Divertido, sensível e inteligente, “The Life Aquatic” (que em Portugal recebeu o título de “Um Peixe Fora de Água”) é um filme verdadeiramente encantador, marcado por uma imaginação e uma liberdade poética extraordinárias. Aliás, o universo encantatório produzido pelo jovem realizador norte-americano Wes Anderson já havia sido apresentado na sua hilariante película “Os Tenenbaums”, também estreada entre nós no início deste novo milénio. A loucura da narrativa repete-se, uma vez mais, tomando como objecto a aventura dos afectos familiares. Partindo das relações sempre difíceis de uma família pouco comum (tal como no filme anterior), “Um Peixe Fora de Água” centra-se na figura egocêntrica de Steve Zissou (Bill Murray numa interpretação soberba que o confirma como um dos melhores actores contemporâneos), uma versão lunática de Jacques Cousteau que procura apenas conciliar o prazer caótico de uma última expedição às profundezas do mar e a excêntrica recuperação de uma hipótese familiar que passa pela ligação tardia a um “filho” (Ned Plimpton, interpretado por Owen Wilson) descoberto pelo acaso e o desejo recalcado de assentar de uma vez.
Marinheiro e realizador que vence inesperados festivais de cinema documental, Steve Zissou é a personificação mais recente do personagem esquizofrénico e sem sentido prático que Wes Anderson insiste em desenvolver no seu originalíssimo universo cinematográfico, onde só há lugar para o sonho e a aventura desmedida, aliciante e mágica, como o mundo livre construído pelas crianças que aceitam a comunhão da vida num exercício efabulatório normalmente ignorado pelos adultos. É nesse plano quase delirante, em que o imaginário e a fé da infância se cruzam com a epopeia de um destino de aventura total, que o capitão Zissou avança para a sua derradeira expedição, uma vez mais sem dinheiro suficiente para a concretizar condignamente, motivado sobretudo pelo objectivo de capturar uma espécie rara de tubarão, responsável pela morte de um dos seus mais antigos e queridos colaboradores na exploração subaquática. Mergulhados neste muito pouco convencional mundo do maravilhoso, em certa medida a fazer lembrar a atmosfera onírica desse extraordinário “Big Fish” de Tim Burton, somos surpreendidos pela dimensão risível do propósito expedicionário, como se Steve Zissou fosse apenas um louco que leu Júlio Verne em demasia, sem nunca ter chegado verdadeiramente à fase adulta. Os efeitos da sua falta de crescimento emocional constituem assim a matriz de um jogo de irrealidades e fantasias responsáveis por um dos filmes mais ousados dos últimos anos, sobretudo no que diz respeito a um imaginário fértil em ensaios sobre o impossível.
Na sua inimaginável embarcação, o “Belafonte” (sucedâneo caricatural do famoso “Calypso” de Cousteau) Zissou apresenta-nos uma equipa de marinheiros bastante “sui generis” e onde não falta Pelé (esse Seu Jorge que canta canções de David Bowie em português do Brasil), uma figura mais desse séquito que alinha nas extraordinárias desventuras do famoso (mesmo que um pouco aldrabão) capitão-realizador. Apetrechado com tudo o que é desnecessário para uma expedição subaquática com propósitos científicos, o “Belafonte” sulca os mares em busca do enigmático espécime que se esconde nas profundezas atlânticas. Após uma série de inesperadas aventuras que incluem desmandos amorosos com uma jornalista grávida (Cate Blanchett) e absurdos sequestros em águas infestadas de piratas pós-modernos, Zissou guia a sua equipa até ao monstro anunciado, revelando afinal o encanto produzido pelo encontro da natureza com o mais belo da nossa imaginação. Quais crianças encantadas, alinhamos com eles nessa descida ao fundo do mar para observar o que antes ninguém vira: um maravilhoso e ofuscante tubarão das profundezas. A magia desse momento retrai assim o ímpeto de vingança trazido da superfície, como se o mundo subaquático produzisse um incomparável efeito hipnotizador. Ele simboliza ainda, desse modo, o desconhecido que nos ilumina a alma e o espírito de aventura.
No fim do filme, Wes Anderson brinda-nos ainda com uma inesquecível caminhada de felicidade – a fazer lembrar o abraço colectivo de Fellini em “Oito e Meio” – onde Steve Zissou volta a levantar a moral das suas tropas, agora para o maravilhoso da descoberta maior que é a própria vida, perscrutando no horizonte a confiança de um novo e desmesurado sonho.
“Um Peixe Fora de Água/The Life Aquatic with Steve Zissou” (EUA, 2004) ****
Realização: Wes Anderson
Actores principais: Bill Murray, Anjelica Huston, Cate Blanchett
e Owen Wilson
(in Vida Ribatejana, 27-4-2005)