2022 aproximações formais entre diferentes conceções de realismo para uma urgência do presente Júlio Pomar e Thomas Hart Benton

aproximações formais entre diferentes conceções de realismo para uma urgência do presente

A História não é o passado, é o presente

James Baldwin

 

1. Hot Art, Cold War

 

Refletindo sobre a influência da arte norte-americana na produção artística portuguesa de meados do século XX, é possível afirmar que também no realismo social do pós-guerra, incluindo dos dois lados do Atlântico, existe uma “arte quente”, não como a do Expressionismo Abstrato ou da Pop Art, mas em tensão permanente com os poderes instituídos e a sua moral dominante. Pela via da denúncia crítica de uma realidade escondida e quase sempre afastada das temáticas artísticas, o realismo social “aquece” a experiência e a prática da arte desse período precisamente no sentido da defesa deliberada de uma análise atenta da realidade, através de uma figuração de leitura semiótica direta, muitas vezes urgente na sua ânsia de intervenção, consciencialização política e mobilidade social. Entre a moral expressa pelos poderes políticos (sobretudo do lado português) e a sua contestação alternativa, o realismo social apelou a uma abertura dos sentidos e dos significados na comunicação artística, tendo em vista um futuro da humanidade mais justo em termos sociais. A realidade é, para os artistas que com ela generosamente se envolveram, o campo de uma expressão que identifica nas necessidades coletivas a presença social de cada um e, nas relações entre os indivíduos, a partilha de um ideal essencialmente progressista.

Se até para o Expressionismo Abstrato norte-americano a experiência estética da obra de arte emerge de um imperativo de ordem moral, em particular o da liberdade individual inscrita na expressão subjetiva – do artista como da sua recetividade –, o realismo social dos anos 40 e 50 defende também uma ideia de reflexo contestatário da realidade e da sua moral, inspirada porém em valores de observação das condições coletivas da sociedade e do seu reconhecimento comum, isto é, através de uma universalidade potenciada pelo exercício narrativo de uma realidade tensa e opressora mas, pelo menos enquanto desejo dos seus protagonistas, necessariamente em transformação.

Não é difícil compreender que, entre o neorrealismo português e os realismos pictóricos praticados ao mesmo tempo nos Estados Unidos da América há diferenças, mais do que estéticas, temáticas ou formais, sobretudo de contexto sociopolítico, tanto em termos ideológicos como no que diz respeito às práticas sociais. Nos EUA assistimos a uma sociedade governada pelo princípio capitalista do enriquecimento individual, da igualdade de oportunidades desse modo sustentada, mas também pelo princípio da liberdade de expressão, inserida, porém, num quadro de valores assumidamente anticomunista. Por outro lado, acentua-se a partir de então uma visão estratégica imperialista relativamente à sua política internacional, isto é, à sua presença no mundo, resultado do novo xadrez geopolítico desenhado pelas coordenadas do fim da Segunda Guerra Mundial, princípio do crescente antagonismo bipolarizador, responsável pela nova ordem mundial: a “Guerra Fria” entre EUA e a União Soviética, entre capitalismo e comunismo. Já em Portugal observamos nessa época o exercício de uma ditadura autoritária e limitadora das liberdades que, face à vitória Aliada no conflito mundial, abandonara, por conveniência estratégica, a sua anterior posição neutral. Se, nos primeiros anos da guerra, a neutralidade oficial escondia um apoio aos regimes fascistas, a progressiva inversão política dessa posição procurava sobreviver à derrota dos países do “Eixo Roma – Berlim”, recorrendo no imediato pós-guerra a uma rápida aproximação aos países vitoriosos. Posição essa concretizada na adesão de Portugal à NATO (em português OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte), logo em 1949, o ano da sua fundação, ao promover a cedência da Base Militar das Lajes, nos Açores, de superlativa importância estratégica no âmbito das relações de força da “Guerra Fria”.

Não obstante, e apesar de algumas operações de “cosmética” em torno de uma ilusória democratização do regime – como a promessa de permissão de uma candidatura independente (do General Norton de Matos) às eleições presidenciais de 1949 –  Portugal manteve-se, nesses anos, e durante as duas décadas e meia seguintes, um país fundamentalmente isolado da recuperação económica e social da Europa, perpetuando um regime opressor que proibia e perseguia quaisquer exercícios de liberdade política que pusessem em causa a legitimidade do regime do Estado Novo.

O único momento em que a censura aliviou, em parte, a vigilância sobre o pensamento e a liberdade de imprensa foi precisamente durante os meses que se seguiram ao anúncio oficial do fim da segunda guerra, a 8 de Maio de 1945. Até ao final desse ano, por exemplo, um jornal como “A Tarde”, publicado no Porto, pôde oferecer a Júlio Pomar, então estudante de Belas Artes na Escola Superior dessa cidade, a coordenação de um suplemento cultural, intitulado “Arte”, onde foi possível durante algum tempo, mais precisamente entre Junho e Outubro, publicar artigos e imagens de nítida inspiração marxista e revolucionária, sem que a censura fizesse a sua habitual triagem.

 

2. Pomar e Benton – O reconhecimento nas palavras

 

Nesse periódico, a viver então a experiência mais ou menos inesperada da liberdade de expressão, Portugal observa as mais entusiásticas referências visuais sobre os realismos revelados nas artes plásticas do continente americano, assumindo diversas menções quer aos muralistas mexicanos (já antes assunto de artigos em O Diabo – da autoria de Heliodoro Caldeira, em 1935,[1] e de Jorge Domingues, em 1938[2]), à pintura do brasileiro Cândido Portinari (identificada igualmente por esses mesmos periódicos), assim como ao realismo (regionalista e social) nos Estados Unidos da América. Nesse contexto, surge pela primeira vez reproduzida em Portugal uma obra do regionalista norte-americano Thomas Hart Benton (1889-1975), aparecendo na capa do nº5 (7-7-1945) do suplemento “Arte”, com o título de Indiferença, referente ao original Indifference, datado de 1942, constituindo uma das oito composições de Year of Peril – A series of war paintings (1941-1942), produzidas durante a Segunda Guerra Mundial, após o ataque japonês a Pearl Harbor.

Dois meses e meio mais tarde, no nº16 desse suplemento, Júlio Pomar publica “A propósito de Benton”,[3] artigo acompanhado da reprodução de The Sowers/O Semeador do artista americano (erradamente intitulado na edição portuense como O Senador). Aliás, The Sowers, que viria a ser reproduzida em litografia com sucesso e repercussão nos EUA, assumia a crítica aberta aos crimes de guerra, recorrendo a uma leitura realista da atualidade, mas com o tom quase caricatural de um expressionismo grotesco. Definindo-se aí como poderosa imagem antifascista, também inserida no conjunto de Year of Peril (“O ano do perigo”), este trabalho, datado de 1942, constituiu uma das grandes declarações de propaganda americana da época.

No primeiro texto publicado em Portugal sobre Thomas Hart Benton, Júlio Pomar sublinha a importância do sentido coletivo na obra do artista norte-americano quando afirma, ao citar Claude-Edmonde Magny acerca da obra literária de John Steinbeck: “‘O homem não é aqui senão o representante do grupo. Não há lugar na obra de Steinbeck para o indivíduo’. O mesmo se poderia dizer de Benton [acrescenta Pomar]. Lendo Steinbeck, vendo Benton, a quantos resultados idênticos chegaremos? Identidade de posições: “o homem não é aqui senão o representante do grupo”.[4] E seguindo ainda o raciocínio da escritora francesa Claude-Edmonde Magny, Pomar recorta uma ideia de ampla conclusão sobre as relações da arte com os tempos da guerra e o valor da sua interpretação nos EUA: “Aquele tão falado sentido prático dos Norte-americanos não permite desvios. A narração, concisa sempre: cada facto, cada pedaço pintado tem um significado, concorre imediatamente ao sentido total da obra: o sentido dos mil ‘combates duvidosos’ dia a dia travados entre grupos que se opõem. Aquilo que Hollywood não conta. A um dos seus quadros [com efeito, um vasto conjunto de painéis] chamou Benton A América de Hoje.[5]) Júlio Pomar acrescenta então uma análise sobre alguns aspetos gerais dessa obra: “Não há necessidade de símbolos. Vários episódios são postos em franco antagonismo – como, aliás, na vida comum. Da realidade ele retém apenas o essencial ao reconhecimento pelo espectador dos fenómenos vividos. Fenómenos a que o espectador, como parte de um grupo, está ligado.”[6] A ideia de uma estreita relação entre a realidade e a identidade de posições ou grupos em disputa no campo social é uma tarefa que Júlio Pomar esclarece como prioritária e plenamente reconhecível na prática artística de Thomas Hart Benton, concluindo: “Podemos dizer que hoje assistimos não só a uma temática massiva, mas a uma arte massiva.”[7] A urgência sobre a assunção de temas concretos, ligados à vida social contemporânea, insere-se na lógica de intervenção que Pomar exige nessa época ao artista comprometido, convertendo a arte num exercício para as massas, para uma recetividade mais contundente na sua capacidade de comunicação imediata. Por isso, o valor abstrato, isto é, comum, da representação dos grupos sociais, em detrimento da presença dos indivíduos e das suas especificidades. “Mesmo quando Benton se serve apenas [avança Pomar] duma ou outra figura isolada, dum ou de outro homem, esse homem não é um “certo” homem, é qualquer. Sobre aquilo que o diferencia vêm sobrepor-se os interesses, as características comuns. […] [e conclui] Os artistas identificaram-se com a massa: factos ocorrendo entre homens comuns, narrados em linguagem comum. Os artistas, de qualquer ramo, ouviram os seus instintos. Caminham como homens.”[8] Porém, a análise do jovem Júlio Pomar sobre estes trabalhos, aproximando-a, de um modo precipitado, do realismo social de um Jack Levine e de outros artistas da Costa Leste do Estados Unidos, levaram-no a ver no regionalismo prevalecente da pintura de Benton uma das referências centrais, em 1945, capazes de incentivar os artistas portugueses no sentido de uma arte socialmente comprometida. Muitos anos mais tarde, o crítico de arte Alexandre Pomar assumirá a incongruência de interpretação das teses de Júlio Pomar, ao escrever que neste prevalece então uma “[…] informação de origem americana. Por sinal, os dois últimos [Benton e Levine] sinalizavam vertentes distintas do Realismo norte-americano dos anos da Grande Depressão e do ‘New Deal’, a ‘American Scene’, uma de esquerda e outra conservadora – o Realismo de Jack Levine (modernista, alheio ao Realismo Socialista russo) e o Regionalismo (que também se pretendia moderno) –, mas o crítico da época não os distingue. Benton é reconhecidamente uma influência no Gadanheiro.”[9]

 

3. Pomar e Benton – leituras e aproximações formais

 

Na produção pictórica desse ano fulgurante que é 1945, o jovem Júlio Pomar, então com apenas 19 anos, revela na verdade algumas caraterísticas de composição que devemos aproximar da pintura de Thomas Hart Benton, à época um dos artistas mais reconhecidos no meio artístico americano e popular em todo o país, desde que apareceu na capa da revista Time, em 1934.

Em Portugal, além do breve texto a ele dedicado, publicado por Pomar, como já vimos, no suplemento cultural “Arte”, e das três reproduções também nesse periódico divulgadas ao longos desses meses de 1945, a obra de Thomas Hart Benton, permaneceu quase desconhecida ou pouco referenciada, apesar de um aspeto particular ganhar relevo nesse contexto. Desde a leitura de José-Augusto França sobre Gadanheiro, em 1974, que a influência de Benton paira sobre essa obra de um modo permanente, como repetição quase unânime, apesar da sua escassa análise de comparação estética. Contudo, esse reconhecimento comparatista tem sido, na verdade, largamente apontado pela história da arte portuguesa ao longo da segunda metade do século XX e início do de XXI, desde José-Augusto França e Rui Mário Gonçalves, a Pedro Lapa e Alexandre Pomar, entre outros.[10]

Como já referimos, essa linha de influência é identificada quase sempre em referência à exploração do espaço representado, mas na ausência de dados específicos que a clarifiquem em termos formais e comparativos. Ora, analisando em paralelo alguns dos trabalhos dos dois artistas, podemos afirmar que, num primeiro momento, essa ligação se justifica a partir das obras de Thomas Hart Benton que tematizam a observação do trabalho da ceifa nos campos de trigo do Missouri, como Cradling Wheat, 1938, July Hay, 1942, e Island Hay, 1945. Por razões diferentes, estas obras podem e devem ser comparadas às produzidas por Júlio Pomar no contexto da sua participação na “IX Missão Estética de Férias”, realizada em Évora, em 1945, nomeadamente as pinturas Gadanheiro, Descanso e Semeador que, nessa altura, apontavam já a uma prática artística onde o realismo de pendor social ambicionava uma consciência política e de classe, bem como um sentido de compromisso e mobilização transformadora entre produtor e recetor da obra de arte.

Ao exponenciar uma profunda sensibilidade visual no domínio talentoso da expressão plástica, Júlio Pomar articula nessas obras ainda embrionárias, mas já seguras do seu propósito, a peculiar afirmação de uma matriz figurativa que marcará por muitos anos a sua pintura (até, pelo menos, ao ciclo “Maio 68”), e onde o corpo e o movimento surgem quase sempre como aliados, inscritos enquanto modelos de comportamento pictórico que da presença humana e dos seus referentes simbólicos constrói o jogo combinatório encetado em cada gesto sobre a superfície da tela, manipulando assim a perceção dos seus limites. Será Pomar, justamente, a confirmar a longevidade dessa característica de composição quando, num olhar retrospetivo sobre Gadanheiro (1945), afirma: “penso que acontece aqui, talvez pela primeira vez, ou pelo menos de uma forma mais nítida, qualquer coisa que vai ser uma constante da minha pintura, e que é uma relação entre o que se passa dentro da tela e os limites que o quadro tem. Quero eu dizer que há aqui um movimento, uma tentativa de expansão, uma vontade de explosão, um choque com o limite, com os quatro bordos do quadro […] Ou seja, o quadro é aqui duplamente investido pelo corpo em movimento: como ato e como imagem. […] Era como se eu não pudesse prescindir dos limites a cuja destruição pareço votar-me. O rebentar dos limites aparece como urgência, necessidade primeira. Como se importasse mais o choque com o limite do que a própria destruição deste. Como se o que contasse, afinal, fosse o ímpeto do desejo e não o objeto deste.”[11] E contrariando a importância da fotografia no trabalho de fidelização artística do realismo, podemos aferir que, neste caso, a realidade identificada pelo obturador da máquina fotográfica será transformada pelo desejo de representação arrojada do jovem pintor, pois a fotografia que auxilia Pomar na composição de Gadanheiro, apesar de documentar o ceifeiro no movimento de corte do trigo, não apresenta o ângulo contra picado, nem a vitalidade dinâmica da figura pintada que, na superfície da tela, parece ameaçar com a gadanha o observador da pintura. Este dado prova como o artista pretendeu criar a partir desse movimento de trabalho agrícola uma iconicidade concreta, enquanto ambiciosa mensagem estética sobre a força social do trabalho nos campos do Alentejo. Aliás, o crítico de arte Alexandre Pomar, numa análise retrospetiva sobre o trabalho de Júlio Pomar (seu pai) escreve, a propósito, que “Gadanheiro é o mais conseguido de uma série de quatro óleos, quase todos de grande formato, portadores de uma ambição pictural e política desmesuradamente heroica para a experiência do pintor”, acrescentado ainda sobre a influência de Benton nesse trabalho: “A concretização do projeto revolucionário sustenta-se aí numa firme estrutura compositiva diagonal e numa construção de profundidades espaciais, na paisagem estudada como T. Benton, que ampliam ameaçadoramente o movimento da figura do camponês brandindo a foice como uma alavanca que mudaria o mundo.”[12] E aqui se assume a simbologia comunista no ímpeto imagético desse gadanheiro conquistador de vontades pretensamente em transformação. Na vertente figurativa, inteligível e concreta, assistimos a uma deliberada frontalidade formal e iconográfica, cuja distorcida presença vitalista em ação marca de modo indelével a história da arte portuguesa como “primeiro quadro-manifesto do neorrealismo.”[13]

No entusiasmo da época, e a propósito de Gadanheiro, Armando Nobre de Gusmão escreve em Outubro de 1945, no periódico Democracia do Sul, que a pintura de Júlio Pomar não representa “um indivíduo” mas uma ideia, constituindo-se assim como “uma arma de combate”, dirigida não tanto ao público em geral, mas sobretudo “àquele que representa”,[14] palavras que ecoam, afinal, as do próprio Júlio Pomar quando, semanas antes, analisa no jornal “A Tarde”, como vimos, o contributo da pintura de Thomas Hart Benton ao realismo desses anos.
Porém, as obras de Benton que mais facilmente podemos aproximar da produção pomariana desse ano remetiam, apesar de uma clara semelhança formal, para a assunção de um realismo regionalista mais ambíguo em termos sociais, preocupado sobretudo com a definição de uma imagem identitária nacional norte-americana (acompanhado nesse desígnio por John Steuart Curry, Grant Wood, mas também pelos pintores do grupo texano conhecido por “Dallas Nine”, como Alexandre Hogue, Jerry Bywaters, Thomas M. Stell, Harry P. Carnohan, Otis M. Dozier, Everett Spruce, John Douglas, William Lester e Perry Nichols; estes porém mais empenhados na observação da paisagem natural e do seu contributo ao processo de construção de uma identidade especificamente americana, enquanto experiência de conquista dos grandes espaços naturais, da sua ocupação humana ao desenvolvimento social baseado na produção agrícola), por comparação com o realismo social de denúncia crítica sobre a desumanidade urbana, explorado por artistas de Nova Iorque como Jack Levine ou Ben Shahn. Aliás, no suplemento cultural “Arte”, o jovem pintor e crítico Júlio Pomar sinalizava com igual entusiasmo nos seus textos os dois exemplos distintos (ambos influentes no neorrealismo português) desse realismo norte-americano característico das décadas de 1930 e 1940, os anos da “Grande Depressão” e do “New Deal”.

Recordemos que, começando na década de 1920 e continuando, em diversas etapas, ao longo da sua carreira, Benton viajou por quase todo o território dos Estados Unidos, esboçando os detalhes da mudança da vida quotidiana que encontrou nas estradas secundárias e nos locais mais isolados da América. Inspirado pelas suas primeiras viagens de campanha no Missouri – ao acompanhar o seu pai, que havia sido eleito para o Congresso, em 1897 – e impulsionado ainda pela convicção crescente de que o país estava a sacrificar a sua cultura e história particulares na ânsia de se tornar uma sociedade nova e moderna, Benton partiu para capturar a essência americana, observando a sua paisagem natural e humana. O sul dos Estados Unidos possuía um fascínio especial para Benton, e dos esquissos captados na região surgiram muitas de suas célebres imagens da América. Mas apesar da conotação da sua pintura com um sentido realista mais conservador, identificado pela história da arte como “regionalismo”, Thomas Hart Benton realiza até 1945 muitos trabalhos sobre o campesinato, onde podemos identificar uma leitura que não é definitivamente apaziguadora ou apenas lírica, ao pintar, por exemplo, os “cotton pickers” a laborarem arduamente nos campos de algodão, no Sul dos EUA. Estas obras (entre pinturas, desenhos e gravuras) representam sobretudo mulheres e homens afro-americanos – que eram quem nessa época maioritariamente se ocupava das plantações de algodão (ao contrário das plantações de trigo, onde homens brancos faziam também o trabalho de sementeira e colheita) – não deixando por isso de denunciar a sua repressão, de um modo indireto, subtil mas bastante presente, a partir de imagens sobre a inclemência das condições naturais do trabalho nos campos, nomeadamente o calor a céu aberto, simbolizando ainda a repressão de uma economia dominada pelos brancos, inclusive na construção da imagem da realidade americana que o regionalismo e a “American Scene” procuraram definir e fixar.[15] Por outro lado, entre 1941 e 1949, Benton dá especial relevo à dignificação figurativa dos afro-americanos, ao representá-los agora de modo individual, como soldados dos Estados Unidos da América na Segunda Guerra Mundial (na obra Negro Soldier, de 1942), ou como músicos de Jazz (Portrait of a Musician, obra de 1949). De outro modo diferenciados, e com maior destaque nas pinturas de contexto paisagístico sobre a apanha do tabaco ou sobre as colheitas de algodão, os afro-americanos surgem pela primeira vez na obra de Thomas Hart Benton como substância de afirmação identitária quase reivindicativa, por comparação com o paradigma do regionalismo mais estereotipado, realizado sob encomenda oficial, para murais em edifícios públicos, como os Indiana Murals – A Social History of Indiana (1933)[16] e os painéis de America Today (1930-31). Mesmo assim, as pinturas de Benton figurando afro-americanos individualizados estão longe, temos de reconhecer, do carácter declaradamente reivindicativo observado nas obras, desse mesmo período, de Jacob Lawrence e de John Thomas Biggers, eles próprios afro-americanos pintores que possuíam uma perspetiva de experiência e testemunho privilegiada sobre o sofrimento e a repressão racial dos afro-americanos no contexto da América do século XX.
Talvez possamos encontrar aqui uma outra espécie de paralelo entra arte de Benton e a fase neorrealista de Pomar, pois o afro-americano presente nas obras do pintor regionalista de modo isolado, finalmente individualizado (como em The Negro and the Alligator, de 1921; em Boy from Georgia – de 1921; em Romance – 1931-32 [que centraliza um casal de afro-americanos que passeia no seu tempo de lazer]; Aaron – 1941 [figurando um Ansião de humilde condição social]; na célebre pintura, neste texto já referida, Negro Soldier, de 1942 [esse soldado em combate]; ]; The Waterboy – de 1946 [um extenuado jovem trabalhador agrícola]; ou no também já citado Portrait of a Musician – de 1949 [retratando um músico de jazz a tocar o seu contrabaixo]), apesar de não apresentar a vitalidade confiante de Gadanheiro, acaba por ter a mesma esperança de protagonismo pictórico, iconográfico e, nessa medida, político e social, que a figura do gadanheiro possui nas pinturas de Pomar, resultantes da sua participação na “Missão Estética de Férias”, em Évora. Ou seja, uma esperança de reconhecimento do seu legado à economia e às sociedades dos seus países, bem como um sinal de consciencialização ou despertar político contra o imobilismo social com o qual os sistemas políticos tendem a condicionar as classes sociais mais desfavorecidas. Por exemplo, Tal como escreveu Jessie Benton (filha do pintor norte-americano do Missouri), “Em 1942, ‘Retrato de um soldado negro’, e não de um soldado branco, mostrava o sacrifício feito por todos os nossos homens na Segunda Guerra Mundial – chamando a atenção para o afro-americano como cidadão, ser humano, homem disposto a morrer pelo seu país, que mereceu e conquistou o respeito de todos os seus compatriotas.”[17]

Note-se ainda que, ao nível da intitulação das obras, Júlio Pomar centra-se, antes de mais, no homem e na sua função de trabalho (gadanheiro), enquanto Thomas Hart Benton privilegia nos seus títulos o nome da produção (“hay” – feno ou “cotton” – algodão). E aos corpos que trabalham, em sentido coletivo, no enquadramento da paisagem, como na pintura de Benton, Pomar prefere a dinâmica dos corpos que se debatem com os limites do quadro. Mesmo assim, apesar dessa diferença concreta, é possível observar nítidas semelhanças formais entre os dois artistas e a sua prática de representação figurativa, em particular o sublinhado das sombras volumétricas das camisas (em especial observável nas mangas arregaçadas) e na síntese formal do vestuário das figuras retratadas. Aproximações ainda reveladas nas soluções cromáticas. Por exemplo, na opção por sólidos contrastes de cores vibrantes, no tratamento da composição dos céus, pintados como apelo de uma força cósmica que impõe a sua presença face ao conjunto, na assunção também ela comum de uma atmosfera elíptica e sinuosa do conjunto. De igual modo, há nas obras de Pomar de 1945 essa tendência identificada em Benton de uma ousada inversão ou mesmo fusão de perspetivas (enleantes e nunca geométricas) plasmadas na representação das figuras na paisagem. Mas, por outro lado, enquanto nas obras de Benton deste período, debruçadas sobre a ruralidade do Sul dos Estados Unidos, há um misto de olhar social (atencioso, mas só hipoteticamente crítico) com um sentido pitoresco, de orgulho na vida do campo, em Pomar assistimos sobretudo a uma dessublimação da pintura enquanto aparato do belo, para nela descobrirmos uma espécie particular de reivindicação sobre as leituras sociais que o trabalho estético pode também comunicar.

Com ambiciosa honestidade, ambos, Benton e Pomar, queriam levar a sua arte à maioria das pessoas, incluindo aquelas que raramente ousavam contemplar uma pintura, por isso, foram autores de trabalhos murais (com histórias e resultados bem distintos, entre eles, em termos de temporalidade e de valorização das autoridades oficiais – Benton foi muitas vezes convidado a realizar murais públicos que ainda hoje podem ser apreciados, enquanto Pomar viu ocultadas, por razões de censura política, as suas únicas grandes pinturas murais, realizadas entre 1946 e 1947, nas paredes do Cinema Batalha, no Porto – de novo reveladas em finais de 2022, na sequência de um apurado trabalho de desocultação e restauro, após mais de setenta anos de invisibilidade, apenas recordadas a partir de documentos fotográficos, a preto e branco – e ainda de algumas das litografias mais divulgadas e presentes, durante décadas, no ambiente doméstico dos seus países – Benton com Island Hay (1945), e Pomar com A Refeição do Menino ou Almoço (1951).

Obstinados na demanda de uma dimensão popular para a sua arte, e cientes da importância, à época superlativa e urgente, dessa capacidade de ligar sentimentos e mensagens comuns através dela, os dois nunca deixaram de considerar, na definição das suas opções estéticas, um largo espectro de influências históricas. De modo concreto, Thomas Hart Benton foi muito influenciado pelo pintor veneziano Tintoretto, em particular na expressividade cromática da composição e na escala dialética das personagens, quando se fixou na pintura figurativa e narrativa, após as suas experiências cubistas, impressionistas ou simbolistas.[18] E, em notação mais experimental, também Júlio Pomar nunca deixou de dialogar com a tradição artística, as suas fontes de simbolismo político e social, ou com a rutura formal de Picasso e todo o expressionismo mais politizado ou crítico, engendrando um corpo de trabalho que anuncia, nesse período do imediato pós-guerra, comprometido com a esperança de transformação do seu país, uma forte aliança entre a singularidade estética e essa exigência ética de emancipação do humano que identificamos quase sempre nos desígnios do neorrealismo.

 

(versão original, in Atas do Congresso Hot Art, Cold War: a arte dos EUA e Portugal, 1945-1990, realizado na Fundação Calouste Gulbenkian, nos dias 27 e 28 de Abril de 2022, sob a organização do ARTIS/FLUL e a Durham University.)

 

(imagem: Thomas Hart Bentom, America Today, 1930-31, (pormenor), MET – Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque)

References
1 Heliodoro Caldeira, “A Pintura Mural Mexicana – Rivera e Siqueiros”, in O Diabo, 24-11-1935.
2 Jorge Domingues, “O Caminho da Pintura Mexicana”, in O Diabo, 30-1-1938.
3 Júlio Pomar, “A propósito de Benton”, suplemento “Arte”, nº 16, in A Tarde, 26-9-1945, p. 3. Cf. ainda Júlio Pomar, Notas sobre uma arte útil – parte escrita I (1942-1960), Documenta – Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, 2014, pp. 55-56.
4 Idem.
5 Segundo o MET (The Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque): “Oferecendo um panorama da vida americana ao longo da década de 1920, o America Today é um mural realizado para ocupar a totalidade das paredes de uma sala, composto por dez painéis de tela. Nascido no Estado do Missouri, Thomas Hart Benton pintou America Today (1930-31) para adornar uma sala de reuniões no terceiro andar da New School for Social Research, um centro de pensamento e educação progressistas em Greenwich Village, Nova Iorque. O mural foi encomendado em 1930 pelo diretor da New School, Alvin Johnson. Benton terminou muito cedo em 1931, quando a escola abriu um novo prédio projetado pelo arquiteto Joseph Urban. Oito painéis do conjunto América Today retratam a vida em diferentes regiões dos Estados Unidos: Sul, Centro-Oeste, Oeste e Nova Iorque. Na década de 1920, Benton viajou por essas zonas do país, criando um corpo de estudos da vida quotidiana, principalmente a lápis, no qual baseou muitos dos detalhes em America Today. Benton pintou Cotton Pickers, Georgia, a partir dos estudos que fez durante uma viagem pelo Arkansas, Mississippi, Alabama e Geórgia no verão e outono de 1926. O artista voltou a esse mesmo grupo de estudos na concepção e execução de Deep South, o primeiro painel na varredura geográfica e cronológica de America Today.” (cf. https://www.metmuseum.org/art/collection/search/499559
6 Júlio Pomar, op. cit.
7 Idem.
8 Idem. Refira-se ainda que, num dos derradeiros números de “Arte”, o nº 18, será ainda publicada uma última reprodução a preto e branco de uma obra pictórica de Thomas Hart Benton, desta vez Mercado em Nova Orleans”, n/d (Anos 1920-1930).
9 Alexandre Pomar, “Entre as Américas e Paris”, in AAVV, Nova Síntese – Neo-Realismo Português e Realismo no Mundo, (Coordenação: José Manuel Vasconcelos com António Mota Redol), Lisboa, Edições Colibri – APMNR, 2020, pp. 408 e 409.
10 Sem pretensões de exaustividade, podemos apontar a presença dessa leitura comparatista em José-Augusto França, A Arte em Portugal no Século XX (1911-1961), Lisboa, Bertrand Editora, 1974, ao referir, na página 367: “[…] Ernesto de Sousa achava ‘puro absurdo ou teimosa cretinice’ falar, então, de influências a propósito da sua [de Pomar] obra; no entanto, a lembrança de Benton (sobre o qual o próprio pintor escrevera com entusiasmo [no suplemento “Arte” do jornal A Tarde] aparecera na ‘Gadanha’ ou no ‘Semeador’ de 45 […]”; Rui Mário Gonçalves “[Em O Almoço do Trolha] […] As mangas e as calças são representadas com uma ondulação que colheu lições na pintura de Thomas Benton, como já tinha acontecido com o seu anterior quadro intitulado Gadanheiro (1945). As lições de Benton juntam-se às de Portinari em O Almoço do Trolha (“Os Anos 40 – O tempo do Estado Novo e o pós-guerra português”, in AAVV, Panorama da Arte Portuguesa no Século XX, (Coordenação Fernando Pernes), Porto, Fundação de Serralves – Campo das Letras, 2001, p. 147.); Pedro Lapa (“[Gadanheiro encontra] […] na pintura realista de Thomas Hart Benton, nos EUA do período da depressão, a sua mais directa relação. Esta manifesta-se no esquema cromático e sobretudo no movimento ondulante de toda a composição.” (in AAVV, A Arte Portuguesa do Século XX. 1910-1960, (Org. Pedro Lapa e Emília Tavares), Catálogo da Coleção (Vol. II), MNAC – Museu do Chiado / Leya, 2011, p. 286); Alexandre Pomar, “Além de um pequeno retrato de camponês, Gadanheiro é o mais conseguido de uma série de quatro óleos, quase todos de grande formato […] A concretização do projeto revolucionário sustenta-se aí numa firme estrutura compositiva diagonal e numa construção de profundidades espaciais, na paisagem estudada com T. Benton, que ampliam ameaçadoramente o movimento da figura do camponês brandindo a foice como uma alavanca que mudaria o mundo.” (in Alexandre Pomar, Júlio Pomar, Catálogo Raisonné – Pinturas, Ferros e “Assemblages’ – 1942-1968, vol. I, Paris, La Différence/Artemágica, 2004, p. 15); David Santos, “[…] Ainda que paradoxalmente impregnados de uma forte tonalidade lírica, os trabalhos iniciais de Júlio Pomar assumem diretamente na expressão formal da sua composição uma mensagem clara de cariz realista sem nunca abdicarem de uma espécie particular de singularidade, onde não são esquecidos outros valores formais de raiz moderna (sobretudo cubo-expressionistas), nitidamente presentes não só em Almoço do Trolha, como em Gadanheiro, ou em Os Serradores, renunciando a uma hipotética relação com a dimensão estatizada do ‘realismo socialista’, sublinhando ainda a influência de algumas reproduções que até nós chegavam do norte-americano Thomas Hart Benton e do trabalho sobre o campesinato brasileiro que Portinari apresentara entre nós, em 1940, aquando da Exposição do Mundo Português.” (in David Santos, Figuração e Abstração nas Coleções do Museu do Chiado, Castelo Branco, Museu de Francisco Tavares Proença Júnior – IPM, 2002, pp. 18-19), e “Com efeito, em Gadanheiro, obra parcialmente inspirada na pintura do americano Thomas Hart Benton, Júlio Pomar assume em consciência um trabalho, apoiado já no auxílio memorial da fotografia, entregue ao tema do campesinato […]” (in, AAVV, Júlio Pomar e a experiência neo-realista, Vila Franca de Xira, Museu do Neo-Realismo, 2007, p. 24.) e Luísa Duarte Santos “[…] E por factores inerentes à própria obra [“Gadanha”], desde o temático, de um conteúdo marcadamente rural, recolhido diretamente da observação do povo que trabalha, ao formal, inspirado espacialmente em Thomas Hart Benton […]. (in Luísa Duarte Santos, Realidade, Consciência e Compromisso Humanista na Arte, 1936-1961, Lisboa, Caleidoscópio, 2021, p. 188).
11 Júlio Pomar em entrevista a Alexandre Melo, “Formas que dão corpo ao espaço”, suplemento “Entender a pintura”, in Arte Ibérica, nº 14, 1998, p. 9.
12 Alexandre Pomar, op. cit., p. 15.
13 Idem, p. 13.
14 Armando Nobre de Gusmão, in Democracia do Sul, Évora, 9-10-1945, p. 1. (Informação colhida em Alexandre Pomar, op. cit., p. 50; e em Luísa Duarte Santos op. cit., p. 186.
15 Cf. Leo G. Mazow, Thomas Hart Benton and the American Sound, 2012.
16 Em 1932, o governador de Indiana, Harry G. Leslie, encarregou o coronel Richard Lieber, o primeiro diretor do Departamento de Conservação, de dirigir a Comissão de Indiana para a Century of Progress Exposition. Querendo afastar-se da típica feira estadual de máquinas de debulha e produtos agrícolas, Lieber propôs um mural de 250 pés mostrando a história do Estado do Indiana. O contrato para a execução desse mural foi entregue ao pintor, então ainda relativamente desconhecido, Thomas Hart Benton. O muralista pediu total liberdade artística no trabalho, incluindo a composição da narrativa geral e o tratamento realista dos factos sociais. O seu pedido foi atendido, mas os temas e o seu tratamento formal não deixam de confirmar uma comunicação de acordo com os estereótipos sociais dessa época e com uma narrativa nacional norte-americana.
17 Jessie Benton, “My father painted the true!”, Herald Times Online, 13-11-2017. Cf. https://eu.heraldtimesonline.com/story/opinion/2017/11/13/my-father-painted-the-truth/46801641/
18 Cf. Ken Burns, Thomas Hart Benton painted America, filme documentário, 1988.