1999 Furor Modernista Dada e a Abstracção

Furor Modernista

 

Até à ressaca da II Guerra Mundial, o utopismo modernista reorientava-se maioritariamente em torno dos valores da emancipação do homem e da função progressista da criatividade, aliando o experimentalismo individual à acção colectiva de toda uma sociedade. Nessa primeira metade do século, a transformação do mundo passava também pelas artes visuais, pelos seus resultados e alianças com as ideologias do progresso. Em detrimento de um subjectivismo figurativo mais atávico e conotado com o tradicionalismo burguês, a abstracção geométrica surgia então, aos olhos de muitos, como o correspondente mais elevado das ideias revolucionárias que o socialismo soviético, na sua fase inicial, parecia prometer. As vanguardas russas juntavam-se assim aos gritos Dada do centro da Europa. Crescia por todo o lado o desejo de uma nova arte para um homem novo, unindo os esforços de muitos dos que viriam a fazer a história da arte deste século. O fervor de uma arte radicalmente moderna assumia-se ao mesmo tempo contra a apatia das belas artes e a favor de uma ambígua ideia universalista baseada ainda na possibilidade de tomar as massas como ponto de partida e destinatário privilegiado dos novos desígnios anunciados. Como todos sabemos, ao projecto dessa utopia que arrastou várias gerações, convencionou-se chamar de modernismo. De facto, o modernismo, pela sua ampla ambição reformuladora, estendeu a sua influência ao longo de todo o século, mantendo-se ainda hoje como paradigma fundamental com o qual quase todos os artistas se relacionam. É curioso notar, no entanto, que seria precisamente entre a burguesia mais estabelecida que a arte moderna viria a alcançar maior aceitação, contrariando desse modo as suas próprias expectativas iniciais.

Entre nós, as leituras sobre o conceito e a prática artística dessa fase essencial são ainda bastante reduzidas e precárias. Por isso, uma exposição como a que agora se apresenta no Museu do Chiado até ao próximo mês de Abril, sob o título ambíguo de Furor Dada- a colecção de Ernst Schwiters, repropõe, entre outras, algumas das questões acima enunciadas. O que aí se pode descobrir são sobretudo alguns dos nomes essenciais que fizeram o Construtivismo russo e internacional, bem como os grupos de arte abstracta, Cercle et Carré e Abstraction-Création. Efectivamente, este “furor Dada” não trata directamente sobre qualquer expressão do dadaismo, antes trabalha numa genealogia que aparentemente daí parece partir. Esta é a colecção que o filho de Kurt Schwiters reuniu desde os anos 80 até à data da sua morte, em 1996, depois de se ter tornado inevitavelmente na maior autoridade sobre o inventor das colagens e construções Merz. Como ele próprio confessa: “passava o tempo diante da máquina de escrever, contestando um sem fim de cartas, que na sua maior parte não tinham sentido. Na prática, havia-me convertido num homem-instituição […] Eu já não era Ernst Schwiters, mas apenas um empregado não remunerado do Instituto Schwiters”. De modo irónico, Ernst resumia nestas palavras uma vida de dedicação absoluta em prol da memória e da obra de seu pai. Os intercâmbios e relações de amizade estabelecidas entre Kurt Schwiters e artistas como Hans Arp, Moholy-Nagy, Walter Dexel, Paul Klee, Puni ou Van Doesburg, revelam o desejo permanente de uma prática artística de vanguarda, entre a “demência” Dada e o progressismo do espírito construtivista. Manifestos e movimentos artísticos que em torno da abstracção (sobretudo geométrica) faziam crescer a ideia de uma arte plena e “universalmente compreensível”.

A colecção de Ernst Schwiters segue de perto os círculos de amigos do próprio Kurt, reunindo um leque de artistas que somente desta forma poderiam circular por entre alguns dos melhores museus da Europa. No percurso da exposição podemos assim constatar a influência decisiva para todo o modernismo da galeria berlinense Der Sturm, com destaque para duas excelentes abstracções geométricas de Walter Dexel, um relevo de Hans Arp, uma escultura abstracta de Victor Servranckx, para além de pinturas de Willi Baumeister, Hans Richter Max Ernst, Klee, Léger, Marcoussis, Picabia, e Picasso – os quatro últimos aparecem aqui associados a esta galeria pela sua presença no Salão de Outono de 1913.

Uma das presenças mais fortes da exposição é a do núcleo dos Construtivistas Russos, sublinhando-se o facto de pela primeira vez em Portugal se poder observar directamente alguns exemplares dessa abstracção suprematista ou construtivista equilibrada entre linhas, cores e figuras geométricas bastante sóbrias. As obras expostas são quase todas de grande qualidade, lembrando-se aqui nomes como Ana Kagan, Sergei Lutschischkin, Olga Rozanova, Serguei Senkin, Ilia Tschaschnik, ou Nadezhda Udaltsova.

Dos grupos Cercle et Carré e Abstraction-Création, surgidos em 1930 para reforçar o domínio da abstracção de alguns artistas parisienses, são apresentadas, entre outras obras, uma magnífica abstracção de Josef Albers, duas composições de Jean Gorin que desenvolvem espacialmente algumas das propostas de Piet Mondrian, uma construção de guache e corda de Barbara Hepworth, datada de 1940, um Kandinsky dos tempos da Bauhaus, uma Forma do Azul (1931) de Frantisek Kupka que lembra as suas primeiras experiências abstractas dos anos 10, o Tp1 (1930), do húngaro László Moholy-Nagy, ou, por último, uma subtil Estrutura com forma abstracta (1930) do uruguaio Joaquín Torres-García.

Por aqui evolui uma colecção que não perde de vista o valor essencial desse modernismo que Kurt Schwitters nos legou nas obras Merz (das quais se podem agora apreciar alguns exemplares), entre a colagem e a autonomia material e formal dos elementos que as constituem, pontuando ainda e sempre o desejo da experimentação em arte.

 

(versão original: in Arte Ibérica, Fevereiro de 1999)

 

(imagem: Kurt Schwitters, Ohne Titel (Merz Werbezentrale), 1934)
© Ernst und Kurt Schwitters Stiftun