I have seen more than I remember, and remember more than I have seen
Benjamin Disraeli
A bruma matinal de El Callao impedia apenas a consciência do ritmo a que batia o coração. Entre o cansaço da viagem e o entusiasmo da descoberta, o olhar reclamava agora as novidades da jornada há muito prometida. Desde os primeiros relances, Lima é uma cidade desconcertante e caótica, conquistada pelos caminhos empobrecidos na urgência de sobreviver, que ligam a precariedade e o movimento do porto ao exercício arenoso desses tijolos em livro que sustentam as pirâmides de Huaca Pucllana. Passamos sempre, aí e em todo o lado, por obras de remendo constante, entre barulhos, ruídos e silêncios. A pé, pelas bermas incautas, insistimos, quase exaustos, no espaço calcorreado. Os táxis, ou os automóveis mais ou menos instáveis que nos assaltam ao caminho com gritos e sons martelados nos tejadilhos informes, chamam-nos a entrar com aquele convite anárquico de que tudo é negociável: distâncias, chegadas ou outras maresias do asfalto. Nasce daí uma cacofonia urbana inesquecível, encantadora na sua esperança de negócio pela viagem sem destino a que a imensidão das ruas e das avenidas nos conduz quase de imediato, após aceitarmos o desafio de viajar com mais um ou dois desconhecidos que entram pouco depois, cem, duzentos metros mais à frente. Chama-se a isto: serviço de transportes espontâneo, numa América Latina marcada, toda ela, pela natureza da criatividade na produção económica, na relação entre as pessoas e, ainda, naquele sorriso que empresta à vida a beleza da sua experiência total. Apesar das contrariedades materiais e de outras inconstâncias muito valorizadas no «primeiro mundo», aqui luta-se com o intenso ardor da persistência, pela conquista desses «pesos», quase sempre desvalorizados, que farão o dia parecer mais ligeiro, ou menos pesado, consoante a condição de cada um dos sobreviventes nesta selva cosmopolita, extensa e precária. Há quem diga que esta é uma cidade feia. Por mim, registo e guardo a euforia dos seus encantos, irredutíveis às sentenças definitivas. Acredito, como Umberto Eco, que «a beleza é, de certa forma, aborrecida», enquanto «a fealdade é imprevisível e oferece um leque infinito de possibilidades. A beleza é finita. A fealdade é infinita, como Deus».