4] Para o pensador alemão, o saber imaginativo, essa gaia ciência visual reivindicada por Goethe desde Afinidades Eletivas, constitui-se como o eixo fundamental de uma experiência de conhecimento cintilante na sua tarefa dialética. As imagens, mais do que os textos, traduzem assim uma especial fulgurância da memória e da história através dos trabalhos da imaginação. Tal como defende ainda Benjamin: «toda a conceção autêntica do tempo histórico repousa inteiramente sobre a imagem da redenção.»[5] É assim a assunção «dialética» de um novo mas poderoso imaginarium, aquele que, apesar de preso ao real desde a sua origem (do ímpeto mimético e figurativo que atravessa a humanidade desde o desenho das cavernas, ao exercício fotográfico), promoveu ao mesmo tempo a exponenciação do imaginário próprio e redentor que repousa em cada imagem e o desenvolvimento babélico do «inferno» arquivista da sua preservação, transformando esse efeito, a dois tempos, memorialista e imaginativo, no insaciável desígnio da nossa era. Por isso, a fotografia, seja a que José Pedro Cortes realizou recentemente entre o seu estúdio e as viagens, como a que no início do século XIX prometia o projeto de descoberta e fixação da realidade visível, produz em nós um efeito de magia contagiante, que nos transporta a um tempo e a um espaço mais ou menos identificados pela permanência de uma visualidade reconhecível, mesmo perante as transformações ditadas pela ação dos homens e das sociedades, ao mesmo tempo que nos isola perante o pormenor não identificado e, por isso, ausente das nossas referências, abrindo-nos assim uma poética da alteridade que o desconhecido sempre introduz no exercício da visualidade.
- 4. Antonin Artaud escreveu: «L’absence est plus réelle que la présence puisqu’elle est éternelle, elle est en somme réaction qui est plus immuable et permanente que l’action.»[6] O valor da ausência adquire, no trabalho de Cortes, um caráter concreto. Podemos mesmo identificá-lo como esfera da dissimulação, dotando-a, porém, e quase paradoxalmente, de sentido e inteligibilidade. Trata-se de um exercício pendular, entre o visível e as suas margens, os silêncios cativos, as marcas do inverosímil. Tal como Coleridge falava da «suspensão da descrença», sugerindo resistência a qualquer espécie de incredulidade sobre as hipóteses mais improváveis do estranhamento, as imagens que o artista nos permite observar parecem pertencer a esse universo de surpresa que nos conduz inicialmente à incredulidade sobre a sua veracidade, apesar de sentirmos, desde o início, a força da sua «verdade» intrínseca – particularmente convincente no inaudito ou não visto, mas entrevisto – reforçada a cada observação, a cada gesto de crédito dos seus efeitos sobre os nossos sentidos e intelecto, como um imaginário de emancipação, ou reverberação afetiva, que atua, a partir da exegese da montagem, contra toda a aparente certitude que nos rodeia. O próprio José Pedro Cortes nos assegurava em 2005, a propósito do seus livro Silence: «I’m always experiencing the distante in silence, in between presence and absence.».
Ao conceber cada imagem como uma experiência que suscita o seu lugar na relação predominante com outra imagem vizinha, importa ainda lembrar o modo como José Pedro Cortes explora a fotografia como um campo de inspiração sobre as possibilidades de visualizarmos o mundo para lá da proliferação das imagens comuns, espontâneas e recorrentes, presentes na banalização visual do nosso sistema de comunicação globalizado. Mas, como o próprio artista reconheceu recentemente, apesar desta caraterística essencial, duas novas decisões reorientaram este trabalho no sentido experimental da observação e do registo: «uma de ordem técnica, a outra relacionada com o conteúdo. Comecei a usar a câmara digital e fui abandonando o registo mais documental do território, que estava muito presente noutros trabalhos.» Desse modo, se a fotografia resultava antes de uma película impregnada de sais de prata, escurecida numa fração de segundo no momento em que a luz entrava através de uma objetiva e imprimia uma imagem no filme, e por essa razão parecia constituir-se ainda como uma reminiscência da lanterna mágica, o digital veio introduzir alterações ao nível da temporalidade de execução, que recentraram a fotografia perante uma nova experiência de instantaneidade, aparentemente mais fácil na sua disponibilidade quase omnipresente, e que José Pedro Cortes não enjeita, antes enfrenta, reencaminhando a sua produção fotográfica na consideração desse novo dispositivo mimético, sem contudo esquecer o princípio essencial do seu próprio desígnio: captar imagens que, de um modo consciente e deliberado, se afastem da banalização visual que a produção digital tende a promover.
- 5. Essa tarefa de independência da contemplação visual, a que a fotografia deve permanecer sempre vinculada, pode ser testemunhada na progressiva afirmação de uma voz autoral como a de José Pedro Cortes, que não abdica do valor dessa afinidade perpetuada nas relações secretas entre as imagens e o sentido poético da sua rigorosa apresentação. Desse modo, três livros (photobooks) – que respondem pelos títulos de Things Here and Things Still to Come (2011), Costa(2013), e One’s Own Arena(2015), todos publicados pela Pierre von Kleist – revelam o extremo cuidado que o artista coloca em cada momento de edição, explorando uma narrativa visual mas idiossincrática na paginação das imagens, no rigor da independência de cada uma delas, mas também as suas combinações possíveis, primordiais, bem como as escalas dessas combinações, as significações específicas das cores, as ínfimas conexões, quase impercetíveis, das pequenas perceções. Essa tarefa produz assim uma axiologia do olhar, um eixo de conexões, no qual as imagens adquirem novas determinações, como um programa que tem a sua formulação mais radical na reactualização da ideia de deriva, cuja lógica, baseada na aventura da observação, inviabiliza qualquer ideia de perenidade. Tal como nas palavras de José Pedro Cortes, é decisivo «que se sinta a fragilidade de uma imagem nunca ser a definitiva, de o meu olhar nunca ser correto, de haver sempre mais imagens». É este exercício pluralista, de abertura processual, impermanente e sempre insatisfeito, que se infiltra, finalmente, no domínio mais extenso e profundo da contemplação visual, ao ponto de desenhar um novo mapa de significações que pode assumir em nós, a partir da faceta contemplativa, um protagonismo de palavras, de verbalizações incontornáveis. Não esqueçamos que, em grego antigo, a palavra «teoria» significava também «contemplação» e, por isso, no quadro essencial de uma experiência maturada, «olhar», ou melhor, elevar a «observação» ao plano da «contemplação», poderá significar, como nas imagens que definem A Necessary Realism, um produtivo nomadismo da reflexão, inspirado pela temporalidade visual, que realiza uma outra instância poética, feita de vasos comunicantes e dicotomias tensionais ou dialogantes, que se entrelaçam por fim na consciencialização da substância da imagem, definindo ainda as suas tipologias periféricas, excludentes afinal do que está para lá do enquadramento, e de onde emerge o resultado da elaboração de um comportamento estético e formal, que se constitui não só como esfera de uma visão particular, como ainda enquanto raiz que acende um deslumbramento, aludindo ao impulso mágico da captação dos instantes do real que os corpos e os objectos produzem na relação com a câmara fotográfica. Se, para Foucault e Deleuze, o «selo» constituía, pela sua natureza transfronteiriça, a metáfora perfeita para exigir a urgência e a necessidade de uma desterritorialização do saber, então os corpos, as paisagens, os interiores e os exteriores que se disseminam nas secretas relações das imagens produzidas por José Pedro Cortes, poderão significar igualmente uma espécie de oportunidade única para uma desterritorialização do «real», enquadrado pela imagem fotográfica. Aí, a identidade permanece obscura e a alteridade vagueia, como um fantasma, nas soluções efémeras de uma poética do olhar. Tudo se resume ao potencial da significação das imagens, das suas Afinidades Electivas, determinadas apenas na hipótese concreta de uma «verdade» absoluta, a verdade da imagem e o seu imaginarium particular. Isto é, um mundo onde o «real» se confunde com as suas imagens. Nada mais.
[versão original: in AAVV, A Necessary Realism, Lisboa, Pierre von Kleist / Museu Nacional de Arte Contemporânea – Museu do Chiado, 2018]
[Fotografia: José Pedro Cortes, Blue Plants, 2016]
1 | ↑ | Cf. Tomás de Aquino, Questões Disputadas Sobre a verdade e Sobre o verbo, São Paulo, Martins Fontes, 2013. |
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2 | ↑ | Cf. Georges Didi-Huberman, Atlas ou a Gaia Ciência Moderna. O Olho da História, 3, (2011), (trad. port. de Renata Correia Botelho e Rui Pires Cabral), Lisboa, KKYM + EAUM, 2013., p.13. |
3 | ↑ | Charles Baudelaire, “Notas sobre Edgar Poe”, p. 104. (citação colhida em Didi-Huberman, op. cit, p. 13). |
4 | ↑ | Cf. Maria João Cantinho, in https://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/numero39/imadiale.html |
5 | ↑ | Walter Benjamin, op. cit. [N 13 a, 1]. |
6 | ↑ | Cf. Antonin Artaud, Œuvres completes, Tome VIII. Paris, Gallimard, 1971, p. 130. |