Na ilha com a iIha novamente
3.
Navega bem o barco ao vento
Seus caminhos conduzem ao porto
A noiva que o tempo exige
Em ar de festa teu rosto mostra
Levanta a saia com desplante
Canta dança e chora
A faia está em flor
A porta prende o grão de palha
O vaso de barro
A cal dos muros
Fertilíssimo ano de amor[1]
António Dacosta
Apesar do exercício fonético sugerido, a verdade é que nem sempre insularidade tem rimado com modernidade. Dos fatores que têm contribuído para essa realidade, ressalta desde logo a natureza física e geográfica que distingue a condição humana do ilhéu, pois o isolamento ditado por esse mar imenso que abraça o território promove quase sempre uma profunda identidade do sujeito com a especificidade do lugar e, ao mesmo tempo, um desejo incontido de evasão, de contacto efetivo com as realidades continentais. No caso dos Açores, verificou-se, porém, desde os finais do século XIX, uma singular vontade de afirmação cultural moderna, quer no âmbito da literatura ou do pensamento político, desde a reminiscente evocação de Antero de Quental, quer nas ciências, quer ainda no âmbito das artes visuais.
No universo da produção artística, esta vontade apresenta características particulares, que merecem ser realçadas, como prova do contributo da criatividade dos Açores para o modernismo português. Restringindo-se a análise a cinco artistas de três gerações, procurar-se-á distinguir não apenas a relevância inequívoca do valor desses trabalhos, mas também a diversidade estilística e processual neles manifestada, pois a expressão de uma modernidade concreta ligada ao arquipélago obteve nesses momentos existenciais uma dimensão extraordinária, confirmada inclusive pela receção crítica e historiográfica. Por isso, Domingos Rebelo (1891-1975), na pintura; Ernesto Canto da Maia (1890-1981), na escultura; António Dacosta (1914-1990), na pintura e no desenho; José Nuno da Câmara Pereira (n. 1937), na prática do objeto, da instalação e da pintura; e Ana Vieira (n. 1940), com o objeto e a instalação, resumem ao mesmo tempo a expressão e o eco açoriano quer das chamadas vanguardas históricas (do cubismo à abstração), quer das neovanguardas (referenciadas pelas práticas pós-minimalistas, esse grande arco da arte efémera, performativa e interdisciplinar).
Notícia açoriana do Manifesto Futurista italiano
Mesmo antes de qualquer afirmação artística individual, um episódio particular sintoniza os Açores, logo em 1909, com o espírito vanguardista que invadia a Europa no início do século XX. Na verdade, um dos primeiros ecos em Portugal do escândalo imediato provocado pela publicação do Manifesto Futurista de Filippo Marinetti no Le Figaro deu-se, a 5 de agosto desse ano, num jornal editado em São Miguel, o Diário dos Açores. É aí que Luís Francisco Rebelo Bicudo, o autor da peça jornalística (natural dos Açores, mas residente em Génova), não apenas dá notícia dessa «nova escola literária», como traduz parcialmente o «Manifesto de Fundação do Futurismo», publicando ainda parte de uma entrevista concedida por Marinetti à revista Comoedia. Numa recente análise sobre este acontecimento editorial açoriano, Rita Marnoto esclarece que, entre outros aspectos, «a própria tradução [do Manifesto] atenua algumas facetas mais radicais do original. Quanto à entrevista, incide em particular sobre aspetos de índole ideológica e de debate de ideias. Trata a relação entre o plano individual e colectivo, a recepção por parte do público, e explicita as propostas essenciais do movimento, que era o que mais despertava a atenção, num momento em que tinha acabado de ser anunciado. Na parte final do artigo, Rebelo Bicudo traça uma visão de síntese dotada de relevante sentido crítico. As suas preocupações documentais são ilustradas pela consulta e referenciação de fontes, a partir da revista de Marinetti, Poesia.»[2] A investigadora Rita Marnoto reconhece inclusivamente na notícia açoriana um maior aprofundamento e empenho pedagógico em relação às superficiais notícias surgidas no portuense Jornal de Notícias: «Bicudo percebe que, para além da simples condenação ou do simples apoio ao Futurismo, há que entender a profundidade de um movimento literário que esconde uma escola filosófica. Por conseguinte, põe de lado os comentários trocistas, destacando os intuitos de renovação e a vertente iconoclasta da vanguarda italiana.»[3]
Por fim, a mesma autora sublinha o caráter de antecipação que enforma a notícia desenvolvida por Rebelo Bicudo, ao escrever: «O seu cosmopolitismo fica patente no orgulho, traduzido logo no início do artigo, de o Diário dos Açores ser um dos primeiros jornais a apresentar, em Portugal, a nova escola. E, a terminar, empenhado em aproximar o universo açoriano da vanguarda europeia, estimula os poetas da sua terra a estabelecerem contactos com os futuristas.»[4] Todavia, tal exortação viria a cair em saco roto, pois, no âmbito da produção literária açoriana, os ecos do futurismo não passariam de um episódio determinado sobretudo pelo entusiasmo do mensageiro da notícia. O vanguardismo teria de esperar mais alguns anos para ter, de novo, uma ponte com o arquipélago dos Açores. Seria pela ação de Domingos Rebelo, em Paris, e ainda junto dos salões do «Humoristas», em Lisboa, que finalmente se concretizaria a primeira etapa ou ligação fecunda entre a arte moderna e o universo criativo açoriano.
Domingos Rebelo, um açoriano em Paris
Após alguns sinais de talento revelados na infância, Domingos Rebelo cedo beneficiou do apoio familiar e de todos aqueles que nele logo projetaram um futuro ligado às Belas-Artes. Do Instituto Fischer à Escola de Artes e Ofícios Velho Cabral, em Ponta Delgada, o jovem Domingos Rebelo realizou, na verdade, um percurso exemplar, destacado pela aptidão para o desenho e a pintura naturalistas, que lhe valeu desde cedo os elogios dos professores e o apoio material dos condes de Albuquerque, que financiaram a continuação dos seus estudos artísticos em Paris, a capital internacional das artes.
O primeiro artista açoriano do século XX partira em 1907, com apenas quinze anos, rumo à aventura da grande Europa. Durante os seis anos dessa longa temporada parisiense, Rebelo frequentou a Académie Julian, onde foi discípulo de Jean-Paul Laurens, tendo ainda mantido contactos com Léon Bonnat e Jobbé-Duval, no curso livre da Académie de la Grande Chaumière. Ao mesmo tempo, desenvolveria uma estreita comunhão com alguns dos artistas modernos portugueses da primeira geração que nessa cidade recebiam, através de bolsas do Estado, de familiares ou de outros mecenas, uma formação artística mais identificada com a prática moderna do início de Novecentos, como foram os casos de Francisco Álvares Cabral (também açoriano), Emmerico Nunes, Amadeo de Souza-Cardoso, Francisco Smith, Alberto Cardoso, Manuel Bentes, Eduardo Viana, J. Pedro Cruz, Manuel Jardim ou, mais tarde, Santa Rita, Francisco Franco e Dórdio Gomes, entre outros.
Entre a realidade das experiências formativas e a mundividência então adquirida, Domingos Rebelo apreendeu um conjunto de novas referências interventivas, técnicas e estilísticas que fervilhavam nesses primeiros anos do século XX. Prova do apaixonado envolvimento com a liberdade criativa de Paris será essa fotografia coletiva (tirada por Eduardo Viana) em que Domingos Rebelo, Amadeo, Emmerico, Bentes e J. P. Cruz encenam a famosa pintura Os Bêbados de Velázquez, na qual se pode testemunhar o espírito de camaradagem que envolvia as experiências artísticas desse período. O resultado imediato dessa aventura coletiva, diletante e antiacadémica pelos ateliês de Montparnasse e outros bairros artísticos parisienses, foi a realização em Lisboa, no salão do fotógrafo Bobone, da mais ousada «Exposição Livre», corria o ano de 1911, e onde era possível observar na diversidade das propostas apresentadas uma tendência para, como sugeria o próprio título da mostra, a temática da pintura ao ar livre, de tendência naturalista, ainda que com laivos de experimentalismo formal e cromático, em alguns casos. Da paisagem à natureza-morta, ou do retrato ao desenho humorista, de tudo um pouco davam mostras os jovens modernos que Portugal oferecia ao novo século. Segundo o historiador José-Augusto França, Domingos Rebelo levara a essa exposição três trabalhos, a saber, «um “Retrato”, uma “Velha Açoriana” e uma “Paisagem”»[5], que o mantinham, apesar das experiências formais sugeridas, profundamente ligado ao imaginário cultural e etnográfico açoriano, o que, aliás, viria a determinar o seu regresso, em 1913, aos Açores, para exercer a docência de disciplinas artísticas em Ponta Delgada, iniciando então na sua pintura uma forte intensidade produtiva associada precisamente a uma «fase regionalista» (1913-1942), que não impedira, todavia, a ligação do pintor à dinâmica cultural lisboeta, sobretudo ao longo da sua colaboração com as exposições realizadas pela Sociedade Nacional Belas-Artes (SNBA). Na verdade, para lá do fervilhar boémio que Paris então oferecera, Domingos Rebelo viria sobretudo a fixar uma ideia de prática pictórica em consonância com um paisagismo marcado pelas vertentes simbolista e naturalista tardias, tendo José-Augusto França registado, a propósito da aventura dos dois açorianos que haviam convivido e partilhado formações idênticas: «Os açorianos Domingos Rebelo (1891-1975) e Francisco Álvares Cabral (1887-1947) tiveram carreiras diversas: o primeiro, que, em 22, seria considerado “O Millet açoriano”, integrou-se num academismo oitocentista e obteve duas tardias “medalhas de honra” na SNBA (1951 e 1956); o segundo (que estudou em Munique também) manteve-se toda a vida numa discrição de amador culto e sensível.»[6]
Domingos Rebelo teve, assim, uma experiência modernista intensa, traduzida, sobretudo, no plano existencial, pela estada parisiense e pelo convívio com alguns dos artistas que viriam a marcar os rasgos de vanguardismo da arte moderna portuguesa. Ao nível da produção pictórica, no entanto, para lá da produção de alguns «cartões» ou «desenhos» «humoristas» referentes a esses anos divididos entre Paris e Lisboa, a obra do artista de Ponta Delgada viria a identificar-se, poucos anos mais tarde, com o apelo regionalista da sua origem açoriana, convertendo-se ao longo do século XX na grande referência da pintura no arquipélago atlântico. O próprio artista viria a defender o seu afastamento das experiências vanguardistas iniciais: «Creio que desta vez encontrei aquilo que desejava. Depois de tantas hesitações, cheguei à conclusão de que o meu temperamento era realista e que a minha Obra tem de ser feita aqui, regionalista, sentida com máxima justeza.» Registe-se, todavia, que apesar do forte envolvimento com a paisagem e as gentes dos Açores, Rebelo viveu ainda – entre 1942 e 1975, ano da sua morte – um novo e voluntário exílio em Lisboa, onde desenvolveu atividade docente e uma forte ligação aos destinos da SNBA. Porém, a matriz da sua plasticidade estará para sempre associada à iconografia e à identidade açorianas, como pode ser observado nas obras que fazem parte do acervo do Museu Carlos Machado, com destaque, naturalmente, para essa emblemática pintura Os Emigrantes (1926), que retrata uma cena de cais, no cruzamento psicológico de um conjunto de figuras que esperam o embarque para um exílio forçado, aventura e destinos de muitas gerações de açorianos.
Ernesto Canto da Maia e os ecos da escultura moderna
Depois de ter experimentado o ensino artístico da Escola de Belas-Artes de Lisboa, entre 1907 e 1911, tendo participado já em 1912, com a apresentação de pequenas esculturas, no famoso Salão dos Humoristas Portugueses, será ainda nesse ano que Ernesto Canto da Maia inicia em Paris uma formação escultórica firmada no gosto simbolista, explorando desde logo um grande sentido intimista e existencial da representação figurativa. Ao estudar com Antonin Mercié e Bourdelle, fixando-se na capital francesa de 1920 até 1938, Canto da Maia participou em várias exposições coletivas parisienses, como o «Salon d’Automne» ou o «Salon des Artistes Indépendants», bem como em alguns salões dos «Humoristas». Ao aproximar-se da «Art Déco», consagrada na «Exposição Internacional de Artes Decorativas» de Paris, em 1925, onde participa com as estátuas Pomona e Flora (que lhe valem uma menção honrosa), Canto da Maia transformou-se rapidamente numa das grandes referências da escultura moderna portuguesa, não deixando de participar, com vários outros colegas de geração, na monumentalização dos valores do Estado Novo concretizados nessa grande manifestação de poder político nacionalista que foi a Exposição do Mundo Português, em 1940.
Desde sempre, porém, as características da disciplina da escultura implicaram a consideração de algumas condicionantes, que contribuíram quase sempre para uma mais lenta transformação da sua linguagem plástica e formal. Experiência artística eminentemente disciplinar no início de Novecentos, a escultura portuguesa mantém-se fiel até muito tarde ao peso da sua herança académica, a que não será alheia a vocação clássica e figurativa da sua expressão maioritária. Alheia à noção moderna da estética europeia, e quase sempre comprometida com uma lógica de encomendas oficiais ou particulares, a escultura portuguesa desde cedo se viu enredada nas malhas da política ou, sobretudo, na ambição propagandística dos seus regimes. Por aí se viram cercados os limites da liberdade de uma disciplina que manteve sempre uma tendencial dependência em relação aos desígnios coletivos, manifestando assim uma das suas diferenças essenciais relativamente à pintura, ou, no inverso, confirmando o seu parentesco com a própria arquitetura. Não que à escultura estivesse vedado o caráter individual da sua motivação, como ficou patente no desenvolvimento e proliferação desses retratos da burguesia portuguesa em bustos de leve inspiração moderna e circunstancial; antes se reafirmava que, nesta disciplina, ao dispêndio criativo havia necessariamente que adicionar os rigores orçamentais de um vasto investimento, dos desenhos e esboços iniciais, aos primeiros modelos em barro ou gesso, ou destes à produção final em bronze, pedra, terracota ou outra matéria-prima. Por isso, à escultura se aplicou quase sempre uma fatura de reconhecimento identitário, celebrativo ou de evocação memorialista, definindo uma espécie de modus operandi de orientação estética essencialmente clássica e conservadora, a que muito dificilmente se poderia escapar. Por outro lado, a tridimensionalidade física da manifestação formal inerente à escultura implicava essa mesma referência a uma organização do espaço, na sua relação com o nosso movimento de fruição e entendimento. Tal como preconiza Ernesto de Sousa, «uma escultura é, antes de mais, um objecto em movimento» que atua sobre nós, «define e organiza o espaço à sua volta»[7]. Não podemos esquecer ainda que a expressão da harmonia e do equilíbrio das formas em relação às noções essenciais de escala e proporção se manteve – até à destituição processual do meio, operada na segunda metade do século XX – como modelo primordial do fazer em escultura, na assunção da sua natureza disciplinar de projeção e referência relacional com o corpo humano, quer na sua unidade ou exemplo iconográfico de figuração, quer na articulação com a sua própria fenomenologia, escala física e sensibilidade percetiva. Definidas deste modo as regras essenciais da produção escultórica nacional, os artistas portugueses deparavam-se nesta disciplina com outros vetores de trabalho e funcionamento, mantendo-se fundamentalmente confinados ao gosto eclético das elites ou classes dominantes. Para tal, muito contribuiu o contexto de preservação estética tradicionalista herdado do século XIX.
Na segunda metade de Oitocentos, o gosto neoclássico, ou dramaticamente romântico, permanecia firme enquanto matriz cultural da escultura portuguesa, traduzindo-se não só numa fértil estatuária pública que ornamentara o Portugal da Regeneração, como no ensino das Belas-Artes, ou ainda na produção de escultores como Vítor Bastos, Tomás Costa, ou o francês Calmels. Assim, a introdução de uma estética de pendor naturalista ficou a dever-se sobretudo ao caso excecional de António Soares dos Reis, que, partilhando de uma conciliação entre a atenção ao cânone idealizado da natureza e a observação direta do real, renovara parcialmente a escultura nacional. Soares dos Reis manifesta ainda, todavia, uma clara opção pela modulação académica apreendida em Roma, na cópia da escultura clássica, introduzindo ao mesmo tempo, pouco depois, os primeiros sintomas de um sentimento simbolista de expressão simultaneamente naturalista, como nessa obra-prima absoluta, premonitória do isolamento do seu autor e da própria arte portuguesa, que é o Desterrado (1872), essa jovem figura humana, emblemática do registo cultural do país, que metaforiza o sentimento de abandono e desespero de um futuro sem horizontes, aliando-se à expressão intelectual dos «Vencidos da Vida» ou dos «suicidados da sociedade» como Antero de Quental, Camilo Castelo Branco ou o próprio Soares dos Reis.
Desse modo, entre a referência técnica e iconográfica de origem clássica e a manifestação de um sentimentalismo burguês, que melhor se revia no naturalismo de José Simões de Almeida, António Teixeira Lopes, Augusto Santo ou António Fernandes de Sá, Portugal entrava no século XX num quadro de produção artística essencialmente conservador e amaneirado na comoção narrativa dos seus valores, criando assim barreiras a uma efetiva contaminação das experiências modernas tendo como referência a prática da escultura francesa de Auguste Rodin, Antoine Bourdelle, Aristide Maillol, Joseph Bernard ou do italiano Medardo Rosso.
Na verdade, alguns dos jovens escultores portugueses do início do século partiram para Paris como bolseiros do Estado, na esperança de uma efetiva renovação formal do seu trabalho. Dentre eles, destacar-se-iam, quer pelo contacto com algumas dessas figuras que modernizaram a escultura internacional, quer pelo seu posterior protagonismo na vida artística portuguesa, os nomes de Francisco Franco, Diogo de Macedo e Canto da Maia. Envolvidos nos «Salões dos Humoristas» (Canto da Maia), em 1912, ou no grupo portuense dos «Cinco Independentes» (Franco e Macedo), em 1923, estes novos escultores apostaram inicialmente num espírito antiacadémico ou sobretudo na atualização das suas referências estilísticas, recebendo com entusiasmo esse novo século que tudo parecia prometer.
Já nos anos 20, Francisco Franco procurou em Paris atualizar-se a partir dessa grande referência de renovação na escultura que havia sido Rodin. São dessa época alguns trabalhos de grande escala e sólida construção formal, como o Semeador (1924). Porém, a contenção expressiva e emocional viriam a caracterizar os seus trabalhos mais decisivos, como na estátua monumental João Gonçalves Zarco (1928), que celebrava os feitos históricos do navegador. Franco fornecia aí, na evocação mítica dos primitivos portugueses – nomeadamente de Nuno Gonçalves –, a síntese formal que unia o gosto evocativo da estatuária oitocentista à referência moderna de uma nova estilização, que, embora em oposição ao naturalismo mimético do século anterior, não deixava de conciliar uma miríade de valores díspares, com pretensões de interpretação sobre a intemporalidade ou espécie de perpetuação dos valores históricos evocados. Nesse esforço, Franco incluía uma certa atenção à escultura renascentista, que assim atribuía um valor suplementar de dignidade à oficialidade da comemoração. Com essa obra, Francisco Franc o dava o seu contributo ao programa iconográfico de uma escultura impostapelos valores ideológicos do Estado Novo na expressão da sua «política do espírito».
A estética monumentalista e levemente modernizada da nova estatuária reforçar-se-ia nas décadas seguintes com os contributos ainda de Ernesto Canto da Maia (grupo escultórico D. Manuel, Vasco da Gama, e Pedro Álvares Cabral, 1940), Barata Feyo, Leopoldo de Almeida, Álvaro de Brée, António Duarte ou Martins Correia, que, entre alguns outros, desenvolveram as linhas definidoras de um programa de clara marcação nacionalista. Na opinião de António Ferro, com ele se pontuava a «idade de ouro da estatuária nacional», em que a estilização dos grandes vultos da cultura e dos mitos heroicos da diáspora portuguesa assegurava a homenagem ao passado glorioso do país. Assim se «educava» no «indispensável equilíbrio», como forma de autossatisfação e controlo sobre os futuros desígnios de Portugal. Deste modo, a estatuária «estado-novista» alimentou uma definição de identidade cultural e histórica entre os portugueses e o seu reflexo nessa portugalidade isolacionista celebrada na Exposição do Mundo Português, em 1940. Aí se pretendia afirmar a imagem política do Estado Novo, legitimando-a como expressão final da história lusa, associando essa mesma data ao duplo centenário da independência do país (1140-1640). Para António Ferro, 1940 constituía o «ano das grandes realizações espirituais e materiais do Estado Novo», como espécie de extraordinário ressurgimento nacional, após séculos de declínio. A arquitetura, a escultura, a pintura e as artes decorativas beneficiavam de uma orientação controlada pela ação do Estado, em favor da imagem deste.
Por outro lado, a política de encomendas oficiais protagonizada pelo SPN na regularização da política do espírito sintetizava, nas palavras de José-Augusto França, «uma fase de maturidade orientada para valores nacionalistas e folclóricos, com recuperação ideológica, estilizada e modernizada, de formas do passado nacional»[8]. Perante o ambiente hostil da política oficial em relação às vanguardas artísticas, as opções independentes de renovação formal ou temática permaneceram assim adiadas ou substancialmente diminuídas na sua capacidade de mobilização. A modernização do discurso formal da escultura portuguesa reduzia-se desse modo aos exercícios de menor escala, como nos trabalhos de inspiração neorromântica e simbolista de Diogo de Macedo (L’Adieu, c. 1920), ou nos retratos traduzidos em bustos de incursão simbólico-expressionista que tanto Macedo como Franco, Canto da Maia ou Hein Semke realizariam ao longo da primeira metade de Novecentos. Resolvida numa sensibilidade contemporânea, mas pouco autoconsciente, essa escultura inscreve-se numa matriz de modernidade de eloquência sobretudo literária, e onde o intimismo da figura humana faz ainda referência à imagética primitivista de tradição pré-clássica e mediterrânica. Estamos portanto longe das referências de rutura da escultura abstrata que nesses anos se experimentava um pouco por toda a Europa vanguardista.
Mas, do conjunto desses trabalhos, dever-se-á destacar a qualidade e consistência da produção de Ernesto Canto da Maia, provavelmente o melhor escultor da sua geração, sobretudo nas elegantes citações arcaizantes de referência primitivista e decorativa, resolvidas em muitas terracotas policromas, que, em referência à modernidade dos já citados Bourdelle e Mercié, constituem referências maiores sobre a síntese moderna da escultura nacional dessa época, como no conjunto Adão e Eva (1929), em Família (1922-28), ou no hieratismo frontal dessas estátuas colunares da Tragédia e da Comédia (ambas de 1926)[9]. Apesar do seu compromisso ideológico e estético com o regime, esta geração de escultores protagonizada por Diogo de Macedo, Francisco Franco e Canto da Maia introduziu, ainda assim, uma referência de modernidade estilística e outras experiências técnicas que, mesmo condicionadas aos ditames das encomendas oficiais do Estado Novo, diminuíram o peso do academismo neoclássico e mimético-naturalista da escultura portuguesa, introduzindo uma prática criativa simultaneamente de cariz formalista e monumental, onde à síntese das formas se aliava a evocação historiada, e ainda figurativa, dos feitos nacionais. Assim, contribuíram igualmente para a consolidação de um estilo ou de uma nova tradição que, em breve, viria a estagnar no esgotamento de uma arte pública essencialmente decorativa, traduzida no lento declínio dessa «estatuária de capote»[10] prolongada invariavelmente até ao fim do Estado Novo.
António Dacosta, surrealista, «pintor europeu das ilhas»
Projeto existencial de inspiração poética e libertadora, o Surrealismo parisiense, fundado por André Breton nos anos 20, teve em Portugal um eco tardio mas profícuo. Em 1936, na Exposição de «Artistas Independentes» de Lisboa, António Pedro viria a apresentar, entre outras obras, Le crachat embelli (1934) e Refoulement (1936), misteriosas pinturas onde o onírico confundia uma figuração de recusa sobre os valores realistas, mais tarde consideradas as obras que introduziram em Portugal o universo criativo do Surrealismo[11]. Por sua vez, António Dacosta fazia a sua apresentação em 1940, na Casa Repe, em conjunto com António Pedro e Pamela Boden, numa exposição que revelava opções estéticas absolutamente opostas às defendidas na oficial Exposição do Mundo Português desse mesmo ano.
Na verdade, Dacosta introduzia então na pintura portuguesa a conciliação possível entre um forte onirismo de raiz surrealista e uma muito particular interpretação dos mitos insulares da sua origem açoriana, traduzida em obras como Diálogo (1939), Antítese da calma (1940, reproduzida na presente obra, na página XXX), Serenata açoriana (1940), Cena aberta (1940), Melancolia (1941) ou ainda A Festa (1942). Com efeito, os valores da incomunicabilidade e do absurdo imagético entre estranhos seres resultavam então, pela sua extraordinária reordenação poética, em surpreendentes registos figurativos, como em Amor jacente (1941), ou nesse enigmático Episódio com um cão (1941), onde a explosão insólita do imaginário atinge uma sólida atmosfera surrealista; Dacosta instaura aí, em surdo diálogo, três momentos narrativos autónomos (divididos igualmente em três espaços cromáticos), que inviabilizam desde logo uma leitura direta ou objetiva sobre o seu significado. A surrealidade silenciosa ou o absurdo aparente do conjunto insinuam ainda uma angústia profunda, talvez como crítica velada à violência da Segunda Guerra Mundial, que, em 1941, atingia já grande parte do continente europeu. Afinal, aí confluíam valores de agenciamento subversivo sobre o pulsional e o inconsciente que faziam da pintura de Dacosta um novo e estranho corpo no panorama da arte portuguesa da década de 40. O pintor, que partiria pouco depois para Paris, superara em qualidade formal as poucas incursões surrealistas até então realizadas entre nós[12].
Já no final dos anos 40, os grupos de jovens artistas da Escola António Arroio ou do Café Herminius percebem finalmente, por um lado, o esgotamento da estética neorrealista e a sua retórica de subordinação da forma ao conteúdo e, por outro, que as referências de Cândido Costa Pinto, e fundamentalmente de António Pedro e António Dacosta, são um exemplo de maior inventividade e descoberta. Os valores de liberdade formal e o automatismo psíquico de uma expressão pictórica não controlada pela razão aproximam assim as novas experiências estéticas no sentido do Surrealismo; isto é, de um movimento internacional que se reformulara desde o pós-guerra com o regresso de Andre Breton a Paris, depois do exílio nos EUA.
A partir da grande exposição «Le Surréalisme», organizada, em 1947, por Breton e Marcel Duchamp na capital francesa, e no incentivo de uma organização internacional da estética e do movimento surrealistas, que significava também o seu manifesto «Rupture Inaugurale», assinado em Paris por António Dacosta e Costa Pinto, Breton pretendia apoiar a formação de grupos representativos nas principais cidades europeias. Aliás, os grupos surrealistas tiveram em Portugal uma expressão estrutural característica dos movimentos de vanguarda, desde os conflitos pessoais às polémicas doutrinárias, ou da produção teórica à intervenção cultural determinada[13]. Inicialmente, Cândido Costa Pinto será o eleito por Breton para organizar ainda nesse ano um movimento surrealista em Lisboa, ao qual se juntam desde a primeira hora António Pedro, António Dacosta, José-Augusto França, Mário Cesariny, Vespeira, Alexandre O’Neill, João Moniz Pereira, Fernando Azevedo e António Domingues. Mas o compromisso imediato de Cândido Costa Pinto com uma exposição do SNI retirar-lhe-ia qualquer autoridade, sendo inclusive expulso do movimento logo no seu início. Perante este afastamento, será António Pedro, também pela sua diferença de idade, a protagonizar uma espécie de liderança, que, no entanto, jamais alcançará um controlo doutrinador à imagem de Andre Breton. O Grupo Surrealista de Lisboa, fundado em outubro de 1947, terá vida curta mas uma influência fecunda na afirmação do imaginário criativo de alguns dos artistas que encetavam a rutura com o ideário cada vez mais politizado do Neorrealismo.
O terceirense António Dacosta afirma-se, neste contexto, por uma invulgar expressão de melancolia figurativa, na qual o mistério da significação produz um efeito de transtorno e incomodidade poética ao nível da leitura pictórica. Entre a subtileza de alguns pormenores narrativos – manifestos em referência a memórias de infância e adolescência, vividas nos Açores – e o deliberado confronto de uma encenação por vezes excessiva, marcada pela presença de figuras solitárias, que povoam de um modo quase metafísico – primeira referência ou despertar surrealista destas obras – as paisagens inventadas por entre os sinais de um real vivido e a sua reconversão poética mais ousada e livre.
É, aliás, de liberdade criativa que nos fala esta pintura, como que denunciando uma ânsia de evasão e revolta, que, todavia, mantém o artista ligado às suas raízes insulares. Afirmando um modo estético particularmente incisivo e marcante, nomeadamente na referência constante e implícita às ilhas dos Açores, a pintura de António Dacosta acentua uma estratégia de liberdade que bebe na arte metafísica de Giorgio de Chirico, na variabilidade rupturista de Picasso, e ainda no surrealismo de Dalí e Victor Brauner, uma inspiração essencial que lhe amplia o voo pelo imaginário, a libertação dos sentidos e das emoções. Vitorino Nemésio, o grande escritor açoriano do século XX, disse de António Dacosta, numa expressão que ficou famosa, que ele era um verdadeiro «pintor europeu das ilhas». «Os Açores merecem um pintor que exprima aquela penumbra baixa que em tudo abre a intimidade de um reflexo, aquela nobre lei de perspectivas que se funda nos picos e nas águas.»[14]
Essa apetência pelas marcas vulcânicas ou pelo grande mar oceânico, símbolo maior, afinal, de toda a maternidade, não isolaram contudo o espírito do pintor, que soube, como poucos, fundir esse mapa de referências íntimas com uma leitura política do mundo. Por isso, a arte de Dacosta nunca deixou, ao mesmo tempo, de vincar um espírito de angústia perante o belicismo desumano dessa época, marcada pela Guerra Civil de Espanha e, pouco depois, pela Segunda Guerra Mundial. O estertor da sua figuração e o plano de sofrimento desenhado na transformação do próprio clima pictórico fazem desta pintura um testemunho maior desses «tempos sombrios» que envergonhavam a humanidade. O feio e o grotesco constituíram-se assim, de um modo quase natural, instrumentos recorrentes de comunicação estética, eleitos necessariamente perante a ausência de valores, ou cativos do seu esquecimento. Nemésio lembrava, logo em 1942, que «o feio, e até o horrível, foram das primeiras inspirações deste artista. Não tanto o feio e o horrível no modelo, mas os do processo associativo das formas, a coragem de concepção pelo feio e o horrível.»[15] Perturbante paisagem ou galeria de figuras esquivas ao belo e à harmonia, a pintura de António Dacosta exerceu desde o início um confronto implacável com o observador, tratando as formas e as cores «a fogo de sinceridade», como referiu Nemésio, para oferecer depois alguns sinais para uma possível redenção. Ao exigir do observador apenas a experiência estética genuína e uma disponibilidade total para o exercício da sua liberdade, a pintura surrealizante de Dacosta não se sentia integrada, por isso, no limitado contexto artístico português desse início dos anos 40. Aos poucos, Paris surgiu no horizonte como um sinal de esperança e aventura.
Já instalado em Paris, assumindo funções de crítico de arte e correspondente de jornais como O Estado de São Paulo (Brasil), os periódicos portugueses Acção e o Diário Popular, António Dacosta realizaria ainda, entre 1947 e 1949 (ano em que suspende toda e qualquer atividade artística), uma pintura de experiência abstrata, que, além de não esquecer o valor do acaso herdado da tradição surrealista, mantém com esta uma estreita ligação ao nível da significação dos títulos, como por exemplo em Cuidado com os filhos (1948).
Após um interregno de mais de vinte e cinco anos, Dacosta voltará a pintar, em 1975, abrindo então a sua obra a um universo lírico de matriz matissiana, moldado por suaves valores de composição cromática, que assumem desde aí uma intensa expressão poética, marcando-a definitivamente até ao final da sua vida, em 1990. Nesses últimos anos, sobretudo a partir de 1980, a sua prática pictórica procura assumir uma densidade similar ao seu labor poético, traduzindo assim uma espécie muito particular de comunhão entre as palavras, o poder verbal, e a síntese imagética da produção pictórica.
José Nuno da Câmara Pereira e Ana Vieira, dois registos marcados pelo contexto pós-minimalista
Ambos com formação na Escola de Belas-Artes de Lisboa, José Nuno da Câmara Pereira e Ana Vieira iniciaram o seu percurso artístico no final dos anos 60, assistindo e participando com as suas primeiras instalações nessa complexa transformação da arte moderna em pós-moderna, que assumia então o salto do vertical para o horizontal, da qualidade (formalista) para o interesse (neovanguardista), do diacrónico para o sincrónico ou – acrescentamos nós – da opticalidade percetiva para a reflexividade discursiva. Apesar de tudo, esse desvio não foi na verdade seguido por toda a arte dita pós-moderna. Se a horizontalidade e, por essa via, a dimensão social e política passaram a caracterizar a esmagadora maioria das experiências pós-minimalistas, desde a process art à conceptual art, da land art ao happening e à body art, entre outros, o certo é que, por sua vez, a pop art devolvera a arte, nessa mesma época, a um «contínuo de cultura»[16] que não desdenhava, antes pelo contrário, o sistema capitalista de produção e promoção imagética.
Podemos assim identificar duas grandes linhas de ação e produção artística desde a década de 60, a primeira marcada pela consciência da temporalidade do efémero, do político e da vida menos mediada, protagonizada por toda a tradição pós-minimalista, e a segunda caracterizada pela participação mais ou menos consciente no grande espetáculo do tardo-capitalismo, não abdicando da essência do objeto de arte, esse conceito tão criticado pela estratégia pós-minimalista, ainda que mantenha com esta a mesma determinação pela assunção de uma arte «pós-medium»[17]. O trabalho de José Nuno da Câmara Pereira situava-se nessa época numa dimensão de proximidade com a primeira linha de ação descrita, pois as suas instalações, de grande empenho espacial, resultavam de uma atenção particular ao conceito e à materialidade do efémero, discutindo então com os paradigmas da pintura e da escultura instalados desde há séculos no panorama artístico português. Nesse sentido, podemos afirmar que a arte de José Nuno da Câmara Pereira esteve desde cedo sintonizada com o seu tempo histórico, tendo participado em alguns dos momentos decisivos do início da arte pós-moderna em Portugal, acompanhando as ruturas que as neovanguardas apontavam. Ana Vieira, apesar de nascida em Coimbra, foi profundamente influenciada pela sua educação açoriana, em São Miguel, pois cresceu aí, entre a cidade e a experiência dos campos abertos ao mar, nesses «muros de abrigo» que viriam a influenciar decisivamente os seus característicos «ambientes» ou «mesas-paisagens» dos anos 70, marcados pela delimitação de um espaço transparente mas inacessível, ao criar uma espécie de fronteira com os véus desenhados por essas sombras da memorabilia açoriana. As janelas e as portas, o mobiliário pesado e as divisões inabitadas traduziram-se na sua obra em instalações que marcaram uma época de rutura com a condição objetual da pintura.
No fundo, os dois artistas refletiam uma informação e uma necessidade características desses tempos, em que a especificidade dos objetos e a sua instalação no white cube da galeria tornavam incontornável, a partir daí, a assunção de outras duas especificidades essenciais na comunicação da obra de arte: por um lado, a do lugar onde a obra se apresenta e, por outro, a do tempo da receção operada pelo seu observador, acentuando a responsabilidade deste não só no processo de significação, mas também na própria existência real da obra. Por isso, a arte entra numa nova dimensão comunicativa e de significado. A novidade essencial dessa transformação, instauradora de um novo paradigma na arte contemporânea, é a assunção do tempo presente, que leva a que a obra e o observador partilhem um tempo e um espaço específicos. Essa especificidade produz assim uma nova dimensão até aí pouco associada à obra de arte: o efémero. A irrepetibilidade ou efemeridade inerente à instalação minimal confirma, por sua vez, que a arte pós-moderna exigirá sempre um observador mais ativo e consciente do seu papel decisivo no processo de realização da obra de arte. Situação que está nos antípodas da tradição artística, pois, ao contrário desta, não promove essa ancestral perenidade da obra, que chamava qualquer observador de tempos e espaços diferenciados a mergulhar na unidade idiossincrática da sua manifestação. Pelo contrário, a obra de arte promovida pelo minimalismo procura desencadear um processo que conta com o tempo presente e com a relação específica estabelecida na totalidade espacial da instalação, distribuída pela sua condição objectual e experiencial, determinada finalmente pela ação, também ela específica, do observador. Nesta medida, é o efémero que se insinua, ainda que timidamente, na proposta minimalista. Este efémero será, afinal, determinante em toda a prática dita «pós-minimalista», levado ao extremo no percurso da informal art à land art, do happening à performance, e que viria a dominar a conjuntura internacional até finais dos anos 70, mantendo ainda uma influência fecunda na produção artística contemporânea.
A durabilidade da forma e a sua aparente estabilidade ao nível dos sentidos e da significação são aqui contrariados pela presença, revelada na experiência da arte, de novos e inexplorados elementos: assimetria, gravidade, peso e acaso, evidenciando uma espécie de independência dos materiais utilizados e dos seus valores intrínsecos. A obra não é mais algo que perdura, mas uma experiência que se afirma num tempo e num espaço específicos, herdando aqui a matriz e o contributo essencial da prática minimalista, e que promove o sentimento de imprevisibilidade da experiência de recetividade da obra, o fim da arte como representação e ainda a relativização sobre a importância objetual ou mesmo material da obra de arte. Desse modo, sublinhava-se sobretudo o caráter efémero, fluido, transitório e inapropriável da obra de arte, criando obstáculos à sua integração no mercado de arte, ao frustrar alguns dos princípios deste, nomeadamente a sua extraordinária especulação em torno do valor do objeto único, eterno e insubstituível. Tudo isto contribuíra para uma espécie de infiltração corrosiva no mercado de arte, contrariando a sua dependência sobre os objetos e o seu pretenso valor de culto, mesmo que mais tarde se tenha concluído que qualquer iniciativa de oposição ao sistema do mercado de arte seja também ela absorvida e dominada pelo próprio sistema.
O conceito de «objeto-quadro», que os minimalistas criticaram ao modernismo tardio dos expressionistas abstratos, bem como o de «objeto específico» (ainda assim objeto), que os pós-minimalistas da process art e da land art criticaram à experiência minimal, introduzindo e desenvolvendo o conceito de «informe» e de «processo», isto é, assumindo o tempo e a sua inerente transitoriedade no resultado da obra de arte, tornaram-se, a partir da segunda metade dos anos 60, estratégias caducas de intervenção artística, pouco condizentes com a ideia de efemeridade que norteava toda a experiência pós-minimalista, nomeadamente a assunção de uma acentuada condição não objetual, quer se apresentasse na expressão de uma desmaterialização total ou parcial da criatividade, quer se afirmasse ainda num jogo com a ideia ou memória de uma certa noção de
objetualidade, mais difusa, ambígua ou diáfana. Na verdade, à conquista da espacialidade da galeria, levada a cabo pelo objetualismo minimalista, através da convocação de outros sentidos para além da opticalidade pura concentrada na planaridade da abstração pictórica, a process art e a anti-form projetaram uma extrema desobjetualização da obra de arte, abrindo definitivamente o caminho ao domínio e à pluralidade da instalação. Do político à poética individual, a experiência artística da década de 70 viria assim a considerar uma libertação dos limites puristas ou objetuais da obra de arte, assumindo cada vez mais uma interdisciplinaridade conceptual ou de conteúdo, no cruzamento de referências materiais e estéticas que complexificariam decisivamente uma orientação mais precisa ao nível do aparato formal e processual da criatividade artística.
É neste contexto teórico e de ação que José Nuno da Câmara Pereira se afirma como artista contemporâneo. A partir de 1977, o seu trabalho ganha, da pintura à instalação, reconhecimento e projeção nacional. Nesse ano, o Museu Carlos Machado, de Ponta Delgada, recebeu a sua exposição de pintura Paisagens de mito e memória, a que se seguiu, dois anos mais tarde, a exposição-instalação Imaginação da matéria, realizada, com apoio da Fundação Gulbenkian, na Central Tejo, hoje Museu da Eletricidade. Em 1983, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, apresentou um novo e polémico projeto de «transfigurações computadorizadas»[18], intitulado Transfiguras: Exposição histórica trágico-marítima, e no ano seguinte, em Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, a instalação Recado para Inês. A galeria Quadrum levou trabalhos seus à FIAC (Feira Internacional de Arte Contemporânea), em 1979, Paris, «Grand Palais», e de 1984 a 1987 participou em diversas exposições coletivas (1984: o futuro é já hoje?, Centro de Arte Moderna; 1.ª Bienal dos Açores e do Atlântico; «III Exposição de Artes Plásticas», Fundação Calouste Gulbenkian; Arte Contemporânea Açoreana; 2.ª Bienal dos Açores e do Atlântico, Angra do Heroísmo). Em 1986, é distinguido pela Associação Internacional dos Críticos de Arte com o prémio AICA. Também nesse ano, Câmara Pereira recebe o prémio «Instalações ou Objetos», da III Exposição de Artes Plásticas da Fundação Calouste Gulbenkian, com o trabalho de instalação O Começo, que apresentava a seguinte ficha técnica: «O Começo: o chão da Terra – Lugar onde o Homem regista, desenha e lavra (ainda) o acto estético de viver, (1986), 16 m2 Terra, Sementes, Gravetos e Pedra aglutinados por Poliéster.»[19] Assim se firmava o reconhecimento de um artista que entre o início dos anos 70 e o final de 80 promoveu uma arte do efémero material, denunciando ainda e sempre uma estreita ligação à sua raiz identitária de ilhéu, oriundo de Santa Maria.
Por sua vez, a experiência artística de Ana Vieira parece projetar, a partir da memória desses «muros de abrigo»[20], a infância açoriana numa casa para todos. Símbolo maior ou síntese de toda a sua proposta estética, Ocultação/Desocultação surgiu como uma instalação paradigmática, realizada no espaço da Galeria Quadrum, em 1978, no contexto de uma programação experimental e atenta à arte de vanguarda conduzida por Dulce d’Agro, que viria a ter, vinte anos mais tarde, uma segunda versão, apresentada na sobriedade déco da Casa de Serralves, no Porto, em dezembro de 1998, além da presença ainda, em 2010, na exposição antológica da artista, realizada em conjunto pelo Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian e pelo Museu Carlos Machado, de São Miguel. Ao longo dos anos que medeiam as três etapas desse ambiente, Ana Vieira não deixou de reafirmar, ainda que com discrição, um dos seus mais decisivos apelos criativos: habitar um espaço de sensibilidade poética individual e poder partilhá-lo com os visitantes. Tal trabalho, reificado duas décadas após a sua versão original, repercutia ainda essa dialética sobre a translúcida afirmação do feminino na arte portuguesa, entre a opacidade e a transparência, os sentimentos e a racionalidade de uma época que exigia cada vez mais o reconhecimento da mulher também no domínio da manifestação artística. Refletir, mais de trinta anos volvidos desde a primeira apresentação de um trabalho com características de comunicação tão particulares, entre a linguagem conceptualista e o desejo de comunhão imagética sobre a ideia de uma casa que é afinal de todos aqueles que a puderam já experimentar poderá constituir ainda uma espécie de mnemónica afetiva, dado que Ocultação/Desocultação mantém ativo o princípio de um convite essencial: sonhar e construir, não com tijolos e cimento, mas apenas com a imaginação, a experiência de habitar uma casa que é simultaneamente de Ana Vieira e de todos os que aceitarem o desafio dessa experiência artística.
Com efeito, não era uma casa de sonho, mas o sonho de uma casa, o que Ana Vieira nos propunha em 1978, como em 1998 ou 2010. Tanto na Galeria Quadrum, como no CAM, ou na majestosa modernidade «Déco» de Serralves, a instalação de Ana Vieira reconduzia essas três casas a uma nova consciência de espaço e de lugar. Os segredos e as cumplicidades cruzaram os ambientes numa espécie de espacialização da memória (também, por certo, açoriana), mais transitória ou inconstante. De facto, as analogias são imediatas e inequívocas. A lógica da ocupação faz-se com a tranquilidade afetiva e ilusória de quem desejou sempre esse lugar eleito, seja a galeria moderna (da Quadrum ou do CAM) ou a Casa «Déco». É certo que o trabalho de Ana Vieira coincide naturalmente com a realidade física e conceptual desses espaços da cidade de Lisboa e do Porto, respetivamente. Afinal, a casa é o conteúdo mais forte e permanente de todo o percurso da autora. A sua memória teatralizada, tornada magia de uma perceção simultaneamente intimista e reveladora, marca o processo dialético em que sempre se inscreveu esta proposta estética.
Desde a trilogia dos Ambientes, de 1971-72, Ana Vieira tem realizado uma profunda e continuada desmaterialização da obra de arte a partir da ideia fundadora do espaço da casa, num jogo de ocultação e revelação de um quotidiano efémero, em que os valores mais tradicionais da arte são sistematicamente invertidos por um particular desvio percetivo, entre o corpo e o olhar. Nesses espaços-ambientes, tornados não apenas objeto de contemplação mas também experiência real a partir da ação corporal, o observador é confrontado com a imagem de um espaço paradoxalmente mais (in)acessível no seu todo, ao mesmo tempo próximo e distante. As paredes dessas casas-ambientes são feitas de rede, numa transparência de símbolos desenhados que deixa ver sem entrar, como convite limitado que deliberadamente insinua um viver outro, intransmissível. Aí, os segredos dos objetos da casa, as sombras ou os resíduos da sua presença fundem-se numa consciência que sabe do jogo entre a ilusão e a realidade, o vivido e o imaginário, impondo um desejo maior mas nunca concretizado: a passagem do voyerismo à perceção sensorial desse todo que é o corpo. Assim, enquanto definição de um espaço de sonho e memória, esses ambientes promovem sobretudo uma distância calculada entre a obra e o observador, relação que só se altera significativamente com Projeto: Ocultação/Desocultação (1978), em que os objetos reunidos para uma casa ainda por habitar se apresentavam então, na versão original da Galeria Quadrum, isolados e cobertos por panos brancos iluminados internamente, esperando outra utilidade. Numa excelente adaptação ao exterior de Serralves, a planta das divisões dessa casa prometida foi de novo povoada por desejos apenas inscritos no chão desse mágico espaço de habitação aberto a todos. «Aqui quero respirar», «aqui gostaria de ter», «aqui gostaria de refletir» ou «aqui quero ver entrar» fazem dessa imaterialidade poética o seu reconhecimento mais imediato e interpelador. De outro modo, o diálogo entre O Corredor (1982) de Ana Vieira e o edifício da Casa de Serralves marcava ainda não só o desaparecimento total desse objeto anteriormente tão decisivo, mas também a subtil definição de uma atmosfera labiríntica de descoberta íntima e pessoal. Ou, como lembrava nessa altura João Fernandes, «a ocultação e a desocultação implicam-se reciprocamente em cada projecto, numa tensão entre o que é revelado e o que é escondido, como interstícios do desejo que o convertem no princípio da arquitectura de um mundo. Toda a obra de Ana Vieira transfere o plano da arquitectura para o plano da intimidade, distanciando-se do que no primeiro é monumento, narrativa de exterioridade e da ideologia, para se centrar no segundo, labirinto de sensações e percepções onde o desejo se intui como um segredo cumplicemente partilhado.»[21] Será essa dimensão poética individual, mas sempre partilhável na sua tarefa de desocultação parcial, que torna este trabalho de Ana Vieira particularmente sugestivo em relação a uma espécie de meta-arquitetura, que convoca ao mesmo tempo o observador da obra de arte para um reconhecimento sobre a simultaneidade de experiências e objetivos aí reunidos entre as artes visuais, ainda que na sua expressão mais conceptual, e a arquitetura, mesmo se esta se reduz à experiência de uma construção pouco real, fundada apenas no princípio de uma liberdade maior: o poder da imaginação. O que remete ainda para um slogan muito em voga nos anos 70 em Portugal, «A Imaginação ao Poder», inspirado pela memória política do Maio de 68. Também no nosso país, esses eram tempos em que se exigia um maior protagonismo dos valores sociais e políticos associados ao imaginário criativo, transformando-o numa poderosa arma de comunicação e partilha existencial. A casa que Ana Vieira nos propõe com a sua obra Ocultação/Desocultação é desse modo também um símbolo de abertura ao nível da significação, que mantém ainda um vínculo com o contexto político e social português dessa época.
1 | ↑ | O título deste ensaio toma de empréstimo a intitulação de um conjunto de três poemas de António Dacosta: «Na ilha com a ilha novamente», que integra o volume póstumo «A Cal dos Muros». Cf. DACOSTA, 1994. |
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2 | ↑ | Rita MARNOTO, 2009, p. 66. |
3 | ↑ | Ibidem. |
4 | ↑ | Ibidem, p. 67. |
5 | ↑ | Cf. FRANÇA, 1984a, p. 24. |
6 | ↑ | Ibidem, p. 26. |
7 | ↑ | Cf. SOUSA, Ernesto de, 1973. |
8 | ↑ | FRANÇA, 1984b, p. 23. |
9 | ↑ | Sobre o conjunto da obra de Ernesto Canto da Maia, cf. «Canto da Maya», coord. Paulo Henriques, 1990. |
10 | ↑ | Cf. FRANÇA, 1985. |
11 | ↑ | Sobre esta questão, cf. SILVA, 1995, pp. 399-404. E ainda cf. ÁVILA, 2001, pp. 6-247. |
12 | ↑ | Sobre a pintura surrealista em António Dacosta, cf. GONÇALVES, «António Dacosta», Lisboa, IN-CM, 1984. Cf. ainda ÁVILA e CUADRADO, op. cit |
13 | ↑ | Sobre o caráter de movimento de vanguarda do surrealismo português, cf. CUADRADO, 1998, pp. 9-63. |
14 | ↑ | NEMÉSIO, 1942. |
15 | ↑ | Idem, ibidem. |
16 | ↑ | Cf. Lawrence Alloway, «The Long Front of Culture», (1959). [citado por Hal Foster, op. cit., p. 282]. |
17 | ↑ | Sobre a questão da condição «pos-medium» da arte dos anos 60 e 70, cf. KRAUSS, 1999. |
18 | ↑ | Cf. FRANÇA, 2004, p. 178. |
19 | ↑ | Cf. AAVV, «III Exposição de Artes Plásticas», 1986. |
20 | ↑ | Cf. AAVV, «Muros de Abrigo», 2010. |
21 | ↑ | Cf. FERNANDES, 1998, p. 31 |