Pode um artista ser considerado neorrealista a partir de uma só obra? Não, seguramente. Mas poderá uma obra de um artista não-alinhado com o movimento ser classificada de neorrealista? Sim, pelo menos em parte. Apesar da aparente evidência do questionário e das suas lacónicas respostas, e mesmo sabendo que nada deve ser fixado ou descrito neste contraste aparentemente definitivo, verificamos que tem sido difícil à disciplina da história da arte assumir a leitura individual das obras no quadro deste exercício comparativo. Isto é, tendemos a raramente interpretar uma obra para lá do seu contexto e do percurso estético do seu autor, como se a identificação de uma assinatura inviabilizasse a leitura autónoma do seu aparato estético-formal, da sua vida própria. A dependência preconceituosa da filiação estética de uma determinada obra a uma assinatura autoral é ainda mais notória quando apenas perante a incapacidade de identificarmos uma autoria estável e segura, ou seja, quando não sabemos o nome do artista que a realizou, somos finalmente levados pela liberdade de interpretar o que, por si mesma, essa obra nos revela em termos puramente estéticos e artísticos, arriscando assim muito mais no que diz respeito às suas insuspeitas ligações, ausentes que estamos do cosmos inspirador do seu desconhecido autor.
Mergulhando diretamente na questão de fundo, poderíamos reduzir este texto à tentativa de responder a uma só questão: de que modo uma obra, em regime exclusivo, pode aproximar o percurso de um artista a um movimento cultural ao qual foi sempre exógeno e, em muitos aspetos, distante?
“Nunca fui um paisagista. Parti sempre da forma real, mas só me interessei de facto pela figura humana. Parece que apenas nela encontro a beleza e a tragédia ou as partes articuláveis de uma nova ordem, um dinamismo interno – a pintura antes de tudo.”[1] Esclarecida deste modo pelo próprio Luís Dourdil a natureza do seu envolvimento com a prática artística e pictórica, podemos desde já constatar que quem assim fala não é nem poderia ser um neorrealista, mesmo se não deixou de partilhar com a sua época e os movimentos culturais que a definiram uma visão humanista da expressão artística. Posto isto, e depois da separação de águas contida neste preâmbulo, iniciemos a observação concreta de uma obra rara no percurso de Dourdil e da própria arte portuguesa que, de um modo quase perentório e imediato, nos incita à classificação de neorrealista. O que nela se observa em termos temáticos (ações de trabalho, em especial a alimentação das caldeiras a carvão, na Central Tejo, então sob alçada da empresa “Companhias Reunidas de Gás e Eletricidade”), mas mais ainda o modo como são manifestados os sinais desse conteúdo, aproximam decisivamente a obra “Homens do Fogo” – uma pintura óleo sobre tela, de médio formato, 114×153 cm, assinada e datada de 1942 – do universo do “realismo social” que entre os anos 30 e 40 se afirmava em vários pontos da Europa e do continente americano, ainda que em Portugal tenha vindo a desenvolver o seu espaço de visibilidade e comentário apenas no imediato pós segunda guerra mundial, ou seja, a partir de meados de 1945.
É verdade que alguns críticos de arte assumiram e identificaram há já algumas décadas a filiação estética aqui ensaiada. Por exemplo, logo em 1984, Rocha de Sousa afirmava:
Esta obra de Dourdil propõe um discurso neo-realista, com algumas acentuações recolhidas indirectamente do expressionismo e da vontade social que os dois «movimentos», deste ou daquele modo, interpretam. O esforço e a grandeza do trabalho humano passam pela tela com um tom ideológico apologético: os gestos quotidianos dos trabalhadores cedem a uma encenação operática, aliás desenvolvida sobre uma «cortina cénica» de escala significativamente grandiosa. A fábrica não é o lugar onde se produz, é a catedral do esforço colectivo; e tudo o que se movimenta (re)toma a eterna pose da monumentalidade, do sacrifício sublimado em reflexo super humano.[2]
Porém, essa assunção estética só excecionalmente foi problematizada no enquadramento mais vasto da sua produção anterior ou posterior, e sobretudo nunca relevou o facto de o próprio artista ter recusado ao longo da sua vida essa mesma leitura neorrealista de “Homens do Fogo”. Ora, é precisamente neste ponto que interessa insistir, ampliando tanto quanto possível a análise desse contraste tão vivamente identificado entre o subtil aparato neorrealista da imagem e a sua inconsequente projeção no trabalho futuro do pintor. Se podemos concordar com Luísa Duarte Santos de que há algumas obras produzidas por Dourdil antes e depois de 1942 que revelam uma atenção especial aos “temas sociais”[3] (operários, vendedeiras, varinas, trabalho nas lotas), somos levados a considerar igualmente que em nenhum outro momento terá o artista traduzido de modo tão claro e seguro esse investimento estético-formal marcado pela centralidade do trabalho braçal e dos seus protagonistas profissionais. Por outro lado, se “Homens do Fogo” coloca Dourdil, aparentemente, na orbita do “realismo social”, isto é, do realismo de inspiração marxista, não é menos evidente que a sua figuração obedece igualmente, pelo menos em parte, a uma leitura clássica da sua apresentação pictórica, confirmada aliás pelos muitos estudos ou esboços sobre papel que antecederam a obra, e onde o desenho se desenvolve respeitando os preceitos formais de um olhar e registo naturalistas. Na verdade, a representação das três figuras masculinas que interpretam um trabalho exigente do ponto de vista físico é assumida fundamentalmente em consonância com valores plásticos de modulação harmónica, sublinhada pelo respeito a um claro-escuro que só por momentos se liberta dos equilíbrios naturalistas para realçar uma comunicação mais empenhada em termos sociais, isto é, capaz de articular ou assumir no espírito de um certo realismo, por exemplo, esse cromatismo mais agudo e expressivo. Esta dimensão mais clássica da representação pictórica será uma das razões, estamos em crer, pelas quais o próprio artista terá sempre recusado qualquer acento neorrealista a propósito desta obra, pois mesmo se no cômputo geral sobressai ainda, como defende Rocha de Sousa, uma “cortina cénica” do “esforço coletivo”, esta particular observação pictórica de Luís Dourdil, tangente, afinal, na sua intenção e resultados, ao exercício de uma leitura política sobre a função social ou de classe do labor operário, remete basicamente para uma dignificação do trabalho através da força intrínseca e do hieratismo atlético das figuras, (a sua frontalidade sugere inclusive, segundo ainda Rocha de Sousa, uma ambição pictórica mural ou “parietal”,[4] que esteve na origem, sublinhe-se, da realização desta pintura), e não tanto pela expressão do seu efetivo sofrimento profissional, social ou de classe. Por isso, apesar do peso da temática, interiorizamos aqui, sobretudo, o sentimento do belo (identificado, porém, com a “verdade” naturalista ou realista) em vez da deformação ou do grotesco (mais associados ao expressionismo, ou até a um certo realismo social); pressentimos igualmente a prevalência do equilíbrio da composição (por exemplo, na disposição das figuras e da sua dinâmica gestual) em vez da expressividade de certos aspetos potencialmente críticos em termos de simbologia ou leitura críptica mais politizada; confirmamos finalmente estar perante uma pintura, e nunca diante de uma imagem subjugada sobretudo a qualquer mensagem panfletária ou incómoda. Assim mesmo, na sua plural e até certo ponto contraditória caracterização, esta obra mantém uma assinalável e quase misteriosa aura neorrealista. Se afirmamos, no equilíbrio estético de “Homens do Fogo”, a sua deliberada contenção ou nível da expressividade política do tema do trabalho, não deixamos, contudo, de pressentir uma ligação incontornável, apesar de subtil, ao universo de comunicação do neorrealismo português, ainda que por hipotética e involuntária antecipação por parte do autor, pois em 1942 não há registo ainda de uma verdadeira consciência ou prática neorrealista no campo das artes visuais em Portugal.
Porém, se tendemos a defender o seu aparato geral mais caro ao naturalismo realista, poder-se-á questionar então por que motivo insistimos na sua leitura neorrealista. Ora, é precisamente pela sua ambígua, mas ao mesmo tempo presencial, sugestão neorrealista que mantemos apontada a análise e o contraste entre a aproximação e a distância a esses mesmos valores de caracterização. Neste sentido, podemos dizer que “Homens do Fogo” manifesta uma particular antecipação, apesar de não intencional, de alguns aspetos constituintes do neorrealismo. Em primeiro lugar, o inequívoco destaque dado ao tema do operariado fabril, incomum à época, entre nós; em segundo, a valorização da sua opção disciplinar (o facto de ser uma pintura a óleo) e da sua respeitável escala, orientada a um tema potencialmente incómodo – apesar da encomenda ter partido da empresa proprietária da fábrica, dessa forma assegurando uma matriz de equilíbrio ao nível da leitura social e política do tema. Neste particular, a pintura revela ainda um interesse suplementar, pois, mesmo perante o condicionalismo da encomenda, Dourdil consegue dignificar as figuras dos trabalhadores na fronteira ténue entre a aceitação (o que é diferente de resignação) da sua condição e a afirmação orgulhosa do seu contributo para o resultado da produção. Ou seja, apesar de não inscrito em qualquer expressão concreta de tom reivindicativo ou inspiração revolucionária, muito em voga na época entre as vanguardas artísticas, esta imagem, de médio formato, mas grande dignidade pictórica, parece guiar-nos a uma mensagem próxima da valorização do trabalho como vetor essencial ao êxito económico do aparelho produtivo. E é a declarada honestidade da imagética social e do seu momento estético que garante a maioridade desta obra única e singular no percurso de Luís Dourdil. Com efeito, há algo distinto nesta pintura, inclusive nunca observado na arte portuguesa até então, que remete para uma surpreendente leitura de inspiração social, na valorização sincera e definitiva dos trabalhadores fabris, elevados aqui, finalmente, a protagonistas com estatuto próprio, apesar de, aos olhos das classes dominantes e da sociedade em geral, continuarem nessa época fixados no plano de uma existência quase esquecida, relembrados apenas enquanto peças fundamentais da engrenagem, isto é, da grande máquina capitalista.
De outro modo, é curioso verificar nesta obra a tradução de uma fronteira interpretativa que a projeta desde logo na linha de charneira entre o naturalismo modernizado pelo seu exercício mais realista – ligado à objetivação do valor social da vida urbana e operária –, ainda por certas informações formais do início de novecentos, e a explosão anunciada pelo realismo social que já nessa altura firmava uma alternativa estética como paradigma de representação do real. Recordemos, a propósito, as palavras de Dourdil: “Parti sempre da forma real, mas só me interessei de facto pela figura humana”. Essa linha ou fronteira traduz-se, sem dúvida, no modo como o tema do trabalho é aqui apresentado. Isto é, se na sua dignificação maior (tornada evidente na apresentação dos corpos trabalhadores), ele não assume, todavia, uma verdadeira força de reivindicação ou transformação do seu lugar na malha social, mantém ainda assim, de uma forma algo paradoxal, um potencial latente que o liga, por outra via, implícita ou sub-reptícia, ao ideário de denúncia das condições desfavoráveis do operariado, planeado no futuro pelas artes plásticas do neorrealismo português. Foi porventura nesta via particular, mais subliminar, diríamos, mas igualmente expressiva, que alguns críticos e historiadores de arte basearam a sua leitura para concluírem, como Rocha de Sousa e Luísa Duarte Santos, sobre uma especial identificação neorrealista na obra “Homens do Fogo”.
Atentemos agora aos detalhes da composição. Três trabalhadores fogueiros preenchem o primeiro plano do quadro, acentuando uma estrutura visual que os converte desde logo em protagonistas. O homem que segura a pá, ao centro, parece estar num momento de transição entre ações ou processos de trabalho, ostentando por isso uma particular serenidade, conforme com o destaque que assume no plano geral da obra. Símbolo maior ou espécie de porta estandarte da sua condição, essa figura apresenta-se ainda como representante de todos os operários fabris, aí finalmente dignificados não apenas pela sua imponência figural, mas também pela sugestão fixada na postura de orgulho, consciente do valor da sua participação em todo o processo de produção. À esquerda e à direita da figura central, vemos ainda outras duas figuras, que se apresentam, por sua vez e contraste, em plena ação laboral, ao alimentar de carvão a grande central elétrica, desenhadas em diagonais projetadas ao exterior do quadro, e que conferem uma maior dinâmica ao conjunto, sublinhado desse modo a imponência física e simbólica do trabalhador que surge no centro da pintura. Ao fundo, os vapores e as caldeiras testemunham o poder energético do fogo, numa envolvente cenografia da ação e do valor do trabalho árduo, poderosa manifestação dos interstícios da fábrica, das suas operações, disciplina e atores. O artista projetou aí, de uma forma peculiar e inesperada na sua frontalidade imagética, a mais digna pintura da figura do operariado no nosso país, a fazer lembrar, em parte, “Les raboteurs de parquet” (1875) de Gustave Caillebotte, em especial no efeito de dignificação estética da ação laboral, numa das primeiras representações do proletariado urbano, neste caso, os restauradores de soalho; no mesmo sentido de sugestão, é possível referenciar a obra “Il Quarto Stato”, o célebre quadro realista de Giuseppe Pellizza da Volpedo, datado de 1901 e originalmente intitulado “Il cammino dei lavoratori”, que coloca o proletariado no centro da temática pictórica, elevando-o a protagonista ativo da história de transformação social e política prometida pelo novo século XX. Por fim, será ainda admissível lembrar aqui, a propósito da frontalidade manifestada pela figura central de “Homens do Fogo”, essa iconográfica pintura de Otto Griebel, sintomaticamente intitulada “A Internacional” (1930), e marcada pela centralidade avassaladora de uma marcha operária que parece avançar em direção ao observador. Distante, por certo, das intenções de Luís Dourdil uma tal interpretação do operariado, entendido aí sobretudo como força coletiva ou movimento político inexorável na sua vontade transformadora, podemos, porém, detetar em “Homens de Fogo” um resultado semelhante ao nível da afirmação, quase como primeira apresentação à pintura portuguesa (e recorde-se que esta obra foi exposta pela primeira vez, a 29 de setembro de 1942, na Sociedade Nacional de Belas Artes), de uma classe trabalhadora até aí arredada da perpetuação induzida pela comunicação pictórica, isto é, da grande arte. Por outro lado, a conciliação dos valores da representação naturalista e da sua particular transformação num realismo de grande efeito pictórico, que não esquece inclusive a lição clássica da harmonia e da proporção da figura humana, aproxima esta obra de algumas imagens de maior impacte do pintor soviético Alexander Deineka e do seu particular realismo social, como na obra “Donbas”, de 1947, onde encontramos um hieratismo e dignidade muito semelhantes, embora posteriores à obra de Dourdil, com destaque para as figuras dessas mulheres trabalhadoras que na estação carregam de carvão os comboios de carga. Mesmo que estas associações só agora, passadas várias décadas, pareçam oportunas no seu sentido comparado, elas expressam indubitavelmente uma atmosfera similar, uma espécie de zeitgeist estético comum a essa época e representam um exercício de leitura, na aproximação estilística e temática, que não deve ser descurado. Antes pelo contrário, esse exercício de comparação deve ser não só atendido como aprofundado, pois permite identificar analogias entre produções do mesmo período, desenhando sobre elas novos sentidos e significados, apesar, neste último caso, da sua marcante distância geográfica, do seu desconhecimento mútuo e sobretudo do oposto espaldar político e social da sua motivação e encomenda.
A este propósito, e para lá da leitura que hoje podemos fazer da sua comunicação estética e temática, há um aspeto particular em “Homens do Fogo” que deverá ainda ser considerado, pois remete para uma outra função social da obra, estando inclusive na origem da sua própria realização. Trata-se do efeito de decoração socialmente apaziguador encomendado pela “Companhia de Gás” para servir o propósito propagandístico da marca no espaço simultaneamente público e privado dos seus escritórios, na Rua do Crucifixo. Essa era, afinal, uma estratégia de convocação e encomenda artística semelhante a muitos outros exemplos nessa época observados em Portugal e um pouco por todo o mundo ocidental, resultado de orientações diretas dos governos (como no exemplo das Exposições Universais, das Exposições Internacionais de Artes Decorativas ou, entre nós, da grande Exposição do Mundo Português, realizada em 1940, na zona ribeirinha de Belém) ou de encomendas de empresas públicas e privadas aos artistas para povoarem de obras de arte (integradas na paisagem urbana, nos edifícios e na arquitetura das cidades) os espaços sociais ou políticos por si representados. Como lembrava Adriano Gusmão na nota crítica que publicou no Diário Popular de 1943 sobre essa pintura de Dourdil, enquadrando ao mesmo tempo a necessidade, à época, da arte no espaço público e social:
Em que proporção convivemos com a pintura e a escultura? Exposições e museus são os meios habituais de contacto com a obra de arte – meios que todos nós sabemos serem incompletos. A arte deve circular entre os homens, não em lugares reservados a ela, fora das suas habitações ou dos locais que frequentam ou onde se ocupam diariamente. Avalia-se, sem dificuldade, quando uma obra pintada ou esculpida se torna eloquente ao enriquecer um ambiente próprio que justifique o seu destino; será em casa de cada um – hoje, isso é ainda privilégio de poucos – nos estabelecimentos particulares, fábricas e oficinas, nos edifícios públicos, repartições e escolas, que de toda a sorte se constroem, mas raramente são decorados, tanto no exterior como no interior. Se hoje se reclama o maior esforço do Estado nesse sentido – haja o exemplo do governo dos Estados Unidos mandado, em 1941, decorar com pinturas e esculturas 45.000 estações dos correios – não podemos eximir também desse dever a iniciativa privada, já que ela se manifesta, por vezes, noutros sectores consciente de desempenhar uma função social.[5]
E nesta demanda cara à sua época, Gusmão acrescenta a interpretação que faltava para lermos o posicionamento da encomenda dos grandes painéis murais, que esteve na origem da pintura “Homens do Fogo”: “A grande arte não é um luxo; o progressivo aumento das necessidades culturais dos povos tornam agora obrigatória a sua presença, onde antigamente se supunha dispensável. Até sob o ponto de vista psicológico de rendimento de trabalho o índice será maior no local, onde se exerça a profissão, que seja submetido aos claros e salutares princípios da arte.”[6] Por aqui se entende o espírito da intervenção que a “Companhia de Gás” encomendou a Luís Dourdil, apesar da insinuante margem de interpretação neorrealista nos parecer hoje possível de considerar em “Homens do Fogo”, um dos trabalhos realizados no âmbito desse grande painel previsto e concretizado para os escritórios da companhia, infelizmente hoje já desaparecido. Este episódio português lembra, apesar da diferença de escala artística e perturbação política da obra concebida e realizada, os murais que Diego Rivera realizou em Nova Iorque, em 1933, para o Edifício Rockefeller, onde a sua deliberada leitura de inspiração marxista detonou um conflito com o magnata encomendador, que culminou na censura da sua destruição.[7]
Na verdade, tal como defendeu nessa altura Adriano Gusmão, Dourdil tinha realizado aí, na escala possível da realidade portuguesa:
Uma ampla e original decoração, extensa de vinte metros, para a entrada dos escritórios […] entrada essa que está também disposta para atender o público. É, portanto, local de trabalho e, ao mesmo tempo, frequentado por muitas pessoas. Ainda que a iniciativa tenha fins de propaganda por parte da empresa, não deixa de merecer louvor ter esta encomendado essa decoração, tanto mais que o artista Dourdil, encarregado desse trabalho, se houve de maneira a ultrapassar meros objectivos publicitários, fazendo Arte. Dourdil […] soube construir, quase intuitivamente, uma larga e harmoniosa composição com motivos arquitecturais das indústrias exploradas pela referida empresa, figurando certas operações, como o trabalho de fogueiros e o desenrolamento de bobinas de cabos eléctricos, que embelezam, com respectiva representação humana, esse desmedido friso […] a figura humana foi tratada por Dourdil com másculo poder plástico; os seus operários são construídos num traço de vigorosa síntese, sobriamente manchada de cor, guardando largos espaços luminosos.[8]
Sem nunca abordar a tendência do “realismo social”, por desconhecimento ou cuidado político para com a leitura que dele fazia o regime do Estado Novo, Adriano Gusmão, identifica todavia, de um modo claro e objetivo, que “o realismo dos trabalhadores” presente na intervenção de Dourdil “lembra por vezes o de Meunier ou o de Millet, realismo heroico, com aquele carácter que imprime uma personalidade, sem subserviências para com a realidade”. Este aspeto particular que Gusmão confere à presença do realismo na proposta de Dourdil, isto é, um realismo “heroico”, mas pacífico, conduz-nos a uma outra reflexão que identifica e pontua o modo como a expressão artística que tomava nessa época como central a temática dos trabalhadores rurais ou fabris nem sempre era lida com a mesma tónica social, política e ideológica, conforme o posicionamento e a mundividência dos críticos, ou dos recetores da obra de arte em geral. Se Gusmão lê o realismo com o filtro de uma heroicidade integrada na ordem social vigente, outros, como Courbet, Daumier, o próprio Millet ou o critico de arte Theophile Thoré, viam nessa deriva do naturalismo um desertor da pacificação significacional – antes ligada à objetivação científica do real, e agora apostada na leitura política e social desse mesmo universo de referência – como nova perturbação a partir da comunicação pictórica. Com efeito, o realismo esteve desde o início, pelo menos em França, nas origens de uma arte politizada e inspirada de modo mais ou menos direto no socialismo utópico e na leitura anarquista de transformação da sociedade, basta para tanto lembrar a amizade e a influência decisiva do sociólogo Pierre-Joseph Proudhon junto do pintor Gustave Courbet. A historiadora de arte norte-americana, Linda Nochlin, uma das maiores especialistas na análise do realismo artístico, sublinhara, em 1971, num dos mais célebres estudos sobre o movimento:
Os realistas valorizavam positivamente a representação do baixo, do humilde e do comum, dos setores socialmente mais desfavorecidos ou marginais, tanto como dos mais prósperos entre esses. Buscavam inspiração no operário, no camponês, na lavadeira, na prostituta, no café ou no baile de classe média e operária, o âmbito prosaico do tratamento do algodão ou a modista, nos seus próprios foyers e jardins ou dos seus amigos, contemplando-os franca e candidamente em toda a sua miséria, familiaridade ou vulgaridade. Courbet afirmou que a meta do realista consistia em traduzir pela arte os costumes, as ideias, a aparência da sua própria época; e que deste modo, a dimensão social adquiria importância automaticamente.[9]
Ou seja, se houve tendência estética que conduziu o observador do século XIX e do início de novecentos a um sentido crítico e, em alguns aspetos, potencialmente revolucionário (não tanto pela afirmação direta de uma mensagem obviamente política, mas pela maneira implícita como deixava no ar essa ideia), foi o realismo, esse mesmo facilmente identificado tanto pelos críticos que na época própria acompanharam a recetividade da intervenção de Dourdil, como por aqueles que nas últimas décadas da nossa contemporaneidade têm dedicado alguma atenção ao seu trabalho. Posto isto, podemos aferir que é sempre difícil interpretar a linha de fronteira registada pelo realismo pictórico quando este assume o tema do operariado, tendendo a ser lido quase sempre no exercício do seu antagonismo, isto é, como valor de comunicação integradora ou, por oposição, como visão perturbadora dessa mesma ordem social. Também por isso, “Homens do Fogo” representa uma obra extraordinária no modo como põe em evidência esta mesma divisão interpretativa. Estamos certos, porém, de que hoje haverá uma tendência maior para ver nela uma das mais extraordinárias, ainda que inesperada e não intencional, antecipações do jargão formal do movimento que ficou conhecido na história da arte em Portugal por neorrealismo.
Mas se tudo parece indicar que, mesmo nos anos 40, os caminhos de Luís Dourdil pelo neorrealismo resultaram de uma aproximação não programada, não será menos verdade que não deixou de refletir esse espirito do tempo mais aberto à leitura iconográfica do trabalho, na observação dos seus homens e das suas mulheres protagonistas, numa atmosfera de atenção aos temas sociais mais desfavorecidos, e que terá tido em “Homens do Fogo” (1942) e em “Varinas” (1948) os seus exemplos maiores, só em parte, porém, ligados a essa estética de reivindicação ou denúncia social. De qualquer modo, Dourdil evoluiria desde essa origem, diríamos, proto-neorrealista, que nos interessou aqui desenvolver, para uma prática pictórica de maior e progressiva indiferenciação entre o primeiro plano e o plano de fundo da imagem, e sobretudo entre o valor do figurativo e uma abstração nunca assumida na sua plenitude ou desvinculação com o real.
Sobre esta mesma evolução estética, observada, por exemplo, no imenso painel mural de 48 metros quadrados, pintado por Luís Dourdil para o Café Império, em 1955, Rocha de Sousa sintetizou: “Em certo sentido, no cume de uma obra a fazer-se, esta pintura já perdida pela incúria dos homens e dos seus interesses espúrios, resumia o percurso em curva longa e segura do trabalho a óleo que Dourdil trouxe de um neo-realismo já desfocado para a orla de uma abstração incompleta, lírica, estilisticamente superior.”[10] Esclareça-se todavia dois espetos desta leitura. Por um lado, a “incúria dos homens” deu lugar à esperança e à ação concertada que veio a concretizar em 2014 o processo de restauro dessa obra maior. Por outro lado, o neorrealismo “já desfocado”, lido então por Rocha de Sousa, não diz respeito a “Homens do Fogo”, mas à produção realizada entre meados dos anos 40 e o início da década de 60, onde Dourdil tende a abandonar o contorno das figuras representadas, identificado já em “Varinas” (1948) e acentuado em todas essas mulheres de Alfama, vendedeiras, varinas e peixeiras na lota ou no cais, que, a óleo ou a pastel, assumem progressivamente uma expressão esquematizada e abstratizante. Esta aventura de aproximação ao sentido abstrato da pintura ficará marcada tanto pela diluição ou “desfocagem” da linha, como pela exploração gradativa de manchas de cor e velaturas (entre castanhos, beges, ou tons terra) que desenvolvem a fuga ao referente para afirmar, cada vez mais, o esplendor de uma investigação pictórica que se conforta na “serena envolvência do corpo”. Entre a atmosfera neorrealista dos anos 40 e o exercício poético das formas e das cores das décadas seguintes, o pintor realizou um caminho de depuração e ascetismo, a confiante tradução de uma sensibilidade visual que encontrou a sua singularidade nos meandros da prática disciplinar, na descoberta e no reenvio dos problemas e das soluções inerentes à pintura e ao desenho. Do labor operário observado em 1942 para a pintura “Homens do Fogo” ao trabalho meticuloso e continuado no atelier, Luís Dourdil consolidou um trajeto ele próprio laborioso e persistente, feito de experiências estéticas e leituras subtis desse real transformado pelo campo da ação, na progressiva afirmação de uma “geometria sensível”,[11] como lhe chamou Fernando Azevedo, na articulação final de uma originalidade capaz de manter com o real, e com uma ideia particular de “realismo”, essa medida certa veiculada pelo diálogo do sujeito com a obra. Na sua honesta mestria pessoal, Dourdil sempre nos confessou: “Preciso de parar constantemente de pintar para poder proporcionar e receber as sugestões que o quadro me vai dando à medida que nele avanço.”[12]
Uma das imagens mais perenes sobre o período final da pintura de Luís Dourdil fixou-a Rui Mário Gonçalves com esta observação plena: “Nos seus quadros ricos de transparência, sente-se uma passagem perfeita dos primeiros aos últimos planos, e atinge-se o acordo entre a figura humana e a envolvência atmosférica numa harmonia tão íntima, num equilíbrio tão justo, que deixa de ser necessário o contorno que individualiza a figura, para que seja amortecido o rigor do contacto entre o sólido e o fluido.”[13] Inspirados nestas mesmas palavras, avançamos uma leitura complementar sobre a essência ou a constância de assinatura no trabalho de Dourdil. Cremos que na generosidade do exercício dourdiliano, na expressão genuína do seu envolvimento estético e percetivo, sentimos a elegância do gesto e o despojamento rigoroso do desenho enquanto composição abstrato-figurativa que se insinua no registo do corpo humano. Corpo esse que, entre meados dos anos 70 e o final da década de 80, será o artificio ou o pretexto que promove a subtileza do desenho, envolvendo-o na lenta rarefação desses corpos jovens, abandonados ao sono e à evasão. Espécie de enleio profundo e magnético, traduzido nesse jogo subtil de pernas entrelaçadas ou braços descaídos como marcas da desistência (por vezes a lembrar “Marat” de Jacques Louis David), observa-se o corpo como matéria estética ou desenlace inevitável na lânguida tarde abandonada à alucinação e ao inesperado. Transparentes na suavidade cromática desses desenhos ou pinturas sempre inconclusas, os corpos que aí estruturam o plano da imagem prometem apenas uma especial evasão do espírito e da matéria. Estes são desenhos fluídos e etéreos, cantatas do jovem corpo macerado já pela memória de um futuro que todos sabem eterno ou perpétuo, como o retorno do semblante inaudito no sofrimento da luz. São a expressão maior dessas tardes de risco, linhas livres e ébrias como a liberdade funesta da sombra. Como um décor derisório, mas invasivo, o pintor resgata do real a linha da vida, efémera e estonteante como a juventude em marcha rumo ao desaire e à morte. Mas a cor, do azul absoluto ao verde da tênue esperança da ressurreição dos corpos, mais do que das almas, mantém preso o olhar da descoberta na ideia de que o tempo, afinal, pode ser revivido como quem experimenta a alegria da eternidade.
Na promessa da célebre máxima de Paul Klee, “a arte não representa o visível, torna visível”, a obra de Luís Dourdil, produzida entre o real observado e a dúctil antropometria do corpo humano (masculino ou feminino), na sua polissémica expressão estética, isto é, do poético ao social, do moderno ao mais clássico, ou do abstrato ao figurativo, remete para a compreensão sensível e sistemática desse processo mágico que o desenho e a pintura desenvolvem na relação particularíssima que mantêm com o real. Por isso, o “realismo” em Dourdil não podia nunca prender-se à inspiração ideológica da transformação social, perscrutando sobretudo no espaço da representação pictórica um modo único e pessoal de desenvolvimento estilístico. Se os caminhos do neorrealismo foram apenas sugeridos pelo artista como espécie particular de antecipação de alguns dos seus efeitos estéticos ou de comunicação, já o “realismo” que sempre o acompanhou, tornando “visível” o que se supunha apenas representável, traduziu-se maioritariamente numa miríade de dialéticas, não políticas, mas pictóricas, de transformação fenomenológica e percetiva sobre a representação da figura humana, jogando de um modo invariavelmente delicado entre os valores de uma figuração esquematizada pela ampla influência do pós-cubismo e do abstracionismo protegido ou fixado pela memória desse corpo compreendido sempre, afinal, como matriz do amor e do desejo de humanidade.
[versão original: AAVV, Nova Síntese – textos e contextos do neo-realismo, nº 10, Lisboa, Edições Colibri, 2015]
1 | ↑ | Luís Dourdil, in catálogo da exposição Luís Dourdil – exposição de pintura e desenho, Lisboa, Palácio Galveias – CML, 2001 |
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2 | ↑ | Rocha de Sousa, Dourdil, Lisboa, IN-CM, 1984, pp. 29 e 30. |
3 | ↑ | “[…] Os primeiros trabalhos artísticos de Luís Dourdil datam de meados dos anos trinta, e desde logo se lhe observa uma particular atenção à temática social, consonante com as questões estético-artísticas que fazem dessa década uma das mais fervilhantes em termos de debates e polémicas, constituindo solo fértil das mudanças paradigmáticas que ocorreriam nos anos sequentes. Sem dúvida, Luís Dourdil é um pintor moderno, mas mais, é um artista do seu tempo, consciente das transformações estéticas, das vanguardas artísticas desses anos de convulsões sociais e políticas, a nível internacional e nacional. Desde as obras que leva à Exposição Momento, em 1935, [no Grémio Alentejano, atual Casa do Alentejo, em Lisboa] ensejo significativo por uma outra arte moderna e em contraponto com a I Exposição de Arte Moderna, do SPN, apresentando ‘Miseráveis’ e ‘Mulheres do Alentejo’, como quem “tra[z] nos olhos a estrela da manhã da sua juventude”, ao desenho político-satírico publicado no semanário cultural oposicionista O Diabo, à temática social do trabalho, com ‘Homens do fogo’ (c. 1942), obra ímpar no seu tempo e para o panorama artístico português, numa exaltação da força humana numa grande produção fabril, ao desenho ‘Meditação’ ilustrando o frontispício de um censurado ‘Grito de guerra’, o artista interpreta e revela artisticamente uma compreensão e uma concepção humanista do mundo e da sociedade. Com esta intenção humana subjacente, Dourdil atende à realidade social, transfigurando-a expressivamente, sobretudo quanto às funções sociais dos homens, nomeadamente a do trabalho – ele próprio um ‘operário’ da arte –, reflectida também na longa ‘série’ das Varinas, ou mesmo nos murais que concebe para o Laboratório Sanitas, numa constante que percorre grande parte da primeira fase da sua obra.” Cf. Luísa Duarte Santos, “A realidade social, um filtro na obra de Luís Dourdil”, www.luisdourdil.blogspot.pt |
4 | ↑ | Rocha de Sousa, Ibidem. O crítico salienta em “Homens de Fogo” uma apetência para a comunicação frontal e direta das personagens como matriz de um sentido fecundo na obra futura de Dourdil, isto é, a pintura parietal. A própria pintura “Homens do Fogo” representou sobretudo uma urgência de concretização, realizada no âmbito do grande painel/mural dos escritórios da “Companhia de Gás” (1942), pouco depois da inauguração desse painel constituído por, como nos informa Rocha de Sousa, “[…] um desenho a carvão, sobre placas engradadas de contraplacado, que ocupava cerca de trinta metros quadrados no vestíbulo” desses escritórios. Estratégia e destino de ação confirmados por Dourdil no mural do Hall do Laboratório Sanitas (1945), hoje presente nas paredes do Museu da Farmácia, em Lisboa; no esgrafito do Foyer do Cinema Império (1953); ainda na grande pintura mural, executada a têmpera de ovo, para o Café Império (1955); ou no Restaurante Panorâmico do Parque de Monsanto (1967), hoje em ruínas. |
5 | ↑ | Adriano Gusmão, “A decoração de Dourdil na Companhia de Gás”, in Diário Popular, 7-4-1943. |
6 | ↑ | Ibidem. |
7 | ↑ | O mural foi concluído em 22 de maio de 1933 e foi imediatamente coberto por uma lona, pois Rivera resolveu desenhar a figura de Lenine no mural “O Homem na Encruzilhada dos Caminhos ou o Homem Controlador do Universo”. Oito meses mais tarde, no início de 1934, Nelson Rockefeller ordenou aos seus trabalhadores a destruição do mural, uma ação que foi descrita como “vandalismo cultural” pelo artista mexicano. Esse mesmo tema viria a ser reaproveitado por Rivera, ainda em 1934, no mural/painel do 3º andar do Palacio de Bellas Artes da Cidade do México. |
8 | ↑ | Ibidem. |
9 | ↑ | Linda Nochlin, Realism, (1971), (trad. do espanhol por José Antonio Suarez), Madrid, Alianza Editorial, 1991, p. 29. |
10 | ↑ | Rocha de Sousa, “Dourdil: imagem poética”, in catálogo da exposição Pintura Portuguesa do Séc. XX, Coimbra, Museu da Cidade – Sala da Cidade, 20 set. 2001 – 27 jan. 2002. |
11 | ↑ | Fernando Azevedo, “Luís Dourdil ou a Geometria Sensível”, in catálogo da exposição Luís Dourdil – exposição de pintura e desenho, Lisboa, Palácio Galveias – CML, 2001, pp. 8-10. |
12 | ↑ | Luís Dourdil, Ibidem. |
13 | ↑ | Rui Mário Gonçalves, “Nota sobre Luís Dourdil”, in O Fundão, 9-12-1962. |