Em comum: o vídeo, a ideia de continuidade e repetição sistemática. Em diferendo: o objecto de referência, a estrutura estético-visual. Noé Sendas e Manuel Valente Alves são os artistas portugueses desta “Sessão contínua”, cirurgicamente comissariada por João Pinharanda. Aliás, as duas instalações vídeo presentes na exposição integraram já, em Fevereiro último, a colectiva “Observatório” (orientada pelo mesmo comissário), aquando da Feira Internacional de Arte de Madrid -ARCO’98. João Pinharanda pretendeu assim dar visibilidade interna a trabalhos defendidos sobretudo lá fora e que desta forma prosseguem, agora entre nós, o seu percurso crítico de recepção e comentário.
Nos dois trabalhos, o suporte vídeo – espécie de meio técnico “obrigatório” que alimenta o actual sistema de legitimidade artística – aparece aqui como estratégia de afirmação de uma criatividade deliberadamente interrogativa acerca dos valores da memória, da fragmentação cultural, ou da sua indiferenciada circularidade. O vídeo de Noé Sendas, intitulado Impulsos e hesitações (4’40’’) realiza, através da projecção quebrada em dois planos (entre tecto e parede), uma particular suspensão da acção filmada que, montada em “loop”, nos mostra a queda contínua e repetitiva de uma jovem, da qual nunca se chega a ver a sequência total. Esta é uma imagem estruturada a partir de uma expressão visual onde o onirismo subjacente é filtrado pela colagem sonora de alguns monólogos da filmografia de Godard. A conjugação deste dois elementos aparentemente distantes (à partida, a imagem seleccionada nada tem que ver com a imagética godardiana) remete para uma certa ambiguidade de sentido proposta, ao mesmo tempo, pela banda sonora procurada no polémico e genial realizador francês e a imagem construída em torno do amplo significado da queda, conotada por exemplo com a ideia de morte ou desmoronamento geral, da memória à incomunicabilidade característica do nosso tempo.
De outro modo, em Hotel Europa (50’), Manuel Valente Alves apresenta-nos o registo de uma viagem de comboio que nos leva de Viena a Praga, por entre a paisagem comum e desnacionalizada dessa área geográfica, manipulando esse registo no intuito de melhor confundir as referências visuais de um dos berços da cultura europeia. Imagens essas confrontadas aqui com excertos musicais de autores eruditos como Heinz Holliger, Heinz Reber e Sofia Gubaidolina, aí pontuando a necessária reflexão sobre a despersonalização das imagens e a identificação cultural específica proposta pelos excertos musicais reunidos. A memória colectiva de uma Europa que recentemente sofreu profundas alterações (das fronteiras políticas ao domínio ideológico) é assim questionada segundo a progressiva percepção dessa falsa arbitrariedade da imagem. Processo esse particularmente aniquilador da ideia mais convencional de cultura europeia.
(versão original: in O Independente, 30-10-1998)
(imagem: Noé Sendas, Impulsos e Hesitações, 1997-1998)