2006 Jogo e obsessão Woody Allen

Jogo e obsessão

 

Depois do cáustico “As Faces de Harry” (1997), Woody Allen manteve-se demasiado tempo à deriva, perdido entre a leveza narrativa e um humor expectável. Eis que surge agora, e finalmente, “Match Point”, um grande filme de Woody Allen, sem humor, sem Woody Allen como actor, nem ninguém a fazer-se passar por ele. Este é um filme sério e a sério, que recoloca o realizador nova-iorquino de novo entre os melhores da actualidade.

“Match Point”, como o nome indica, trata de uma narrativa onde o personagem principal Chris (Jonathan Rhys-Meyers), um irlandês, ex-jogador profissional do circuito ATP, tenciona ascender socialmente por entre a elite londrina, começando por ensinar a prática do Ténis em clubes privados. Para ele, tal como para todos nós, afinal, a vida é um jogo em que é preciso talento e engenho, mas também muita sorte. Logo no plano inicial, uma bola em “câmara lenta” paira em suspenso sobre a rede sem sabermos para que lado cairá. Sorte se cair do lado de lá, azar se ficar no nosso meio campo.

Com a vertigem que só a ficção permite, Chris conhece Tom Hewett (Matthew Goode), que o introduz na intimidade da sua família, rica e ligada à alta finança inglesa que o acolhe quase de imediato, sabendo-se aí da sorte que lhe cabe na primeira fase da história. Contudo, os sortilégios do amor despertam um novo e perigoso desafio ao nosso personagem, quando inadvertidamente se apaixona loucamente por Nola (magnífica Scarlett Johansson), a namorada do seu amigo Tom. Se tudo parecia correr bem com o envolvimento de Chris e Chloé Hewett (elegantíssima Emily Mortimer) a irmã mais nova do seu amigo, que o havia seduzido com a permissão da própria família, o certo é que o desejo carnal por Nola se intromete, e de que forma, no projecto de ascensão social de Chris (espécie de Mr. Ripley de Patrícia Highsmith). Assim, quando tudo se encaminha para que Chris se afaste de Chloé, depois de uma experiência de alcova com Nola (numa magnífica cena de exterior, com a chuva que cai sobre os corpos amantes a metaforizar as almas por uma vez lavadas das máscaras sociais impostas pelas necessidades mundanas. E reparem que só por essa vez a chuva, tão típica dos céus londrinos, faz a sua aparição) é a própria Nola que impede os desejos do amante ocasional, dizendo-lhe que tudo não passara de um episódio, e que em breve seriam apenas cunhados. Esfriados os ânimos da paixão, Chris casa com Chloé, ou com o seu estilo de vida, aceitando mudar de profissão, passando dos courts para o jogo do mercado de capitais que o sogro logo lhe disponibiliza. Claro que a história não fica por aqui e, perante a inesperada separação de Nola e o menino Hewett, Chris sente reacender-se a chama dessa antiga e proibida paixão. Procura então desesperadamente por Nola, encontrando-a finalmente numa exposição da Tate Modern, onde lhe suplica o número de telefone para um reencontro que sabemos de antemão ligado a um desenlace fatal. Com efeito, Nola e Chris, os dois “outsiders” desse jogo elitista promovido pela família Hewett, reatam uma relação que tornará esta uma história de conflito emocional, de amor (Eros) e morte (Thanatos), como nas tragédias das óperas a que regularmente assistem os Hewett. E aqui o jogo do amor torna-se perigoso, quando os papéis se invertem e a paixão toma por completo Nola, exigindo a Chris que se separe de Chloé porque espera no ventre um filho desse amor proibido. Isto precisamente quando, apesar de todas as tentativas, a própria Chloé não consegue engravidar. Desta forma, o amor torna-se um dilema que é ao mesmo tempo um pesadelo para Chris, o jogador que terá, a partir da aí, de jogar bem e com firmeza. Entre a paixão carnal e o amor terno de uma esposa que lhe dá igualmente acesso a uma vida de luxo e bem-estar social, Chris vacila, hesita, pede tempo, alimentando o sonho de Nola de que Chris resolverá o problema a seu favor. Perante o adiamento constante da decisão, o medo de um escândalo que acabe com o seu casamento, mas também a falta de coragem para jogar a bola final (o primeiro match point) – isto é, acabar a relação com Nola – Chris acaba por se enredar na trama obsessiva do assassínio dessa amante que aos poucos se tornara inconveniente, uma pedra no caminho da sua tão ambicionada ascensão. Tal como em “Crime e Castigo” de Dostoievsky, que Chris lê no início do filme, o desenlace envolverá um crime e o peso moral de uma verdade que só o personagem principal poderá carregar ao longo da vida. Ao optar pela segurança da sua vida com Chloé, Chris mata em nome de um outro amor, não aquele, romântico, que fez a tradição cinematográfica, antes o que nos envolve a todos nesta cultura materialista dominada por uma sociedade de consumo que parece prevalecer acima de qualquer coisa. Se nem todos estarão de acordo com esta interpretação, o que é bom sinal, gostaria de saber quantos foram os que, perante a cena do anel que bate na rede da vedação que separa o passeio público do rio Hudson – quando Chris se desfaz do fruto do roubo simulado para despistar o assassínio de Nola – desejaram que esse saltasse para o lado de lá (o rio), ou seja, o campo adversário, livrando o nosso personagem do castigo pelo seu crime hediondo. No fim, ficamos baralhados com as nuances de sorte e azar que envolvem sempre o jogo da vida e as suas leituras morais.

 

“Match Point” (Reino Unido/Luxemburgo, 2005) * * * *

Realização: Woody Allen

Actores principais: Jonathan Rhys-Meyers, Scarlett Johansson, Matthew Goode e Emily Mortimer.