O que tento fazer é contar pequenas histórias e estas histórias colocam questões. Porém, eu não falo com palavras, mas com imagens; não há respostas, antes perguntas que provocam outras perguntas.
Christian Boltanski
No âmbito da Monumenta 2010, e explorando a monumentalidade oitocentista do Grand Palais, em Paris, o francês Christian Boltanski apresentou Personnes (traduzível ao mesmo tempo por «pessoas» e «zés-ninguém»), uma ampla instalação composta por dois dispositivos de acumulação de roupas usadas. O primeiro regularizava 69 retângulos, de 3 por 5 metros, sobre os quais se encontravam diversas peças de vestuário (casacos, sobretudos, blusões, roupas de criança e bebé), todos com a abertura virada para o chão. Cada retângulo era iluminado por uma luz fria, em néon, e o visitante podia caminhar por entre este campo de roupas ao som de 69 perturbadores batimentos cardíacos que ecoavam através dos altifalantes colocados nas extremidades dos cabos elétricos que iluminavam cada retângulo de vestuário. O segundo dispositivo mostrava um gigantesco amontoado de roupas, que remetia desde logo para as imagens dos campos de extermínio e do Holocausto ou, por contraste consumista, para as imagens das lixeiras contemporâneas. A «montanha» de roupas sofria aí, contudo, a intervenção mecanizada de um gesto dramático, a repetição sincopada de uma grua, equipada com uma «mão» mecânica, que descia ao cume desse aglomerado para agarrar várias peças de roupa, fazendo-as cair de novo, após uma pausa. Apesar do efeito dramatizado pela monumentalização dessas toneladas de roupa desalinhada, o projeto artístico de Boltanski parece hoje encurralado ou preso, paradoxalmente, ao eco do seu próprio passado, espécie de caricatura do exercício de rememoração que desde sempre promoveu.
Mas se a evocação da morte (ou da vida), que percebemos presente nessas peças anónimas de vestuário, se converteu, ao longo do tempo, num exercício cada vez mais distanciado da gravidade subtil das primeiras obras, podemos afirmar todavia que, desde o final dos anos 80 e durante toda a década de 90, o uso de roupas usadas para ocupar diversos espaços de exibição pontuou em Boltanski uma reflexão importante acerca da acumulação, do significado de arquivo, das ideias de despojo, abandono, memória e representação. Já em 1996, num ensaio intitulado Teatro da Metamorfose, José Jiménez afirmava com acerto, a propósito do trabalho de Christian Boltanski: «Roupa velha. Usada. Os vestidos […] conservam um rasto de vida, ainda que quem os usou já não exista. E assim, essa segunda pele do ser humano é um emblema metonímico de uma presença ausente. Um signo da metamorfose. Do trânsito entre a vida e a morte».[1] Com efeito, a obra de Christian Boltanski colocava-nos nessa altura perante uma incomodidade insinuante ao lidar com metamorfoses sobrepostas, imagens fugazes da vida outrora experienciada mas já desaparecida. Desse modo, reafirmava-se um jogo significacional explorado e mantido entre os rituais da morte e do renascimento a partir de reinterpretações da identidade e do percurso de vida individual, perante momentos históricos de grande impacto civilizacional.
Nesse sentido, o artista procurava muitas vezes, sobretudo nos anos 90, espaços de exposição e experiência alternativos ao circuito artístico e museológico, como igrejas ou outros lugares de grande força evocativa e espiritual. Não esqueçamos que o pano de fundo da sua ação criativa sempre foi, na verdade, a evocação da morte anónima por efeito de trágicos acontecimentos que ensombram a nossa história recente, como o Holocausto. Ao confrontar-nos com a representação metonímica da morte, muitas vezes recorrendo a imagens fotográficas dos rostos daqueles que já partiram, Boltanski acentuava a fragilidade específica da memória e a expansão coletiva do esquecimento. Os seus «altares», ou «monumentos» da memória, remetem-nos ainda hoje para uma espécie de debate iconográfico com o passado da humanidade. «São fotos “de identidade” des-identificadas, retiradas dos meios de comunicação e desligadas dos acontecimentos que as converteram em notícia. Fotografias ampliadas, em que a imagem [ajudada muitas vezes, diríamos nós, pela luz ténue das velas usadas nas suas instalações, ou a sua simulação por pequenas lâmpadas que iluminam diretamente o rosto ampliado dos retratados] adquire uma distorção fantasmal, aurática, e que atuam como uma potente metáfora do efeito do tempo sobre o nosso olhar e a nossa memória», conclui Jiménez.[2]
O trabalho artístico sobre a memória histórica apresenta quase sempre uma complexa teia de significados entre sentimentos e reflexões, com o objetivo mais ou menos assumido de promover uma mais profunda consciencialização individual que, neste caso particular, mexe com as convicções mais estabilizadas ou com os ritmos de rememoração e esquecimento de cada observador. Na realidade, a elevação da memória sobre o Holocausto a temática central de um projeto artístico como o que Christian Boltanski vem realizando desde os anos 70, coloca desde logo uma série de questões sobre a natureza da obra de arte na sua relação com a mensagem e a leitura política de um dos momentos mais difíceis da história ocidental. Retomemos o eco de Theodor Adorno: «depois de Auschwitz, não mais será possível fazer poesia». Mas, apesar do peso desse luto, há sempre, ao mesmo tempo, uma espécie de inevitabilidade no regresso a uma poética da ausência e da morte, mesmo se ela resulta paradoxalmente da ligação à expressão máxima da desumanidade no século XX, a morte massificada por preconceito racial, perpetrada sobretudo contra o povo Judeu. Recordemos, neste contexto, a ascendência judia de Christian Boltanski. Elemento determinante, necessariamente, em todo o processo de evocação de uma temática com esta densidade trágica. Com Les Archives (Os arquivos) (1965-88), um trabalho amplo e obsessivo de rigor memorialista — que reunia pequenas recordações pessoais desse período em 646 caixas contendo mais de 1200 fotos e 800 outros documentos — apresentado na Documenta Kassel, em 1987, ou instalações como Autel de Lycée Chases [Altar ao Liceu de Chases], (1988), que incluía fotografias de crianças judias vítimas do genocídio, ou ainda Réserve [Reserva], (1990), uma das primeiras acumulações de roupa usada, cuja metonímia convocava as imagens dos campos de concentração, observamos um corpo de trabalho no qual a temática do Holocausto e as suas possibilidades de representação introduziram uma dimensão aguda no que diz respeito aos dilemas éticos de uma imagética do sofrimento humano, definindo assim, desde aí, o percurso artístico de Boltanski.
Por outro lado, a problemática da representação artística do Holocausto constitui uma polémica irresolúvel, já com décadas de depoimentos, declarações e argumentos opostos. Em 1982, na esteira de Adorno, Joseph Beuys defendia Auschwitz como «aquilo que não pode ser representado. Essa imagem repulsiva que não pode ser apresentada como uma imagem mas que só poderia ser mostrada na efetividade do acontecimento, enquanto ele se produzia, o que não pode ser transposto numa imagem. Não o podemos lembrar tal como foi senão por uma imagem contrária, de forma positiva, quer dizer, por homens que afastam do mundo essa mancha».[3] Será Boltanski um desses homens? Gloria Moure referiu já que muitas das suas obras instauram uma espécie de desassossego «porque, com acentuada ironia poética, coloca os observadores num território percetivo algo incómodo, que se visita voluntariamente com pouca frequência. É, por assim dizer, o âmbito das nossas emoções em regressão até à despersonalização; a zona do inquietante encontro entre a nossa subjetividade e o fluxo objetivo das coisas e da vida no seu conjunto. Constatação, mais do que denúncia, as obras de Boltanski colocam-nos simplesmente em posição, numa viagem em que estamos inevitavelmente envolvidos e que parece sugerir-nos que, apesar de tudo, há lugar para a criação e o entusiasmo, ainda que por meio do absurdo».[4]
Um dos maiores exemplos do jogo de significação que convoca o absurdo existencialista da vida e da morte, é a sua série fotográfica Cinquante Suisses Morts [Cinquenta Suíços Mortos] (1989), extraída de fotografias do obituário de um jornal e a curiosidade de que, apesar do que aí se sugeria, apenas quarenta e nove dos fotografados estavam realmente mortos. Ou seja, um deles ainda estava vivo. Porém, o título da peça não remetia para qualquer espécie de imprecisão, reforçava antes que, mesmo para o último sobrevivente desse mosaico fotográfico, a morte era apenas uma questão de tempo. No fundo, toda a obra de Boltanski resulta da dúvida fulcral: «Por que é que eu existo? Que sentido existe na vida face à sua iminente extinção?» Ao recolocar no plano da arte a sua própria história de vida e a sua inquietação acerca da inexorável passagem do tempo, rumo à morte, sobretudo patente nos primeiros trabalhos de finais dos anos 60, e ao apresentar múltiplas possibilidades para esta e outras histórias anónimas, o artista confronta-nos com valores de cultura e humanidade que derivam desse reposicionamento, e que jogam com as nossas contradições, desvios de curiosidade e reconhecimento identitário. Mais do que verdadeiro, no sentido de procurar o encontro com uma verdade sobre os efeitos nefastos da perecibilidade da memória, o trabalho de Christian Boltanski estabelece uma autenticidade comunicativa e artística ao longo desse processo de recuperação sobre o horror do Holocausto e a memória quase voyeurística das vidas aí destruídas. Apesar desse âmbito inevitavelmente rememorativo e afetivo, o seu trabalho revela ainda «um impacto quase fenomenológico que convida o espectador a sentir elementos que o afetam muito para além do domínio do visual, como a temperatura das suas instalações, a luz demasiado próxima dos rostos anónimos retratados, a evocação da vida e da morte, da memória e da sua fabricação, da sobrevivência e da consciência coletiva».[5] Com um percurso artístico já longo e, apesar de alguns equívocos recentes, bastante assinalável, Boltanski participou nos últimos anos, para além da já referida edição de 2010 da Monumenta, em Paris, na Biennale for International Light Art (2010), no contexto da European Capital of Culture RUHR, tendo sido ainda o artista que representou oficialmente a França na última edição da Bienal de Veneza, em 2011.
Recordando os resultados mais decisivos da sua obra, podemos afirmar que, aparentemente, a representação da memória apenas interessa a Christian Boltanski no momento em que a nossa consciência consegue interiorizar o cruzamento entre as histórias individuais de cada um de nós, ou dos retratados anónimos que funcionam como espelho da nossa própria individualidade, e a história coletiva que nos prende ao sentido trágico da vida ou da humanidade, entendida como um episódio na longa linha do tempo.
[versão original: in Arqa, nº 104, Dezembro 2012]
1 | ↑ | José Jiménez, «Teatro de la metamorfoses», in AAVV, Christian Boltanski— Adviento y Outros Tiempos, Santiago de Compostela, CGAC — Centro Galego de Arte Contemporánea, 1996, p. 51. |
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2 | ↑ | Idem, p. 55. |
3 | ↑ | Joseph Beuys, numa entrevista de 1982. Citado por Jean-Luc Nancy, AA.VV., L’art et la mémoire des camps / Représenter, Exter, Seuil, Paris, 2001. |
4 | ↑ | Gloria Moure, «Presentación», in AAVV, Christian Boltansky — Adviento y Outros Tiempos, Santiago de Compostela, CGAC — Centro Galego de Arte Contemporánea, 1996, p. 11. |
5 | ↑ | Cf. www.guimaraes2012.p |