2020 Nas paredes do «Palacio Nacional» O México de Diego Rivera sob o olhar de Antonio Rodríguez

Nas paredes do «Palacio Nacional»

 

A Zinia Rodríguez, Gerardo Cedillo Bolaños e Magdalena Zavala

que me acolheram e orientaram na minha primeira visita à Cidade do México.


Ars longa, vita brevis
Hipócrates

 

 

Será a pintura capaz de articular o irredutível, a memória visual de uma identidade comum? Será possível olhar para trás e pintar o futuro, narrar a história de uma nação no claustro de um palácio, expressar com dignidade a epopeia de um povo? A estas e outras questões respondeu Diego Rivera ao longo de décadas, no exercício de uma arte comprometida com a consolidação da experiência revolucionária, as origens identitárias e a transformação progressista da sociedade mexicana. Para tal, coordenou com David Alfaro Siqueiros e José Clemente Orozco a reapropriação de uma figuração monumental, em parte associada à estética realista, propensa a uma leitura de carácter universalista e popular, convertendo-a, a partir daí – com a constituição em 1922 do Sindicato de Trabajadores Técnicos, Pintores y Escultores e a defesa, em Dezembro de 1923, do seu manifesto político -, na gramática dominante de todo o muralismo, sobretudo evidente na prática de composições vívidas e dinâmicas, de grande aparato. Estas obedecem, no início da década, à conciliação da tradição artística europeia, e ainda da sua influência moderna, no princípio narrativo de uma transmissão de valores patrióticos e fundacionais, assumindo depois, como nos trabalhos de Rivera a partir de 1924/25 e de Siqueiros já nos anos 30 e 40, um discurso mais abertamente socialista e doutrinário, com recurso à representação de bandeiras vermelhas, foices e martelos, palavras de ordem ou gestos de revolta.[1] Mas já na “Declaração social, política y estética” do novo sindicato podia ler-se o tom marxista e anti burguês que está na origem do seu programa:

 

Repudiamos el llamado arte de caballete e todo arte que procede de círculos ultraintelectuales, pues esencialmente aristocráticos. Saudamos lá expresión monumental del arte porque tal arte es propriedadeadead pública.Proclamamos que no momento da transición social de um orden decrépito a um orden Nuevo los creadores de belleza deben dedicar sus mayores esfuerzos al propósito de realizar uma arte válida para o povo, e que nuestro supremo objetivo na arte, que hoy es algo para el placer individual, consiste em criar belleza para todos, belleza que ilumine y anime la lucha.[2]

 

Porém, o momento em que Rivera experimenta o modelo da pintura mural na sua plenitude é aquele que funda a estabilização desse programa político e educativo de expressão estratégica, assente no seu carácter simultaneamente revolucionário e nacionalista, iniciado nos alvores dos anos 20 mas que receberá, justamente, no final dessa década, em 1929, as paredes do Palácio do Governo para a realização da imagem sintética e especular de uma nação em busca da sua unidade, do seu lugar no mundo. Refira-se todavia que a pedagogia da nova e ambiciosa mensagem política não condicionou nunca a qualificação estética do desafio e esse é o maior legado dos frescos do Palacio Nacional, pois a obra de Rivera formula com profundidade uma análise da condição moderna no seu aparato deduzido entre realismo e transcendência. Marcada pela obsessiva figuração dos protagonistas políticos e do seu lugar na narrativa nacional, Epopeia do Povo Mexicano ou “História do México” revela contudo, de uma forma inédita, o lugar privilegiado do povo anónimo no processo de construção dessa identidade comum. O povo surge aí não apenas como contraponto à distinção individual das chamadas figuras históricas, mas também enquanto entidade possuidora de uma energia inabalável (dos indígenas resistentes à massa trabalhadora) que ocupa finalmente um lugar de destaque nesse imaginário coletivo, para mais “perpetuado” de modo quase barroco nas paredes, elas próprias históricas, do palácio governamental.

Na verdade, a localização desses frescos não é um dado despiciendo. Pelo contrário, devemos notar que este é um dos edifícios institucionais mais influentes na história do país. Situado no centro político, no coração da Cidade do México, sobre os escombros de Tenochtitlán – a capital asteca destruída pelas forças militares de Hernán Cortés – o Palacio Nacional, onde Rivera reabilita a imagem do passado pré-hispânico do seu povo, ligando-o a todas as fases da história do território mexicano ao figurar as mais concentradas personagens desse canto patriótico, não apenas ocupa o mesmo sítio como, diz a lenda, foi erguido em grande parte com as pedras do antigo palácio do imperador Moctezuma II [3]. A essa “reunificação” física e simbólica, de pertença ou partilha comum, estão ligados, de modo inequívoco, o edifício e o lugar da sua construção, agora valorizados, sob a ótica de Rivera, na ideia sobretudo mítica de reconciliação, aceitando o contributo de todos, conquistadores e nativos, para a idiossincrasia de uma nação, rumo ao futuro. Relembremos que, já como Palácio Nacional, essas paredes viram chegar, muito antes das histórias nelas pintadas, todos os responsáveis políticos e religiosos do Vice-reinado da Nova Espanha, aí se fixando a instituição do poder de Madrid até à independência do México, permanecendo até aos nossos dias como sede oficial do poder executivo, nomeadamente os gabinetes do Presidente e do Ministro das Finanças.

Desde os primórdios da presença espanhola, a importância decisiva do Palácio Nacional na vida e no governo deste território converteu-o num lugar mítico, sítio de romaria do poder político no passado (e ainda hoje) e de turismo cultural no presente. Ocupando toda a parte leste da majestosa Plaza de la Constituición, forma um dos lados do centro administrativo chamado pelos mexicanos de “Zócalo”. A sua última grande reforma aconteceu na década de 1930, com mudanças significativas das fachadas e incorporação de um terceiro pavimento “neocolonial” à estrutura barroca dos séculos XVII e XVIII.

Mas o lugar e as paredes que hoje nos tocam os sentidos, mesmo quando desconhecemos aspetos essenciais da história mexicana, só formam um conjunto de expressão artística universal porque houve uma transformação política decisiva no país do agave, do mezcal e da tequila. A energia da Revolução de 1910 chamou a atenção do mundo. Francisco “Pancho” Villa e Emiliano Zapata abalaram os poderes instituídos, com o eco da movimentação revolucionária a assustar os Estados Unidos da América. No período pós-revolucionário, o novo ambiente político representava uma esperança em torno da reorganização do país e da sociedade, chamando de volta da Europa alguns dos melhores artistas mexicanos, nascidos e educados nas escolas de Belas Artes e nas Academias das suas principais cidades, para uma intervenção de largo espectro na imagética desse novo momento histórico. Num sentido mais amplo e continuado, o compromisso entre arte e revolução terá tido no México os melhores resultados de todo o século XX, pondo em perspetiva a reduzida influência do Construtivismo na Rússia Comunista de Estaline, ou mesmo a repercussão social da Bauhaus na República de Weimar. Não isenta de controvérsia ou contestação, podemos afirmar que, ainda hoje, no México, a arte associada ao período pós-revolucionário persiste na clareza da sua própria antítese, constituindo um legado “ativo” no plano identitário, produto dessa primeira e mais abrangente afirmação patriótica e nacional, à qual continua umbilicalmente ligada, mesmo perante a falência de todos os projetos políticos que a determinaram, a grande maioria do povo mexicano.

 

No princípio era a Revolução, logo depois o Muralismo.

Recordemos a célebre máxima de Octavio Paz: «A Revolução revelou-nos o México, ou melhor, deu-nos olhos para ver. E deu olhos aos pintores»[4]. Nesta frase retrospetiva, que junta de modo poético “revolução” e “revelação”, concentra-se o horizonte e a mitologia criada em torno da revolução mexicana, esse processo violento e tumultuoso que abalou o mundo ocidental na década de 1910, promovendo ao mesmo tempo um dos mais vastos empreendimentos artísticos de autodescobrimento nacional. Na verdade, só com a revolução em marcha foi possível espoletar a autoconsciência de um povo e o projeto, apesar de mitificado, da identidade de um país. Associadas ao processo revolucionário, inspirado na transformação ou mobilidade social dos oprimidos, perfilaram-se desde aí as condições necessárias para o desenvolvimento de uma cultura nacional ancorada no seu verdadeiro enraizamento territorial, isto é, na matriz nativista ou indigenista da grande maioria da população mexicana, então dominada e praticamente ignorada pelas elites de origem hispânica. Apesar de os descendentes desta elite continuarem a manter em grande medida o seu poder nos nossos dias, a revolução que rompeu com o século XX trouxe na verdade um novo sentimento, uma nova conceção da ideia de povo, considerado finalmente enquanto elemento constituinte, indistinguível da imagem e da substância de uma nação. Por isso, ao nacionalismo de expressão pós-hispânica do século XIX sucedeu no início de Novecentos um novo nacionalismo mais atento à diversidade dos seus povos e regiões, impregnado de uma valorização, plena de entusiasmo e descoberta, das origens pré-colombianas da grei mexicana, da sua especificidade identitária, em particular nos seus aspetos culturais linguísticos e etnográficos.

O esplendor e a proliferação dos murais de Rivera, Orozco e Siqueiros, mas também de Jean Charlot, Xavier Guerrero, Fernando Leal, Roberto Montenegro, Dr. Atl (Gerardo Murillo), Francisco Goitia, Juan O’Gorman, Ramón Alva de la Canal, Fermín Revueltas, Carlos Mérida, Emílio García Cahero, Amado de la Cueva, Rufino Tamayo, José Gonzáles Camarena e José Chávez Morado, produzidos em grande número por todo o território do México, beneficiaram não apenas desse novo ímpeto nacionalista de teor progressista, como sobretudo da perspetiva política e cultural de José Vasconcelos (escritor, filósofo e presidente da Universidade do México), nomeado ministro da nova Secretaria de Educación Publica, em 1921, por Álvaro Obregón, esse militar e político revolucionário que após sangrentas lutas intestinas, se converteu no primeiro Presidente da República – fundador do Partido Laborista Mexicano – a chegar ao poder de uma forma consequente (após a derrota da herança ditatorial de Porfírio Diaz e das reminiscências caudilhistas presentes nos Partidos Convencionalista e Liberal Constitucionalista), num período pós-revolucionário ainda bastante conturbado mas marcado já por alguma esperança político-social, baseada num programa laico e progressista. José Vasconcelos será assim o ideólogo de uma política cultural de expressão moderna, capaz de impulsionar o desenvolvimento da educação no novo país saído da Revolução, consciente todavia do valor essencial do seu plano: «No hago historia; intento crear un mito» [5]. Inspirado por conceitos pitagóricos e uma crença inabalável no positivismo de Auguste Comte, Vasconcelos possuía a convicção de que o povo mexicano estaria mais disponível para o seu ideário se visualmente fosse alimentado por mensagens fortes e diretas sobre o novo destino do país [6]. Vários foram os artistas e professores de belas artes, como Dr. Atl, que no início do século instavam já a uma forte associação entre a arquitetura e a pintura mural, ao mesmo tempo que reclamavam uma ancestral ligação entre a decoração monumental de edifícios e as civilizações pré-hispânicas[7]. Por isso, Vasconcelos acreditava ser a formação através das artes visuais potencialmente mais eficaz em termos sociais, ao implementar a coordenação de um amplo programa de intervenção muralista em diversas cidades do país, desenhando assim uma ponte intemporal nesse âmbito de comunicação aparentemente comum entre os povos que ergueram o passado da região. José Vasconcelos estava empenhado em criar um rápido impacto com essa estratégia, deixando aos artistas a definição estética (realista, clássica ou mais expressionista) e o género (sátira, alegoria, história) que emprestavam aos murais desse período fundamental. Apesar disso, não deixou de os motivar a procurarem as raízes da sua cultura comum, identificada em termos genéricos com o legado das civilizações pré-colombianas, sem esquecer, porém, o contributo decisivo da experiência colonial espanhola, ligada à tradição artística europeia, do Renascimento ao modernismo.

Recordemos que, após as experiências de vanguarda aprofundadas durante o período de catorze anos de estadia na Europa, Rivera regressa ao México em 1921, com 34 anos, já com a Revolução consolidada. Ainda nesse ano, junto com Siqueiros, elabora um manifesto charneira, intitulado La Llamada a los Artistas de América. Aí defendem pela primeira vez a necessidade de produção de uma arte monumental, retomando de modo consciente a longa tradição das grandes obras de pintura mural realizadas pelos antigos povos Maia e Asteca. Esse texto constituirá uma das fontes essenciais ao manifesto de 1922 assumido na criação do Sindicato de Trabalhadores Técnicos, Pintores e Escultores do México, definindo assim o arranque programático do muralismo moderno [8].

Em 1922-23, Rivera realiza os primeiros murais (em edifícios públicos) com intenção didática de defesa da Revolução e educação do povo. O primeiro tema será no entanto a criação, plasmado pela encaustica no anfiteatro Bolivar da Escola Nacional Preparatória (ex-Colégio San Ildefonso) na Cidade do México. Ao apresentar uma figuração mais etérea e hierática, estilizada ainda sob uma clássica influência europeia, em parte neorrenascentista mas também de expressão espiritual simbolista, será o próprio José Vasconcelos a “doutrinar” Rivera em direção às raízes pré-colombianas do seu país, levando-o ao Templo Maia dos Jaguares, de Chichén Itzá, no Yucatán, e onde este assimilará finalmente a iconografia das origens indígenas, através não só das esculturas e altos-relevos observados nas cidades antigas em ruína, como ainda na prática etnográfica das tribos suas descendentes.

Já marcado por essa alteração de linguagem formal e iconográfica, Diego Rivera trabalha incansavelmente, entre 1923 e 1928, em simultâneo, nos frescos da Secretaria de Educación Publica (na capital do Distrito Federal), sintomaticamente intitulados Visão Política do Povo Mexicano, assim como nos tetos da capela e nas paredes da reitoria da Escola Nacional de Agricultura da Universidade Autónoma, em Chapingo. Nos primeiros, resulta evidente, no chamado Pátio do Trabalho, a laboriosa simetria em torno da temática dos ofícios (na metalurgia, cerâmica e nas “tinte telas”, isto é, as “tint”), enquanto no Pátio das Festas observa-se o registo dos mercados, das festividades (do milho) e das tradições (as oferendas no dia dos mortos). Nessas vigorosas pinturas de amplo registo histórico e cultural, Rivera integra e interage ainda com a arquitetura, pintando, por exemplo, personagens populares sentadas de costas para o observador sobre os lintéis do edifício, alcançando desse modo uma envolvente presença figural, que converte em aliadas as particularidades funcionais do espaço arquitetónico. Por outro lado, o âmbito telúrico que identificamos nas origens pré-hispânicas do povo mexicano, resulta aqui pela primeira vez na expressão de uma figuração mais tarde presente também no Palácio Nacional, nos trabalhos de reorganização iconográfica sobre a grande epopeia da nação mexicana. Já em Chapingo, em particular no ciclo Canción de la Tierra y de Aquellos Que la Cultivan y la Liberan (realizado entre 1924 e o ano seguinte), observamos um conjunto de tetos e murais que destacam o ato da criação mas também o progresso da humanidade, na união da natureza e da sociedade, entre operários, soldados e camponeses, ou entre as civilizações pré-colombianas, colonizadores espanhóis e comunidades índias contemporâneas. Na decoração da capela, refira-se o facto de Rivera apresentar muitas das suas figuras em perspetiva ascensional sobre o observador, afinal comum à estética maneirista e barroca na representação dos céus divinos, apreendida decerto nas visitas a Itália. Aliás, podemos adivinhar igualmente em muitas dessas figuras uma certa ousadia em relação ao mimetismo do corpo, nesse jogo de sapiência e ilusionismo, revelação e ocultação, como nos genitais cobertos por ímpios panejamentos, trazendo à memória as mitologias sensuais (quase eróticas) da Sala da Psique pintadas de modo maneirista por Giulio Romano no Palazzo de Te, em Mântua.

Após essas duas experiências distintas mas extraordinárias no que diz respeito às potencialidades da figuração para acentuar uma estratégia de expressão narrativa mural, Rivera estará preparado para o ambicioso projeto de fazer subir às paredes do Palácio Nacional a história do seu país, num amplo mosaico de retratos (desde as figuras políticas determinantes ao povo anónimo) que, finalmente juntos, ajudaram a definir uma visão e, ao mesmo tempo, um “inconsciente coletivo” que só o espaço público mais decisivo do México estaria pronto a revelar. Para Diego Rivera será essa capacidade de integração da pintura na arquitetura a catapultar o muralismo moderno como poderosa manifestação artística e social, pois possui a vocação de unir o indivíduo ao coletivo, identificando-o e desafiando-o ao mesmo tempo. Tal como nas suas próprias palavras

 

[…] um verdadeiro mural é uma construção de formas e cores que atuam em completa harmonia para criar um trabalho integrado. À medida que as construções urbanas aumentam diariamente de tamanho para acomodar o trabalho de um número maior de pessoas, as pinturas e esculturas nelas se tornam cada vez mais úteis – não apenas por serem esteticamente agradáveis, mas também por desenvolverem a sensibilidade e a capacidade de desfrutar a ideia de comunidade como um todo.[9]

 

Já em 1931, após interromper as paredes do “Palacio Nacional” realizadas no período de 1929-30, Rivera viaja para os Estados Unidos e executa novos conjuntos murais, nomeadamente em São Francisco – pintando Allegory of California no Luncheon Club (hoje San Francisco City Club), também no Institut of Art, com esse impactante e autorreferencial The Making a Fresco (La Construción de un Fresco) – e, logo depois, no Detroit Institute of Arts, a convite de Edsel B. Ford, onde retrata, entre 1932-33, o trabalho na Fábrica de River Rouge da Ford Motor Company. Alguns deles deixados inacabados, em todos se revela uma ampla mas perturbadora harmonia formal entre trabalhadores e maquinaria, um preenchimento figurativo de excecional expressão e envolvimento não só ao nível da grande escala dessas pinturas, como no que diz respeito à sugestão social e à consciência transformadora resultante da observação quase panóptica dessa fusão entre homem e máquina. Esse é também o ano em que Alfred Barr Jr. convida Rivera para realizar uma exposição individual antológica no recentemente criado Museum of Modern Art de Nova Iorque, o MoMA[10]. Aí, o artista mexicano apresenta obras do seu período cubista e um novo conceito de produção ao nível da pintura de grande escala: os “murais transportáveis”, pretendendo assim mostrar às elites norte-americanas o potencial técnico e a plasticidade específica da pintura mural. Na sequência do seu êxito crescente na América do «New Deal», responde ao desafio de fazer, em 1933, os murais da receção do «Rockefeller Center», que iniciariam, inesperadamente, mas por iniciativa deliberada de Rivera, um processo de radicalização entre artista e encomendador, ao serem destruídos perante a censura da presença de uma figuração revolucionária marxista (retratos de Lenine e Emiliano Zapata) e ainda da representação depreciativa do próprio Rockefeller, figurado entre prostitutas, o que terá contribuído de modo decisivo para a rutura do acordo inicial. Entre Abril e Maio desse ano, rebenta o escândalo na imprensa americana, com manifestações pró e contra a decisão, em frente à sede do império Rockefeller. Rivera havia sido alvo de uma censura com consequências imediatas, convertendo-o num artista proscrito em terras do Tio Sam, depois de ter acusado essa destruição integral e definitiva, concretizada em Fevereiro de 1934, de “vandalismo cultural”. Mas a contenda teria ainda um derradeiro episódio. Logo que soube da destruição do seu trabalho, Rivera volta a pintar, em mural transportável, a partir de fotografias e dos esboços que havia elaborado em Nova Iorque, uma réplica quase exata desse célebre painel, que ainda hoje pode ser observada no Palacio Nacional de Bellas Artes da Cidade do México. O título desse mural, El Hombre Controlador del Universo, assumia-se afinal como paradigma do momento histórico, espelho de uma época alinhada no conflito ideológico entre o internacionalismo da utopia socialista e a ameaça crescente dos nacionalismos da direita fascista ou autoritária. Por isso, a sua temática acentuava, na figuração realista estilizada por Rivera com recurso a algumas experiências expressionistas, a provocação política de marchas comunistas, mas também uma união figurativa entre povos, etnias e classes sociais. Concentrava-se aí toda a esperança progressista nos destinos de uma humanidade inspirada pelo cientificismo e pelo espírito revolucionário e transformador da ideologia comunista. O que diferencia porém estes trabalhos pictóricos de grande escala relativamente aos murais chineses ou soviéticos associados ao ideário revolucionário é a qualificação estética e artística da sua execução (que nos lembra rapidamente a magnitude e a substância cultural dos murais renascentistas), onde o didático não é manipulado por uma visão puramente panfletária, revelando antes a contraditória profundidade do ser humano (ímpeto, força, convicção, descrença e fragilidade), sempre imbuído ao mesmo tempo de um grande alento humanista na sua capacidade de comunicação narrativa, ainda hoje muito apreciadas, não apenas por mexicanos (afinal retratados na sua identidade coletiva) mas igualmente por estrangeiros atraídos pela sua frontalidade impactante ou pela “harmonia dinâmica”, inquieta ou em desequilíbrio da solução estético-formal, por contraste com a “harmonia estática”, idealizada e academizante do realismo socialista e sino-soviético.

A execução inicial dos murais de Rivera obedece às potencialidades do fresco e da encáustica. O apurado domínio dessas técnicas permite-lhe alcançar uma vitalidade e desenvoltura formais que o convertem rapidamente numa das principais referências de todo o século XX. O fresco ganhará a preferência do artista e a maioria dos seus trabalhos para o espaço público garante a sua propriedade e desenvolvimento, destacando-se assim na tradição mural desse período. A sua linguagem estética, baseada por sua vez numa peculiar figuração narrativa de tradição europeia, afirma-se desde os primeiros trabalhos no propósito e ambição de uma comunicação semiótica direta, de teor artístico universal, que procura integrar também referências iconográficas da tradição mesoamericana. Já distante das experiências do cubismo, mas de algum modo capaz de associar, como vimos, um certo sentido expressionista e até pós-dada (George Grosz) à figuração de grande escala tomada do esplendor renascentista italiano, Rivera atende a uma pluralidade de influências modernas, nas quais introduz sempre uma perspetiva particular, rumo a um Novo Realismo de enquadramento social, acentuado pelo desejo de falar a todos os públicos, mais ou menos familiarizados com as dinâmicas da história da arte. No que diz respeito à influência em Rivera da pintura moderna observada na Europa desses anos, refira-se que, para além de Grosz, Max Beckmann e Otto Dix (isto é, a «Nova Objetividade» de Weimar, ainda que sem o seu sentido crítico ou sarcasmo radical), é possível identificar igualmente a presença de Paul Gauguin, em especial a sua pintura do Pacífico, nesse cromatismo vivo, languido e contrastante, de contornos grossos, que podemos reconhecer no mural políptico intitulado Rio Juchitán, realizado em mosaico por Rivera, entre 1953-55, para decorar o jardim da casa do produtor de cinema mexicano Santiago Reachi, em Cuernavaca (depois transferido para o Hotel do México, na capital), e hoje pertencente à coleção do Museu Soumaya. Mas se estes são alguns dos traços “europeus” de Rivera, em Orozco compreendemos, a esse nível, a presença de um certo simbolismo quase religioso, rasgado também pela sugestão expressionista e o aparato barroco, em pinturas mais atentas ao pathos ou à dor coletiva e, por isso, menos celebratórias, enquanto em Siqueiros há uma vigorosa aproximação ao Expressionismo alemão do grupo Der Blau Reiter ou mesmo, paradoxalmente, à energia combativa do Futurismo, traduzida em pinturas de forte politização transformadora. Nesta medida, devemos entender o contributo do muralismo à modernidade e ao Realismo Social da primeira metade do século XX como um projeto estético complexo, devedor não apenas da inspiração política marxista, como de algumas raízes nacionais e locais (iconográficas, mas sobretudo temáticas), associadas sempre à explosão de criatividade vanguardista que o Modernismo europeu (figurativo ou narrativo, de diferentes polos políticos) promovera indelevelmente junto dessa geração de artistas mexicanos. Quase todos comprometidos, de modo único, com a rutura artística do seu tempo e o plano de “evangelização” democrática saído da Revolução.

Os murais constituíam assim, necessariamente, uma aposta clara na comunicação de uma iconografia ideológica dirigida ao grande público, assente no exercício da pintura como veículo de um amplo conteúdo social, (identitário, coletivo e político). É curioso verificar que, tal como de certo modo em Portugal[11], a estratégia internacionalista do comunismo político no México nunca deixou de se apoiar na causa nacionalista (ungida numa matriz intervencionista de esquerda), onde convivem valores morais que acentuam uma necessidade paralela: por um lado, ajudar à consciencialização de uma identidade nacional e, nessa mesma medida, nela encontrar a raiz de uma união ou solidariedade social de carácter transversal; por outro, criar as condições de intervenção para aí realizar a revolução comunista, essa estratégia de tomada de poder pelos trabalhadores que, na época, prometia abraçar, imparável, todas as latitudes do mundo.

Durante o período de maior envolvimento com a causa comunista, Rivera procurou contrariar os efeitos mais perversos da pintura de cavalete, considerada pelos artistas marxistas como uma disciplina produtora de artefactos transacionáveis, expressão requintada do materialismo burguês, isto é, a pintura entendida sobretudo enquanto experiência individual e mercadoria, associada assim à especulação financeira, o motor do capitalismo. Apesar disso, Rivera continuou a produzir pintura em tela, em particular retratos de amigos e alguns outros protagonistas da sociedade mexicana, como resultado de encomendas, e ainda imagens de atenta leitura sobre os gestos quotidianos do povo indígena. Por isso, para além da persistência na narrativa histórica nacional de registo mural, Rivera revela, igualmente, nesses formatos mais modestos (inclusive no desenho de ilustração[12]), uma poética singularíssima em relação às raízes populares da sociedade mexicana, à sua etnografia, festividades e vestígios arqueológicos (sendo aliás um grande colecionador, com Frida Kahlo, de peças pré-colombianas, que mais tarde constituirão o acervo principal do Museu Anahuacalli), valorizando desse modo a diversidade identitária do seu país, na exploração de contrastes temáticos, por vezes alegóricos ou mitológicos, assim como técnicos, materiais e de composição, isto é, ao nível estilístico, formal e cromático. Sublinhe-se ainda que, a par das encomendas oficiais, públicas e privadas, Rivera nunca abandonou ou deixou de se rever na pintura de cavalete, assumindo-se, apesar do maior impacto do seu período marxista, como um pintor complexo e eclético, de forte personalidade. Sem se preocupar com as consequências, foi frequentemente acusado de sancionar uma sensibilidade poética de profunda sedução estética, mais baseada em qualidades formais do que em conotações ideológicas. Nesse contexto, realizou inúmeras pinturas de pequena escala, onde se manifesta a paradoxalidade de uma visão intimista e envolvente, por oposição às grandes causas públicas e coletivas, trabalhadas na escala monumental do exercício muralista.

O jogo desse paradoxo de intenções, mas também de expressões concretas, tivera início ainda durante o seu segundo período de permanência na Europa, quando Rivera entra em contacto com as teses de Élie Faure, nas quais o médico e historiador de arte francês associa o crescimento do individualismo à pintura de cavalete, assim como a subjugação desta e da escultura ao predomínio da arquitectura, identificada como símbolo não apenas da autoridade e do poder coletivo das sociedades, mas também enquanto elemento capaz de produzir a integração simultânea das artes (aplicadas) e, desse modo, uma observação que a todos inclui nesse processo de representação e receção artística, onde prevalece uma leitura específica de conteúdos sociais. Daí que, com o auxílio e a influência de David Alfaro Siqueiros – que fora a Paris para o convencer da urgência de uma arte pública no México pós-revolucionário – tenha crescido em Rivera a ideia de abandonar as experiências formais cubistas e regressar ao carácter universalista da pintura figurativa. Nessa medida, o período no qual visita Itália será decisivo para uma reinterpretação da arte renascentista, destacando a sua expressão mural, em referência aos frescos de catedrais, igrejas e palácios, expoentes da comunicação pictórica em larga escala, elevando ao mesmo tempo a qualidade estética dessas grandes imagens parietais, síntese dos objetivos que o artista ambicionava para uma arte comprometida com a orientação educativa, com a instrução cívica de um povo refundado afinal no espírito ou na ideia mítica de uma revolução política. Por isso, no desenvolvimento da figuração monumentalista dos seus murais para o Palácio Nacional, Diego Rivera parece associar duas referências centrais da pintura medieval e renascentista italiana, em particular no discurso do “muro poniente”, apoiando-se na grandeza poética e proto-renascentista dos frescos azulares de Giotto para a Cappella dei Scrovegni, em Pádua, ou nos inúmeros painéis da Basílica de São Francisco de Assis, situada na colina dessa pequena cidade da Úmbria. De outro modo, a história visual do México que Rivera pinta nessa parede central do Palácio recorre aos aspetos dinâmicos de lanças e gestos de conflito ou sobrevivência tomados de diversos trabalhos de Paolo Uccello e resolvidos no desenvolvimento dessa temática que une os primeiros anos da conquista ou do período da reforma espanhola à independência da nação mexicana, em 1810. Rivera expõe aí, desde logo, a expressão do sofrimento quase sublime e seguramente heroico dos nativos indígenas às mãos de conquistadores sem freio.

Na verdade, a atenção à temática da representação indígena não começa com a pintura mural pós-revolucionária, mas nela se constitui, pela primeira vez, como expressão não acomodada à visão colonialista, traduzindo finalmente uma centralidade nova e um carácter simultaneamente poético e reivindicativo do papel social das comunidades indígenas, assim como do seu passado e tradições[13]. Não por acaso, o artista deteve o seu olhar sobre a cultura dos povos originários, das civilizações autóctones cuja identidade conhecia não apenas na perspetiva ritualista e mítica, mas igualmente no sortilégio da sua possível integração na sociedade mexicana, a partir da atenta observação das suas práticas quotidianas. Daí, Rivera parte para a valorização do papel da mestiçagem na construção do México real, nessa dialética de vida, amor e ódio entre europeus e indígenas. Sobre esta matéria, tão complexa quanto decisiva, recordemos como a importância da mestiçagem para o perfil atual da chamada América Latina é um dos temas centrais na análise de Néstor García Canclini. Em Culturas Híbridas, o antropólogo argentino defende as “intersecções” entre as diferentes culturas, estabelecendo como objeto de estudo em ciências sociais esses cruzamentos, fusões, conflitos e contradições.[14] Canclini fala dos conceitos de “diferença”, como definido em antropologia, de “desigualdade”, na ótica da sociologia, e de “conexão-desconexão”, usado na teoria da comunicação. Essas são diferentes formas de ver e analisar a organização social, mas que não precisam nem devem autoexcluir-se, já que mesmo na ausência de diferenças pode haver desigualdade e, mesmo numa sociedade tendencialmente igualitária, não deixam de existir problemas de comunicação. Esta perspetiva teórica de expressão pós-moderna pode ajudar-nos a compreender como, apesar de promovido pela motivação revolucionária e a sua identidade em meados do século XX, Diego Rivera projeta nos seus murais do Palácio Nacional uma ideia de interação e interdependência híbrida (concentrada na própria afirmação natural da mestiçagem) entre os diferentes povos protagonistas na construção do México moderno, mesmo se os descendentes dessa mestiçagem não possuem ainda hoje verdadeiras oportunidades de alcançar os principais lugares do poder político e social.
O prodigioso elogio do nativismo teve no entanto interpretações diferentes entre os muralistas empenhados em reabilitar as culturas indígenas. De um modo geral, os temas nativistas são assumidos, a partir dos anos 30, tanto em murais como na pintura de cavalete, em termos de protesto social, sobretudo em Siqueiros (com Mãe Proletária, de 1930, ou mesmo Etnografia, de 1939), mas também em Orozco e nos “gravadores” do Taller de Gráfica Popular (de José Guadalupe Posada a Leopoldo Méndez, Pablo O’Higgins e Luis Arenal), enquanto em Rivera, a atenção à cultura nativa, em particular os seus gestos de espiritualidade festiva e religiosa, ou as suas práticas rudimentares de comércio e sobrevivência, como em Dia de Flores (1925), é pictoralizada compreendendo sobretudo a harmonia da combinação cromática e a simetria da composição formal, tornando poética qualquer espécie de reivindicação ou protesto. Ainda a propósito da temática nativista, refira-se que Jean Charlot havia já realizado alguns anos antes, em 1922, na escadaria principal da Escola Nacional Preparatória, as primeiras imagens sobre o flagelo do colonialismo e da sua violência militar, assumindo porém – em parte como Fernando Leal na parede oposta – uma inefável elegância estética nesse mural intitulado La Caída de Tenochtitlán (também conhecido como Masacre en el Templo Mayor), nitidamente inspirado na Batalha de São Romano (1438-40) de Uccello, e conciliando em tom clássico, ele próprio quase renascentista, a dinâmica ascensional da escadaria com o sentido geometrizante dessas lanças de forte cromatismo laranja, dispostas em leque e apontadas a emplumados sacerdotes indígenas por cavaleiros de armaduras, montando esses esbeltos equus ferus que gozam, afinal, um inesperado protagonismo nessa pintura. Porém, será Rivera a levar mais longe a expressão pictórica, no seu caso mais realista ou mesmo expressionista, dessa conflitualidade atroz, marcante de modo decisivo na história mexicana, e cujas repercussões são sentidas ainda nos nossos dias, por exemplo, ao nível da desigualdade social, da diminuta integração e participação cidadã indígena na construção do México contemporâneo, apesar das esperanças progressistas anunciadas na intervenção muralista do século XX. Remanescente das suas múltiplas leituras de teor político, o Realismo de conteúdo social em Rivera não inviabiliza o sentimento profundo de apreendermos igualmente uma nova espécie de sofisticação visual, na revivescência deliberada desses murais que contam nas suas cores e nas suas formas uma história plural, de sangue e sofrimento, mas também de conquistas e progressos nessa intensa galeria de figuras retratadas como rostos de uma nação. Rivera detém-se aí em sobressalto e assume a primordialidade de uma pintura que domina o espaço, tudo absorvendo. Nela ecoam, aos nossos olhos, os murmúrios de um povo e da sua superação. Uma densidade única opera ao mesmo tempo toda a sua assertividade, quando o artista risca o desenho e preenche de cor os planos mágicos e abertos ao mundo dessas paredes “cegas”. Apesar de nelas não haver janelas concretas, é como se, perante toda essa planaridade escura, se abrisse finalmente uma janela (pictórica) onde se vislumbra a mais forte luz de uma esperança teleológica, assente no desejo de fazer deflagrar a pulsão da liberdade no projeto de construção de uma sociedade sem classes, ideal comum a parte significativa dos muralistas mexicanos.

No cubo da escadaria do pátio central, os efeitos contrastantes não contam como dissonâncias inesperadas mas como ligações incontornáveis, traduzidas nessas numerosas expressões figurais, quase sempre em grupo, que se acumulam na sua expressiva frontalidade e presença, e nas quais observamos um dramático choque de culturas, desde as civilizações autóctones (totonacas e mixecas-astecas) ao período colonial hispânico, culminando depois com o momento da independência do México. Nele Rivera situa a matriz de miscigenação que supostamente institui o espírito nacionalista mexicano.
Nos murais do corredor norte do piso 1 desse Palácio do Governo, Rivera plasma panorâmicas que nos elucidam sobre o apurado desenvolvimento urbano e social das civilizações pré-hispânicas que há vários séculos habitavam o território da América Central, atualmente definido pelas fronteiras do México. Acentuando uma harmonia social certamente exacerbada, o artista procurou dar testemunho da riqueza material e cultural da civilização asteca que o poder espanhol viria a encontrar e destruir.

Por outro lado, é preciso sublinhar que, nos claustros do Palácio Nacional, Rivera trabalhou de modo intermitente, entre 1929-1951, intercalando sempre com outros trabalhos no México e nos Estados Unidos da América. Na casa histórica da governação, ele irá contudo realizar a – por muitos considerada – sua obra mais comprometida com os desígnios políticos da nação mexicana, elaborando grandes murais localizados quer nas paredes do segundo pavimento, como no pátio central e nas escadarias principais (Escalera de la Imperatriz), desde logo chamando a atenção a qualquer observador a dimensão das composições, bem como a sua narrativa identitária, complexa e plural, porém aí deliberadamente politizada.

O conjunto da escadaria principal, o primeiro a ser pintado entre 1929 e 1935, sob o título de Epopeia do Povo Mexicano, pode assim ser visto como um “tríptico”, com o seu prólogo (a Lenda de Quetzalcoatl), o tema central (a História do México, com a fundação de Tenechtitlán em 1325; a conquista espanhola em 1521; a era colonial; a independência em 1821; a invasão do México pelos EUA; a reforma das leis de 1857-60; a ocupação francesa de 1862 e a Revolução Mexicana de 1910) e o epílogo (a Luta de Classes, isto é, o México de Hoje e de Amanhã). Já os painéis murais de leitura frontal, dispostos no corredor do segundo piso e ao redor do pátio interno, foram pintados entre 1942 e 1951, com múltiplas interrupções e nunca completamente finalizados. Com técnicas diversificadas entre si, abordam principalmente as culturas pré-colombianas, terminando com a chegada de Hernán Cortés, retratado de maneira caricata, corcunda e sifilítico.

Mas quais são, afinal, as personagens plasmadas na pintura mural da grande escadaria? Na parede da direita, no sentido ascensional, centraliza-se a figura mítica do grande líder Quetzalcoatl e o Antigo Mundo indígena, numa narrativa que nos envolve e informa sobre a tessitura social asteca. Em frente, mas mais acima, destaca-se Emiliano Zapata e as imagens da guerrilha; assim como um monge gordo; o Arcebispo Labastida; o ditador Antonio Lopez de Santa Anna, o ultra-conservador General Miguel Miramón, o liberal Benito Juárez e as Leyes de Reforma da Constituição de 1857 que separam pela primeira vez os poderes da Igreja e do Estado; o advogado e ministro José María Iglésias, os Generais defensores da Reforma, Mariano Escobedo e Miguel Negrete; a ocupação Francesa, a resistência heroica de Ignacio Zaragoza e “os melhores filhos do México” até à execução do Arquiduque Maximiliano de Habsburgo (em 1867); ainda a guerra ou a invasão do México pelos Estados Unidos da América (1847), simbolizada pela presença da águia imperial, mas também com a presença heroica do “insurgente” Nicolás Bravo e os cadetes do Colégio Militar; por fim, entre muitos outros personagens históricos, observamos uma referência à Inquisição, com a abordagem de vários episódios de dominação, abuso e violência. Na parede da esquerda, vemos a política mexicana dos anos 30 e o anúncio do futuro de luta comunista, tutelada, no topo desse mural pleno de conflito verbal e social, pela figura de Karl Marx.

Outro aspeto importante prende-se com o facto de o Estado mexicano, não sendo comunista após o período da Revolução mas socialista (laborista) com ligações ao sindicalismo, adotar lentamente, não isenta de conflito e de modo informal, a estética do Realismo Social como estilo mais adequado ao seu projeto formativo, priorizando uma política de produção imagética no espaço público onde a pintura muralista se assumirá como veículo essencial de comunicação, dirigida ao grande público, isto é, disponível a todos os mexicanos, independentemente dos seus hábitos culturais. Na verdade, seja no Palácio Nacional, na Escola Nacional de Agricultura, no antigo Colégio Ildefonso ou na Secretaria de Educação Pública, a prática do muralismo está destinada a comunicar uma imagem de pertença e identidade coletiva nos grandes edifícios públicos da nação, criando um vínculo didático e pedagógico acessível a todos os que, por razões práticas e quotidianas, circulam nesses espaços.

Por outro lado, o próprio dispositivo dessa visualidade mural escancara uma ideia de construção, na demora associada à edificação, ao processo da arquitetura do espaço e do lugar. Exemplo maior desse protocolo é a presença necessária dos andaimes (símbolo do trabalho manual e da construção do edificado) que fazem subir à parede essas narrativas pintadas a fresco. Em toda a superfície parietal observamos assim um exercício demorado pela prática simultânea do desenho e da pintura e ainda da temporalidade dessa escala imensa que significa a sua aplicação às paredes de um edifício público, isto é, de grande dimensão física e simbólica, expressão de poder e autoridade, de organização social e coletiva. Refira-se ainda que o trabalho dos pintores muralistas, realizado por entre subidas e descidas de andaimes que exigiam esforço e o consequente desgaste corporal, associa a este exercício particular de pintura uma ideia de trabalho também operário, de grande intensidade e dedicação física, o que os aproximava em parte daqueles que evocavam e pretendiam homenagear. Nessa medida, o trabalho muralista traduz ao mesmo tempo uma vontade de transformação social, afirmando-se como sujeito de ação ou agente construtor, literal e simbolicamente, de uma identidade, esse desígnio de formação cultural e patriótica que as grandes imagens dessa narrativa prometeram desde sempre significar.

Quando observamos contudo o conjunto de frescos que envolve a escadaria principal do Palácio Nacional não temos dúvidas, apesar da sua mensagem figurativa, de que estamos perante um exercício de pintura. Tudo nessas imagens (figuras, objetos, formas e cores) nos remete afinal para o túnel temporal da tradição pictórica e esse é um outro modo de afirmação do médium, pois nenhum outro nos daria tamanha “ilusão pictoralista”. Podemos, por isso, defender que os murais de Rivera afirmam no seu ímpeto figurativo ou presciência narrativa uma das idiossincrasias do médium pictórico, isto é, repercutindo de modo convincente o que poderemos designar por “ilusionismo pictoralista”, produzido tão-somente de acordo com uma essencialidade sensível acumulada ao longo da sua própria tradição estética, ou seja, da sua opticalidade, experiência e cultura, pois ao contrário do que defende Clement Greenberg em Modernist Painting, a autocrítica exigida pela exploração modernista do médium não tem na planaridade a sua única expressão incontornável[15]. Na verdade, também na pintura mimética e figurativa podemos reconhecer uma afirmação estética afinal indissociável do médium, em particular nas sugestões de profundidade observadas no plano de fundo da pintura de paisagem ou da pintura de história, onde quase sempre identificamos efeitos de produção técnica de inconfundível característica pictórica. De outro modo, uma pintura mimética afirma sempre o próprio médium, pois quando estamos face a uma imagem pictórica, mesmo se esta não apela à bidimensionalidade ou à abstração mas sobretudo ao ilusionismo visual de uma representação das três dimensões, esse ilusionismo é facilmente entendido como um efeito de pintura, não se confundindo em nenhuma circunstância com a modelação escultórica ou com o imaginário mental e narrativo sugerido pela literatura. Assim, o modo como Rivera reinventa estratégias formais a partir de um Realismo ampliado ao diálogo com a experiência pictórica do Modernismo, ou seja, com a purificação cromática, a liberdade da ironia sobre as hipóteses críticas em torno da figuração e da retratística, constitui ainda uma afirmação do médium, pois só nessa dialética particular entre a prática da pintura e a sua expressão do real figurado podemos identificar um efeito narrativo verdadeiramente inconfundível, para lá de qualquer dúvida disciplinar ou ontológica. Afinal, quando observamos um mural de Rivera vemos ao mesmo tempo uma história e uma pintura traduzida em figuras, cores e formas que só os pincéis e as tintas podiam concretizar.

Por isso, e recorrendo a uma síntese operada em torno da expressão pictórica ilusionista e figurativa, a epopeia da história mexicana ficou desse modo fixada nas paredes do Palácio Nacional, traduzindo uma dinâmica compositiva de grande esplendor e determinação narrativa. Das origens à contemporaneidade, Rivera apresenta uma visão holística, defendendo, nas três grandes paredes que contornam a escadaria principal do edifício, o valor do conjunto e a união das suas partes como forma de entender a história aí narrada. Com a acumulação e a interdependência das figuras e dos episódios históricos por elas protagonizados, Rivera acentua a ideia voluntarista de uma sublimação generalizada em torno dos episódios decisivos para o destino do seu país. Daí se produz forçosamente uma visão mítica, como espécie de “monismo substancial”, se quisermos recordar o conceito de Espinosa. Ou seja, para entender e valorizar a história do México é essencial considerar o contributo e a participação de todos, sem exceção, como uma substância indivisível e, nessa medida, observada como totalidade. Daí o sentido grandiloquente da narrativa visual pintada por Rivera. A torrente figural que nela encontramos parece confirmar-nos os muitos protagonistas, de diversas origens étnicas, culturais e geográficas, responsáveis pelos destinos de um território. Perante tal cenário, não é de estranhar a tendencial mistificação do passado histórico mexicano, traduzido na síntese unitária que o período pós-revolucionário reclamava para justificar a sua ação política. Num estudo de 2018, Eduardo Subirats procurou desvendar os complexos envolvimentos do muralismo mexicano com o mito da revolução e da sua política de educação estética, prolongada entre os anos 20 e o final da década de 1960[16]. Em Mexican Mural Movement: Myths and Mythmakers, também Fernando Sampaio Amaro identifica uma incongruência na excessiva mitificação dessa relação entre Revolução e muralismo, ao mesmo tempo que reconhece, ainda que de modo subliminar, a sobrevivência artística dos grandes murais:

 

A partir de 1921, tornou-se visível nas paredes pintadas, o que ajudou a formar uma espécie de memória coletiva. Essa construção ou mito visual, a mexicanidade pintada, funciona como uma racionalização dos problemas e traumas decorrentes do processo da conquista, uma vez que todos os tipos de problemas e conflitos parecem ser resolvidos nos murais, que também oferecem esperança de um renascimento da raça martirizada mexicana. O muralismo de Rivera mostra um povo e uma revolução que nunca existiu. Ele promoveu representações de uma realidade utópica, muito diferente da realidade existente fora dos muros. No entanto, resistentes a todas as tentativas de desconstrução, os murais estão lá e, com a sua existência, testemunham outro tipo de “verdade”. Existe uma percepção sobre o muralismo mexicano, mais ou menos difundido, de que é povoado inteiramente por heróis e vilões, e essa percepção, por sua vez, aumenta os mitos sobre o prórprio muralismo. Essa percepção é amplamente baseada na cultura popular.[17]

 

Porém, estas duas leituras críticas ficam presas à ideia de um incumprimento social generalizado por parte dos artistas e das suas obras, quando, em nossa opinião, os murais são sobretudo, ou apenas, manifestações artísticas com um valor específico, enquanto experiência sensorial e inteligível, apesar de o seu propósito inicial ter prometido diversas ideias de progresso social e político[18].

Ao contrário, na tendência para o mito dessa figuração narrativa podemos identificar, antes de mais, a expressão de um desejo, mais do que de uma realidade concreta, e isso não diminui necessariamente o seu alcance social, noutra dimensão perspetivado, isto é, a sua influência decisiva na projeção da própria arte muralista, o que trouxe vários outros resultados com consequências, ainda que indiretas, de expressão social. O mito que se criou em torno da Revolução Mexicana, assim como a esperança utópica sobre os seus efeitos, foi afinal decisivo para a experiência artística e de comunicação desse muralismo que deu ao país a oportunidade única de o situar na vanguarda de um certo entendimento da arte moderna, produzida no contexto do «New Deal» dos EUA e da ação da União Soviética em prol de uma intervenção do Estado na criação de condições para a ampliação do contributo da arte à organização social. Se hoje o valor dos conteúdos aí manifestados pode ser facilmente criticado ou diminuído perante os resultados reais no que diz respeito a um efetiva transformação da sociedade, temos de ter presente que, com a passagem do tempo, todo os conteúdos (sociais, mitológicos ou outros) são esquecidos ou tornados secundários no plano da arte, sobrevivendo apenas, e quase sempre, a estética, o efeito do conjunto na expressão das cores e das formas, isto é, permanece aí o sentimento que nos prende a uma imagem pictórica, e a sua transformação naquilo que identificamos, de modo mágico, como experiência de arte.

Nos murais de Rivera, a mistificação de uma ideia de revolução responsável pela fundação do México moderno constitui, afinal, um fator pouco relevante para a valorização ou reconhecimento da sua importância artística, tal como ninguém exigirá a Michelangelo que os tetos da Capela Sistina comprovem a existência ou mesmo a figuração de Deus. A “verdade” em arte não está na correlação entre imagem e realidade, mas nessa expressão própria e incontornável que a distingue do real e das outras formas de o interpretar ou produzir.

 

Os frescos do Palácio Nacional na leitura de Antonio Rodríguez, crítico de arte mexicano nascido em Portugal

 

Analisada por Antonio Rodríguez nesse amplo estudo intitulado El Hombre en Llamas. Historia de la Pintura Mural en Mexico (1967)[19], a narrativa definida nos murais do Palácio Nacional apresenta-se aos seus olhos, ainda e sempre, como expoente de uma identidade, contada em termos visuais para enfatizar a experiência de sofrimento e emancipação libertária do México, à qual Diego Rivera emprestou, reconhecerá o crítico de origem portuguesa, toda a sua convicção e maestria. Porém, antes de passarmos a uma leitura mais pormenorizada da interpretação de Antonio Rodríguez sobre esses trabalhos particulares, recordemos os traços biográficos de uma figura impar da crítica e da teoria da arte no México, amigo e companheiro de jornada dos principais muralistas mexicanos, como Rivera, Orozco, Siqueiros, Guerrero, ou mesmo Rufino Tamayo.

Nascido a 29 de Outubro de 1908, na cidade de Lisboa, como Francisco de Paula Oliveira, a nomeação de Antonio Rodríguez converteu-se aos poucos, mas de modo consciente, na assinatura mexicana do crítico de arte nascido junto ao Tejo. Porém, o novel nome tomou-o de um ex-combatente galego e republicano tombado na Guerra Civil de Espanha, assumindo a sua identidade de modo clandestino, por razões políticas, de fuga ao salazarismo. Anos antes, e até 1938, Francisco de Paula Oliveira respondia, na verdade, pelo nome de Pavel, o pseudónimo adotado enquanto militante e dirigente do Partido Comunista Português (PCP), retirado de uma personagem de A Mãe, um dos mais célebres livros do russo Máximo Gorky. Foragido a 23 de Maio de 1938 da Prisão do Aljube (mais propriamente da enfermaria, com ajuda do enfermeiro Augusto Rodrigues[20] e do dirigente do PCP Ludgero Pinto Basto), Pavel chegou à Cidade do México em 1939, depois de aportar em Veracruz a 19 de Abril desse ano, rompendo com o país de origem e com o novo perfil da futura liderança do PCP, protagonizado pelo jovem Álvaro Cunhal[21]. Já como Antonio Rodríguez, Pavel desvanecia-se após uma longa aventura que o levou, como refugiado político, de Lisboa ao Porto, daqui, por barco, a Casablanca e Marselha, seguindo finalmente para Paris, com o intuito de receber o apoio da Internacional Comunista. Meses depois, juntou-se em Barcelona a um grupo de ex-combatentes da Guerra Civil de Espanha, regressando então a Marselha para daí atravessar, com passaporte falso, o Mediterrâneo e o Atlântico Norte no navio francês Flandre (da Compagnie Générale Transatlantique) com destino ao México, a paragem possível e necessária, sem nunca ter chegado ao Brasil, o país onde pensava vir a fazer o seu futuro[22]. Optando pela condição de exilado, e trabalhando desde o início como serralheiro mecânico e jornalista, obtém em 1941 a nacionalidade mexicana, aproximando-se desde logo do legado revolucionário e do Partido Comunista do México, ao desenvolver uma partilha de valores políticos, éticos e estéticos com o grupo dos artistas responsáveis pela ação muralista em todo o México, o que o conduziu à crítica de arte e ao estudo aprofundado da realidade artística do principal país da América Central. Desse envolvimento artístico e etnográfico, Antonio Rodríguez realizará com El Hombre em Lhamas o mais complexo e analítico estudo sobre a ancestralidade da tradição artística mexicana. Aí apresenta a sua tese principal, na qual explica como a prática muralista no território que hoje é o México não se iniciou no período pós-revolucionário do século XX, mas nas raízes ancestrais dos diversos períodos, geografias e práticas da chamada cultura indígena pré-colombiana, como, por exemplo, em Chiapas, no sul do México, onde ainda hoje podemos encontrar, entre ruínas, essas coloridas Bonampak – que significa, em língua Maia, “paredes pintadas”, nas quais se narra a história do seu povo. Destas pinturas ou das grandes esculturas parietais nas pirâmides astecas à referência do Barroco nas paredes e nos altares das igrejas do período colonial, o passado de uma arte de grande escala para o espaço público revela-se essencial no ímpeto moderno da sua concretização.

Centralizando a nossa leitura sobre a análise de Antonio Rodríguez em torno dos murais realizados por Rivera no Palácio Nacional, que expressam a sua visão global mas particular sobre a história mexicana, o crítico nascido em Lisboa salienta desde o início o valor do estudo que Rivera encetou com o objetivo de aí representar uma narrativa de síntese sobre as dificuldades e superações de um povo. E o primeiro parágrafo a ele dedicado não poderia ser mais elogioso: «Elevandose por la concepción grandiosa y por la realización titânica a la altura de los más grandes creadores de la humanidade, Diego Rivera emprende, en el Palacio Nacional, la hazaña de expresar la epopeya de un Pueblo (y es la primera vez en la historia que la pintura lo intenta) por medio de la línea e del color[23]».

Ao destacar a importância do mural intitulado «México Antiguo», iniciado em Maio de 1929 e concluído a 15 de Outubro de 1930, Rodríguez descreve-o como

 

[…] una especie de introducción en la cual el “gemelo precioso”, Quetzalcóatl, aparece bajo la triple advocación de astro, dios y ser humano. Lo vemos, al principio, sobre su balsa de serpientes, navegando por el espacio, donde los creadores del mito lo situaron en forma de astro que acompaña el Sol en su repetido entardecer. Asumiendo en la tierra las funciones de patriarca y jefe, el dios, convertido en rey, que habia ofrendado su propria sangre para dar vida a los hombres, tiene al fin que “emigrar”, después de que el ciclo temporal de su misión se cumple.[24]

 

E continua o crítico a sua interpretação dessa mitologia aí identificada como momento fundacional,

 

[…] Emigra transmutândose, dialécticamente, como todo lo que existe, para continuar sobre otras bases, o en outras latitudes, la trayectoria de aquella espiral que parece interrumpirse cuando la Serpiente Emplumada, siempre em continuo estado de transformación, se arroja al fuego, readquiere su antigua forma de lucero y regresa a los espacios siderales («se fue al cielo y entró en el cielo», dicen los Anales de Cuauhtitlán), metamorfoseado en Tlahuizcalpantecuhtli, el Señor de la Casa de laAurora, es decir, en el astro que aparece cerca del Sol en el crepúsculo matutino.[25]

 

E Rodríguez conclui:

 

El círculo no cierra en la vida, siempre en movimiento perpetuo; no existen círculos cerrados. Desde lo alto del mural, el astro creador, en su encarnación de Tzontémoc – el Sol que cae – está indicando que la gran trayectoria será continuada en otro lugar, tal vez en el mundo de las tinieblas, hacia donce se dirige todas las noches para llevar a cabo la más dura de sus pruebas y convertirse de nuevo en luz. Y como si del infierno se tratara, comienza el nuevo panel reviviendo el terrible y desigual combate de los caballeros águilas e de los caballeros tigres, contra los poderosos tueles: centauros y monstruos diabólicos, que despendían el fuego del rayo por las manos.[26]

 

Nesse preciso momento, Antonio Rodríguez relembra as suas raízes portuguesas ao citar o maior poeta lusitano, estabelecendo desde logo o paralelo entre as duas epopeias amadas por ele próprio: «Con “la furia grande e sonora” que pedia Camões para cantar en verso la epopeya de su pueblo, reconstruye Diego Rivera la batalla, comparable por el movimiento a la batalla de Bonampak, con la cual se inicia un nuevo mundo en el viejo mundo de Quetalcóaltl y de Tezcatlipoca.»[27]

Antonio Rodríguez prossegue a sua descrição detalhada dos murais do Palácio Nacional, aludindo a uma visão, ela própria, marxista, quando nos informa:

 

Introducindo sistematicamente el método dialéctico en el mundo da plástica, Diego Rivera edifica, sobre la base de la conquista, la época de la Colonia en su doble aspecto: negativo, de esclavización y aniquilamiento de las viejas culturas; positivo, de protección al índigena por parte de los misioneros, y ambos puestos al servicio de una sociedad nueva saturada de contradicciones y tremendamente compleja, de la cual habria de surgir más tarde el México mestizo de nuestros dias.[28]

 

As referências ao jargão marxista prosseguem no parágrafo seguinte:

 

De la tierra arada por la lucha y fecundada por el choque de dos fuerzas opuestas que acabaron por aquietarse, brotan, más tarde, las espigas de siembra provida. Quedan abajo, en el terreno desgarrado por la contienda, la armadura del conquistador y la piel de tigre del conquistado; yacen, acomodadas en el subsuelo de la historia, como las rocas y los vegetables fosilizados en los estratos de la tierra, la lanza de Cortés y la honda de Cuauhtémoc.[29]

 

Assim se associa uma leitura poética do confronto entre conquistadores e nativos a essa subterrânea matriz dialética ou progressista de análise. Antonio Rodríguez conseguirá quase sempre encontrar a magia dessa concialiação.

 

Pero Arriba, con el ímpetu de lo nuevo, surgen las floraciones del México independiente en la figura de sus héroes, de sus próceres y también de sus traidores. México está presente, todavia en ebullición, pero formado ya por un solo cuerpo. Ya no son dos fuerzas antitéticas en pugna, lo que se eleva ante la faz del Sol, sino el producto de una simbiosis. No obstante, las luchas continuan contra los enemigos del interior y contra los enemigos que vienen desde afuera. Chapultepec y el Cerro de las Campanas dan fede las últimas. Miramón y Santa Anna sontestimonios de la primera. Al fin, sobre la cúspide de la pirámide, el obrero yel campesino,dándose la mano, señalan la unidad que la Revolución dió a México.[30]

 

E aqui, o crítico acentua a visão dialética de Rivera sobre a história plasmada nessas paredes:

 

Haciendo coincidir la composición pictórica con su concepción dialéctica de história de México, el artista sitúa sobre el eje ideal del muro las manos de un obrero y las de Zapata que, en firme alianza, empuñan la bandera con el tema de “Tierra y Libertad”. Sobre el mismo eje, como en un corte transversal de México, vemos en seguida la cabeza de Hidalgo, en la cual anidó la idea, vuelta anhelo colectivo, de la Independencia; más abajo, la mano ejecutante de Morelos y de la de Guerrero; luego, las garras del águila sobre el nopal florescido, que indicó el final de la legendária peregrinación; la piedra calendárica que somboliza a las antiguas culturas y, a los dos lados del mismo eje, como elementos opuestos pero históricamente necessários para la formación del país tal como lo es hoy, la mano de Cuauhtémoc, empuñando la honda, y la de Cortés, blandiendo la lanza.[31]

 

E acrescenta, em jeito de conclusão:

 

Todo lo que es significativo en la lucha del pueblo mexicano por su Independencia y Libertad, desde el grito de Dolores hasta la entrada del Ejército Trigarante, pasando por la aventura de Maximiliano, la intervención de 1847 y la empresa de la Reforma, todo está representado por el gran pintor en su obra cumbre.[32]

 

Mas como Rivera não se limitou

 

[…] a cantar las gestas del passado […] pintó en último tablero de su tríptico las luchas intestinas que se desarrollan en el seno mismo del pais, a pesar de la Revolución, entre huelguistas y granaderos, señalando los distintos niveles que ocupan en la sociedad los que viven de robar al pueblo y los que por no dejarse robar son ahorcados con el letrero “agrarista”, nombre que se daba entonces a los inconformes. Como clave de su extraordinaria oración, el pintor encumbra a Marx sobre el ocaso del mundo contemporáneo mostrando la sociedad del mañana con sus fábricas, presas, sembradíos, puestos de servicio del hombre emnacipado e libre, Y al fin, en oposición al Sol mitológico del primer panel, Diego Rivera pintó, detrás de cabeza de Karl Marx, el Sol astronómico, tal como nos lo representa la observación científica de nuestra época. Al principio, el Sol que cae, para levantarse más tarde, después de recorrer el mundo de los muertos – es decir la prehistoria del hombre – en su penitencia liberadora. Al final el Sol que se levanta, para alumbrar nuevos mundos. Tzontémoc y Tlahuizcalpantecuhtli – el Sol del Atardecer y el Lucero del Alba – ahí están los dos extremos dela espiral que Diego Rivera desarrolla a lo largo del gigantesco fresco. Y como síntesis del principio y de la meta – de donde venimos y para donde vamos – pintó Rivera, con una audacia sólo propia de él, una imagen de Quetzalcóatl y un retrato de Marx, uniendo así el pasado y el presente, lo propio y lo universal, en la alegoria de dos grandes profetas.[33]

 

Antonio Rodríguez não só identifica como partilha o ideal de Rivera de unir o passado e o presente do México a partir dessas duas grandes figuras (mitificadas nas suas próprias épocas), fugindo ambos do reconhecimento ou da evidência de Marx ser afinal apenas um homem, apesar de idealista e utópico. Outra hipótese de leitura seria não terem associado aí a lenda de Quetzalcóatl a Karl Marx, isto é, o seu vingativo e aniquilador regresso, o que converteria a autor de O Capital numa figura destruidora, longe do profeta dos “amanhãs que cantam”. Porém, Rivera e Rodríguez partilham, na verdade, o ideal comunista de uma transformação marxista da sociedade e do povo mexicano, não o evitando em nenhuma circunstância. E assim, tanto a figuração das paredes no Palácio Nacional como a sua leitura interpretativa ganham um carácter especial, inspirado pela ideia de unidade, ou seja, um perfil teleológico que busca o seu sentido comum nessa linha do tempo finalmente justificada em todos os seus episódios históricos.

Desse modo, o crítico tenderá a ler nesses murais o magnum opus do artista nascido em Guanajuato: «Rivera inicia su obra maestra con la descripción de una Edad de Oro en la cual, para citar al generoso manchego, “Todo era paz entonces, todo amistad, todo concordia”.»[34] Mas, consciente e avisado, acrescenta, continuando a citar o Don Quixote criado por Miguel de Cervantes:

 

Viendo los murales del primer piso de Palacio, donde Diego Rivera recréo con los más luminosos colores de su paleta a los pueblos del Anáhuac, nos vienen forzosamente a la memoria aquellas palabras de Don Quijote a los cabreros: «No había (entonces) la fraude, el engaño ni la malicia mezclándose con la verdad y la llaneza… La justicia se estaba en sus propios términos sin que la osasen tubar ni ofender los del favor y los del interés, que tanto ahora la menoscaban, turban y persiguen.»[35]

 

Ao compará-lo com o apogeu de Confúcio, Camões ou Cervantes, Rodríguez coloca o muralismo de Rivera, Orozco, Siqueira e outros, na “Edad de Oro” da cultura mexicana, e esse será o maior dos louvores que o seu capítulo 9 – sintomaticamente intitulado “Rivera: el Palacio Nacional” – produzirá enquanto texto analítico e valorativo.

Nas paredes do primeiro piso desse Palacio del Gobierno, Antonio Rodríguez identifica uma pintura que faz a apologia do mundo asteca e, desse modo, da riqueza material e espiritual do legado pré-colombiano. Apesar da informação histórica e cultural que adquirira em mais de 30 anos de vida no México, percorrendo todo o seu território para conhecer as suas gentes e tradições seculares, o entusiasmo edílico das suas palavras fixara-se na envolvência estética e figurativa presenteada nesses murais:

 

En la concepción pictórica de Rivera, inclinado siempre a la exaltación poética de su pueblo, el mundo de los antiguos mexicanos era, también, um mundo de concordia y de armonía, de abundancia y de luz. Ciudades maravilhosas que reflejaban sus floridas azoteas en agua plateada de los lagos; mercados riquísimos donde se vendia la más abundante variedad de productos; hombres que denunciaban en sus actitudes serenas, una vida apacible y fácil; fiestas, danzas, color, alegria. Tal es el panorama del México antiguo que nos oferece el pintor del passado mexicano […].[36]

 

Perante o trabalho pictórico de Rivera sobre os “Mexicas-Aztecas”, Antonio Rodríguez não deixou necessariamente de lado a violência dos sacrifícios humanos associados aos rituais religiosos da grande civilização pré-colombiana. Sem julgamentos maiores, apenas tomou, do próprio olhar de Rivera, o esplendor ou a face mais positiva dessa história e da sua memória, reconhecendo que: «Si fuera historiador, como algunos pretenden presentar al artista, tal vez pudieramos criticarlo por haber dado una visón excesivamente amable del passado, pero Diego Rivera es un poeta que canta con los colores las glorias de su pueblo. Más aún, es el cantor de las Epopeyas Mexicanas»[37].

Aceitando as hipérboles daí resultantes e, por certo, embalado pela melancolia da sua juventude em Lisboa ou pela saudade da língua portuguesa, Antonio Rodríguez arrisca mesmo uma leitura comparativa entre a epopeia narrada por Rivera e a obra épica de Luiz Vaz de Camões, Os Lusíadas (1578). Após uma breve consideração dos grandes textos epopeicos da antiguidade clássica, como a Iliada ou a Odisseia de Homero e a Eneida de Virgílio, o crítico aponta a uma aproximação mais produtiva com a narrativa da gesta portuguesa pelo mundo, durante o período associado à “expansão marítima”:

 

En los dos poemas, esto es, en Os Lusíadas y en el fresco del Palacio Nacional, cantan Rivera e Camões las memorias de «aquellos que por sus obras valerosas se van de la ley de la muerte liberando». Ambos sitúan el comienzo en la nebulosa del Mito. Sólo que en Os Lusíadas los placeres de la Isla Maravillosa son un regalo de la Diosa del Amor – y no tan gratuitos ni tan generosos, porque al entregar sus ninfas a los esforzados navegantes, la Afrodita quería con ello obtener, como sincera lo proclamó «descendência forte e bela» – en tanto que en Paraíso de Rivera, los frutos de la tierra son obtenidos con el trabajo del hombre, a quien Diego con tan bellos colores siempre cantó.[38]

 

Nesta citação, aqui se juntam os “poetas” (o das palavras e o das cores ou das formas pictóricas) que “cantam”, “endeusando”, o seu “povo”, Camões e Rivera, lado a lado, enfatizando o passado, uma vez mais, rumo ao futuro.

Porém, nesse estudo comparatista que, afinal, só um português ousaria aprofundar, Antonio Rodríguez reconhecerá ainda as diferenças que separam as duas epopeias por si associadas:

 

Teniendo entre sí puntos de contacto, Os Lusíadas y el fresco del Palacio Nacional difieren en un punto básico: Os Lusíadas, que comienzan por exaltar la lucha de los antiguos lusitanos por la expulsión del extraño sarraceno, acaban glorificando las hazañas de aventureros esforzados y heroicos, pero al fin aventureros, que llevaron la servidumbre a pueblos que vivían de acuerdo con sus propias condiciones locales de existencia en armonía con el grado de su evolución histórica. Al contrario de ello, la epopeya del Palacio Nacional, canta la lucha por la libertad y la independencia, en contra de todas las conquistas, de todas las invasiones y de todas las intervenciones extranjeras, sean ellas políticas, económicas o diplomáticas. Por outra parte, en tanto que las epopeyas clásicas se limitaban a cantar, exaltar y enaltecer el passado, Diego Rivera no sólo contó y cantó lo que hizo el hombre, sino también lo que habrá de hacer. La epopeya asume así la función de profecia.

 

E no Palácio Nacional, «[…] más que en ningún otro lado [defende Rodríguez], se puede ver al artista en sus múltiples facetas de dibujante, colorista, maestro de la composición, conocedor de la historia, sociólogo, filósofo, arqueólogo y arquitecto».

Quase como reflexo de uma particular gesamtkunstwerk (obra de arte total), o crítico acentua a ideia de obsessão construtiva nessa pintura mural com o facto de Rivera vir a defender poucos anos depois que todo o pintor tem de ser igualmente escultor e arquiteto[39], traduzindo o seu trabalho numa vontade de construção e conhecimento plenos. Esclarece Rodríguez:

 

Quando concibió sus murales de Palacio, Diego Rivera no había aún puesto en práctica su teoría de que el pintor, para serlo de veras, necesita ser a un tiempo escultor y arquitecto, así como el arquitecto no lo será nunca, en opinón del artista, si no es también pintor y escultor. Pero el espíritu del constructor, que se manifiesta en la mayor parte de sus murales, está presente en toda la composición de esto grandioso fresco, sobre todo en el monumental tríptico de la escalera. En el ajuste de la pintura al edificio, para que los dos no estén en pugna utilizó el maestro la experiencia de los grandes muralistas del Renascimiento.[40]

 

Estratégia e posicionamento cultural que já havíamos acentuado neste texto e que também Antonio Rodríguez sublinhará como essencial no resultado genérico dos murais do Palácio Nacional. Ainda ao nível do seu enquadramento arquitetónico, o crítico mexicano defenderá que esse grandioso tríptico, «[…] que parece edificado en bloques, invisibles como tal, pero reales, sólo pudo haber sido concebido por un hombre que aprendió a tratar la forma con la mentalidad científica de un arquitecto»[41]. Ao mesmo tempo, a dependência do mural relativamente à sua fusão arquitetónica possui em Rivera outras particularidades. O conceito-chave dessa rara equação promove o valor evocativo, denotativo ou conotativo da imagem enquanto idioma fecundo para um diálogo de significados com as paredes, as abóbodas, as varandas, os pátios e os claustros que elaboram a expressão material da arquitetura e falam como um discurso unificado, pleno e atento às relações dos corpos; esses que veem afinal com o movimento das pernas ou dos braços e soltam o entusiasmo perante o aparente excesso de figuras e rostos, acumulados no espectro da nossa visão corporal. Isolados, em grupo, de costas, de frente ou perfil, Rivera preencheu com dezenas de retratos as generosas superfícies dessa arquitetura, convertendo-nos assim em testemunhas de um reconhecimento exaustivo e continuado, na árdua tarefa da identificação individual face a um empreendimento que é todo ele, desde o início, a manifestação de uma história coletiva, a narrativa de um povo.

No seu amplo estudo académico de 2004, Fernando Sampaio Amaro coloca a hipótese de o artista mexicano sofrer de agoraphobia (ou melhor, de quenofobia, uma sua variante mais específica) que diz respeito ao horror vacui, ao medo e à ansiedade perante os espaços vazios, concluindo assim sobre a característica evidente desse preenchimento total e cumulativo, quase asfixiante.[42] De facto, Rivera ocupa as paredes com figuras e mais figuras, não deixando nenhum centímetro por pintar ou preencher com mensagens de carácter narrativo, assentes na exponenciação de uma retratística muito empenhada e particular. Porém, esta identificação sobre o gosto ou a necessidade imperiosa de preencher o vazio dos planos pictóricos surge ainda na análise de Antonio Rodríguez, mas de um modo que justifica e valoriza a tendência desse preenchimento figural quase obsessivo:

 

Se ha acusado muchas veces a Diego Rivera, particularmente por su mural del Palacio, de padecer la fobia de vacío. Y en efecto, nuestro gran artista pocas veces deja en su pintura los espacios abiertos y desnudos que tanto emocionaban a los pintores taoistas chinos, para quienes la nada, los huecos y el no obrar, constituían la base de su filosofia. Como podría esperarse de Diego Rivera semejante actitud en la vida si todo en él era macizo, sólido y activo? La ocupación constituía para él una forma de vida indeclinable, era su modo de ser. Y, por la experiencias de su patria, demasiado sabía él que nada se consigue sin lucha, que, en última instancia, no es sino acción violenta.[43]

 

Talvez com esta leitura de compreensão íntima sobre a conflitualidade quase permanente do território e da história do México possamos finalmente entender o sentido excessivo e ele próprio conflitual dessa profusa figuração característica dos frescos de Rivera no Palácio Nacional.

Para mais, tal como evoca Antonio Rodríguez, há na arte do passado pré-colombiano toda uma tradição de acumulação de motivos e figuras, expressões narrativas replicadas ou repetidas com ligeiras alterações. Assim:

 

Con la imagen de Teotihuacán en la retina, Diego Rivera llena todos los espacios en forma maciza, como lo hicieron sus antepassados en la pirámide del Sol o en la de Quetzalcóatl, y como lo hicieron más tarde los artistas del barroco, en Capilla del Rosario, en Taxco, y en Zacatecas (Diego Rivera proviene justamente de Guanajuato, donde el barroco dejó una de sus obras maestras en el altar de La Valenciana). Además, quien tanto tiene que decir, dificilmente puede permitirse el lujo de dejar espacios vacíos, aunque con ellos se dé mayor énfasis a la forma y el respiro al espectador.[44]

 

Para nós, essa mesma acumulação figurativa cria não só um impacto inédito, como beneficia de uma visualização particular, determinada pela dependência do seu enquadramento nessa escadaria. Promove-se assim uma ideia de observação e leitura quase sempre dinâmica, em sentido ascensional ou de descida, pois apesar de sabermos poder vê-los e observá-los ao pormenor, ao pararmos a marcha ou ao determo-nos nas balaustradas do primeiro piso, é no ritmo da sua apreensão em paralaxe, ao subir e descer essa escadaria monumental, que compreendemos o impacto fenoménico decisivo dessa narrativa quase confusa mas esmagadora, que nos recebe, extasiante e efusiva, ao primeiro passo na sua direção. Como um oximoro visual, na sua experiência de surpresa, imediata e avassaladora, prevalece a imagem dessa galeria imensa preenchida por dezenas de retratos excessivamente juntos ou acumulados, mas que persistem, afinal, para lá da experiência em trânsito, da livre circulação da energia nas «singularidades nómadas» (Deleuze e Guattari[45]), isto é, do tempo que flui sem piedade nesse movimento de cabeça erguida, com os olhos postos na parede.

Para esse aparente mas atrativo “desequilíbrio” de panorâmica visual terão contribuído ainda outros fatores. Na opinião de Antonio Rodríguez

 

está fuera de duda que el conhecimento de la arquitectura e del cubismo constructivo, así como la familiaridade del pintor con las construcciones del mundo precolombino y del barroco dieciochesco, representaron un papel de importancia decisiva en la composición de este mural”. Na verdade, “aunque construído en grandes masas escalonadas, a la manera de las macizas e geométricas pirámides de Teotihuacán, el mural de Palacio está animado de un movimiento interior poderoso.[46]

 

e, acrescentaríamos nós, bastante particular no contexto do muralismo moderno.

Porém, esse corpo de trabalho, senão produz uma unidade inquestionável, nem resulta da aplicação da “proporção áurea”, isto é, a linguagem matemática da beleza adaptada ao exercício plástico, constitui todavia uma forma particular de arte maior, tanto nos seus valores épicos, já aqui analisados, como na sua dimensão estética e formal. A diversidade de análises e sentimentos que o seu impacto promove junto de cada um dos observadores está afinal de acordo com a expressão da nossa contemporaneidade disruptiva e sempre inconclusa, da mesma forma que uma narrativa literária não produz uma leitura unívoca ou estável, dependendo sempre da maturidade de quem a lê. Em nossa opinião, será esse mesmo excesso figurativo, cumulativo ou de desequilíbrio parcial, que lhe confere singularidade e distinção, convertendo-o num dos mais impressivos trabalhos artísticos de Novecentos.

Também Antonio Rodríguez assinala nos frescos do Palácio Nacional o expoente máximo do contributo artístico de Diego Rivera à nação mexicana, ao afirmar:

 

Con frecuencia hemos subrayado, a lo largo de este trabajo, el papel de la pintura mural en la búsqueda del verdadeiro México, durante tantos años desconocido y por tantes personas menospreciado. En este aspecto, ningún outro mural de Rivera há cumplido tan cabalmente esta función como el fresco monumental de Palacio, a partir del cual articula el pintor primera vez un linguaje eminentemente mexicano. Sus indios son indios mexicanos, no figuras del Renascimiento vestidas huipil o quexquemitl. Las proporciones se aproximan, com frecuencia, a las proporciones antíguas. La estilización de los códices y los motivos del arte indígena, que cada vez ocupan un papel más importante en la obra del artista e imprimen su huella avassaladora a todo el conjunto.[47]

 

Rodríguez acentua assim essa atenção que Rivera aí manifesta em relação aos valores identitários trazidos pelo indigenismo:

 

En la fecha en que pintó Palacio, Diego Rivera había estudiado ya, y profundamente, los códices, los frescos mayas de Chichén-Itzá, la cerâmica policromada del Gran Período y las estelas. La prodigiosa colección arqueológica, que a lo largo de muchos años logro reunir, era su “biblioteca” de arte. El estilo de Palacio corresponde a una influencia, sabia y voluntariamente buscada. Una influencia que en el fondo constituye el modo de entronque com una tradición rica y, muchos aspectos, viva; capaz, por lo tanto, de aportar fecundas savias. […] Al pintar aqui la epopeya del pueblo mexicano, com un lenguage que, siendo moderno, está profundamente ligado a la tradicón mexicana, Diego Rivera realizó la mas original de cuantas obras hasta entonces había realizado. Y es justamente por haber alcanzado una total madurez en la expresión de lo mexicano – no ya com formas ajenas, sino com formas próprias – que el fresco de Palacio Nacional, también com sus altos y bajos, com tableros tan líricos como el mundo antíguo y tan grotescos como el último Cortés monstruoso, nos parece el mas personal de sus murales.[48]

 

O mais pessoal dos murais de Rivera é ao mesmo tempo o mais coletivo testamento histórico de um país à posteridade. Rodríguez acaba assim por afirmá-lo, reconhecendo nos frescos da escadaria do poder a sapiência da arte na produção de um imaginário de identidade partilhável.

De outro modo, perante estes longos excertos do capítulo 9 dessa obra seminal que é El Hombre en Lhamas, Antonio Rodríguez aparece-nos como uma figura incontornável na grande valorização do muralismo mexicano. Avaliando o seu percurso a partir desta expressão analítica, apetece perguntar: se tivesse ficado por Portugal, o que diria António Rodríguez dos frescos neorrealistas de Júlio Pomar? O que escreveria Pavel sobre a expressão do Realismo Social português? Não esqueçamos que os políticos da esquerda republicana, socialista ou comunista dos anos 30 e 40 apresentavam muitas vezes uma apetência especial para a interpretação das artes. Por exemplo, Álvaro Cunhal (só para citar um dos casos mais conhecidos[49]), para além de desenhar e pintar sobre temas comuns aos muralistas mexicanos (a luta de classes, as ações do trabalho, a figuração do campesinato e do operariado), pronunciou-se em diversas ocasiões sobre os objetivos e as estratégias do “Novo Realismo” em Portugal.

Se estas questões, sabemo-lo, nunca terão resposta, o seu enunciado configura o nosso reconhecimento sobre a ação de Antonio Rodríguez no processo de avaliação de um dos episódios mais distintivos da cultura moderna mexicana. Ao longo de décadas, não parou de investigar, avaliar e polemizar em inúmeros periódicos, conferências e tertúlias, ensinando ainda no IPN [Instituto Politécnico Nacional] e na UNAM [Universidad Nacional Autónoma de México], onde, apesar do seu compromisso com uma visão marxista da história e do devir político, defendeu sempre o imperativo da liberdade artística, como recorda René Aviles Fabila, quando o conheceu no início dos anos 60:

 

En ese momento la polémica sobre arte y literatura, causada por la severa declaración de Jruschov, “en arte pienso como Stalin”, estaba en su punto más alto. Unos y otros tomaban partido por el Realismo Socialista o en contra de tal corriente. Antonio Rodríguez vio en ello un dogmatismo inútil que en nada ayudaría al desarrollo del arte y pronto escribió artículos de gran severidad contra la postura del PCUS [Partido Comunista da União Soviética], algo poco frecuente en esos años de subordinación infame.[50]

 

Recordemos que, ainda Pavel, Antonio Rodríguez havia tomado contacto com a história da arte ao frequentar os museus de Moscovo (Pushkin e Galeria Tretyakov), aquando da sua ligação ao Partido Comunista Português e das reuniões na capital soviética, tendo muitos anos mais tarde, já na fase mexicana da sua vida, acompanhado Diego Rivera numa das suas principais incursões no universo político da URSS. A realidade estalinista de um regime ensimesmado e tomado pela paranoia da “Guerra Fria” revelara-se então aos seus olhos como um sistema cada vez mais inoperante em termos sociais, assente numa oligarquia controlada pela lógica opressora do partido único, distante já da memória dessa vitalidade revolucionária que prometera uma transformação do mundo.

Dos escombros da desilusão, fortalecera-se porém um crítico de arte que, não abdicando da esperança no progresso da humanidade e, em particular, da sociedade mexicana, travou em si qualquer espécie de dogmatismo ideológico, assumindo uma postura crítica relativamente ao futuro do comunismo como ação política internacionalista. Da inspiração global à atenção das especificidades etnográficas das diferentes regiões e culturas do México, Antonio Rodríguez investiu todas as suas energias nesse processo de conhecimento e divulgação, sem esquecer o valor idiossincrático e inapropriável em termos políticos da essência mais decisiva do muralismo, ou seja, a identidade coletiva e o seu sentimento de pertença ou comunhão com uma causa superior à soma de todos os individualismos.

E se o crítico nascido em Lisboa pôde partilhar do entusiasmo da prática muralista e da sua influência no processo de identidade dos mexicanos deveu-o não apenas ao seu interesse e sensibilidade particulares como também ao acolhimento, amizade e parceria que sentiu ao longo de muitos anos junto de artistas como Diego Rivera, Frida Kahlo ou David Alfaro Siqueiros. A sua existência apaixonada pela criatividade e a transformação social, bem como a aventura política interrompida em Portugal e Espanha, parecem ter encontrado na Cidade do México o locus perfeito para a construção de um património de afetividade, investigação e entrega ao deslumbramento que só a arte parece capaz de despertar.

Nessa medida, Antonio Rodriguez nunca esqueceu as palavras que uma narrativa de transformação exige à prática artística, isto é, aquelas que, por mais paradoxal que pareça perante uma política de representação que tende a fixar os significados, moldam apenas uma inegociável liberdade poética, ao arrepio de orientações burocráticas com chancela partidária, e inspiram quem assume o exercício da arte como a maior das transformações humanas. Foi essa a matriz da relação intelectual entre Rodríguez e Rivera, uma troca de visões e palavras onde prevaleceu sempre uma admiração mútua, no respeito e defesa da mais absoluta autonomia criativa. Desse modo, se o pintor, como o poeta, é um “ladrão do fogo”, mais do que transformações sociais ou projetos educativos de impacto massificado, “produz um sonho para os que estão acordados”, como alertou Platão, ainda que de modo crítico. Ou, como escreveu Gombrich cerca de dois mil e quatrocentos anos depois do principal discípulo de Sócrates, «[…] o que realmente importa é a existência de um mundo da arte, um mundo de sonhos, um universo criado para nosso apreço.»[51] Apesar de todas as esperanças de intervenção social, foi justamente isso que Diego Rivera e os muralistas mexicanos acabaram por nos legar, um mundo inteiro de figuras, imagens e significados produzidos “para nosso apreço”, domiciliados nesse sonho prodigioso e infinito que designamos por pintura. O resultado (da arte e não do seu efeito político) só é tangível, contudo, como experiência total, realizada através do empirismo dos sentidos e da sua reflexão complementar. O que permanece em nós para sempre, como leve ressonância, é a memória dessa experiência, produto de uma profunda empatia, quando as propriedades vitais que sentimos num objeto ou numa pessoa são, na verdade, a projeção dos nossos próprios sentimentos.

Aquilo que suscita pulsões contrárias no âmago da oposição entre o sentir e a sua inteligibilidade, ou entre o valor do conteúdo social e o seu perfil artístico, é o convívio com a “imperfeição” e a ideia falsa de que teremos sempre um modelo original e “perfeito” para exercer a comparação. Ora, o que Diego Rivera procura com esses frescos é confrontar a ambiguidade libertária intrínseca à prática da pintura (mural ou outra) com a prosa interminável que foi escrita a seu respeito, responsável em muitos aspetos por uma cultura de expectativas previsíveis e, por isso, rendidas à norma de um sistema fechado. No trabalho do Palácio do Governo, deliberado pela encomenda oficial e a sua patriótica promessa de felicidade, a visão pictórica do conjunto descarta contudo qualquer apaziguamento, de certezas ou neutralidade, assumindo-se desde o início enquanto gesto estético de empenho humanista, pautado pela autodescoberta identitária e convertido no intrincado da experiência ou da interpretação individual na sua aclamação coletiva. Por isso, mesmo face à imagem de um país e do seu desejo de projeção política e social, Rivera confirma, de modo peculiar, que a arte não existe senão para contornar convenções, assumir e expandir ao mesmo tempo o risco da liberdade. Assim, estes murais não constituem apenas uma narrativa épica politicamente institucionalizada, apoiada num padrão singular de preenchimento figurativo, mas um teatro em extensão, uma ode visual que produz luz própria no seu processo de reconhecimento, definido no labirinto dessas complexas identidades históricas, precárias afinal perante o inexorável desvanecimento da memória. Para lá da legitimação de um inconsciente coletivo ou da anamnese do seu mito, essa “História do México” realiza sobretudo uma digressão, um diálogo peripatético entre pintura e realidade, no qual Diego Rivera não esconde, antes manifesta, a expressão maior da sua inabalável confiança na arte e na vida, arrastando-nos, com ele, nessa consciência de celebração.[52]

 

[versão original, in AAVV, “Neo-Realismo Português e Realismo no Mundo”, Nova Síntese, (Coordenação José Manuel de Vasconcelos com António Mota Redol), 2020]

References
1 Realizados no piso térreo da Secretaria de Educação Pública (SEP), sob o título de La Asemblea del Primero de Mayo, entre 1924 e 1927, serão estes e ainda os frescos do terceiro andar da SEP, no «Pátio das Festas», já datados de 1928 e 1929, nos quais Rivera assume, pela primeira vez, uma alegoria da revolta proletária, com referências diretas à simbologia comunista, desde a foice e do martelo nas bandeiras vermelhas à presença ativa (figural e retratística) de muitos dos seus companheiros de luta política e artística, como Orozco, Siqueiros e Frida Khalo, representados enquanto revolucionários armados, nesse fresco intitulado En el Arsenal (4,33×4,0m).
2 Manifesto do «Sindicato de Trabajadores Técnicos, Pintores y Escultores», 1923, (informação colhida em AAVV, Teorias del Arte Contemporáneo – Fuentes Artísticas y Opiniones Críticas, Herschel B. Chipp (com colaboração de Peter Selz e Joshua C. Taylor), (1968), (Tradução Espanhola), Madrid, Ediciones Akal, 1995, p. 491 e 492.
3 A conquista espanhola de Tenochtitlán teve início em 1519, depois do desembarque na Costa do Golfo, e do avanço mais ou menos fácil até ao Planato Central, reunindo tropas lideradas por Hernán Cortés e Pedro de Alvarado. Estas incluíam diversas tribos indígenas (Totonacas e Tlaxcaltecas) descontentes com o jugo dos seus povos ao centralismo de Moctzuma II e dos Astecas (como “Gentes de Aztlan”, também autodenominados de Mexicas, herdeiros dos Chichimecas e dos Toltecas). Apesar do bom acolhimento inicial, com Moctzuma a tentar agradar Hernán Cortés pela via diplomática, pois pensava que este, por possuir barba e ter chegado do oriente, encarnava o mítico e teleológico Retorno de Quetzalcoátl (o deus em forma de serpente emplumada que, segundo a lenda, chegaria num ano Ce-Acatl para se vingar – o calendário asteca era dividido em ciclos ou períodos de 52 anos. Cada 52º ano era um ano Ce-Acatl, sendo 1519 um desses anos), as tensas relações entre as tropas espanholas e os astecas rapidamente evoluíram em confrontos bélicos, com vantagem para as armas de fogo dos espanhóis que tinham de contrariar o maior conhecimento indígena do lago salgado de Texcoco, onde se fixara Tenochtitlán, assim como dos passadiços, canais, largas ruas, mercados, palácios e templos do recinto sagrado, que a ergueram a grande capital dos mexicas-astecas. Depois de fazer prisioneiro Moctzuma II, Cortés chegar ao ouro que a cidade escondia, tendo na servidão do líder asteca uma estratégia aliada. Contudo, perante a subserviência espiritual de Moctzuma a Cortés, os próprios astecas elegeram Cuitláhuac como novo líder do seu povo, tendo este vindo a falecer poucos meses depois, vitimado pela varíola trazida pelos europeus, tal como cerca de 50% da população indígena, enfraquecendo definitivamente as opções locais. Após a morte deste líder (ou tlatoani), irmão do próprio Moctzuma, foi Cuauhtémoc (sobrinho do imperador histórico) quem liderou os astecas na abnegada e sangrenta resistência final, até à queda da cidade, em Agosto de 1521, quando as tropas espanholas tomaram o poder em Tenochtitlán, pondo fim ao império asteca que, desde 1300, florescera de modo extraordinário nessa região do vale do México.
4 Octavio Paz, “Social Realism in México: The Murals of Rivera, Orozco and Siqueiros”, Artscanada, nº 36, (Toronto, dez.-jan. 1979-80) p. 56-65.
5 José Vasconcelos, “Memorias II: El Desastre, El Proconsulado”, Letras Mexicanas, Fondo de Cultura Económica, Cidade do México, 1984, p. 132. (Informação colhida em Fernando Sampaio Amaro, Mexican Mural Movement: Myths and Mythmakers, Printed in Faro, Portugal, 2004, p. 33).
6 Dawn Adès, Arte na América Latina – A Era Moderna, 1820-1980, (1989), (Tradução português do Brasil de Maria Thereza de Rezende Costa), São Paulo, Cosac & Naify Edições, 1997, p. 152.
7 Como diretor da Escola de Belas Artes da Cidade do México em 1914, Dr. Atl escreveu: «Os arquitetos, pintores e escultores, em vez de trabalhar visando uma exposição ou um diploma, devem construir prédios ou decorá-los» (cf. Dawn Ades, Idem).
8 Rafael Carrillo A., La Pintura Mural en México – La Época Prehispánica, el Virreinato y los Grandes Artistas de Nuestro Siglo, Cidade do México, Panorama Editorial, 1981, p. 89-94; Heriberto García Rivas, Pintores Mexicanos, Cidade do México, Editorial Diana, 1965, p. 167-170; David Alfaro Siqueiros, Me Llamaban el Coronelazo, Cidade do México, Editorial Grijalbo, 1977; David Alfaro Siqueiros, No Hay Más Ruta Que la Nuestra – Importancia Nacional e Internacional de la Pintura Mexicana Moderna, Cidade do México, 1978, 2ª edição; Raquel Tibol, Arte y Política: Diego Rivera, Cidade do México, Editorial Grijalbo (Colección Enlace), 1978; Octavio Paz, “Los muralistas a primera vista”, in México en la Obra de Octavio Paz, Vol. III: “Los Privilegios de la Vista. Arte de México”, Cidade do México, Edición de Octavio Paz, Letras Mexicanas, Fondo de Cultura Económica, 1989. Ainda James Oles, “Realismo y Muralismo en México. Más allá de lo social y de lo socialista”, AAVV, Encuentros Con los Años ’30, Madrid, La Fabrica/Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofia, 2012, p. 53-61.
9 Diego Rivera, Dezembro de 1930, em Luís-Martin Lozano e Juan Rafael Coronel Rivera, Diego Rivera – The Complete Murals, Colónia, Taschen, 2017, p. 288.
10 Note-se que, até essa data, apenas Matisse havia recebido do MoMA honras de exposição individual. Cf. ainda Catálogo da exposição Diego Rivera: A Retrospective (Organização Linda Downs e Ellen Sharp), Nova Iorque, Detroit Institute of Arts/Instituto Nacional de Bellas Artes, Founders Society, Detroit Institute of Arts/ W.W. Norton & Company Ltd, 1986.
11 José Neves, Comunismo e Nacionalismo Em Portugal. Política, Cultura e História No Século XX, Lisboa, Tinta-da-China, 2008.
12 Se, na prática muralista, Diego Rivera demorou alguns anos até apresentar uma figuração claramente revolucionária de inspiração marxista, pois o carácter supostamente definitivo dos frescos impunha a esse ímpeto outras mediações políticas e institucionais, desenvolveu, em contrapartida, no desenho de ilustração, logo no início dos anos 20, um longo e profícuo trabalho de divulgação étnica e revolucionária – por vezes radical, na influência de “gravadores” como Posada e Arenal – assumida em periódicos e livros como, entre 1921-25, El Maestro. Revista de Cultura Nacional; El Soldado Desconocido; Sangre Roja. Versos Libertarios; El Indio; Hombres de la Independencia e Cuauhtémoc. Tragedia ou, entre 1926-1937, Mexican Folkways, a mais célebre revista bimestral em inglês e espanhol, dedicada aos usos e costumes mexicanos. Entre 1926-28, Rivera colabora em El Bonete. Semanario del Pueblo Escrito Por el Pueblo; México en Pensamiento y en Acción ou El Libertador. Órgano del Comité Continental Organizador de la Liga Antiimperialista de las Américas. Em 1928, inicia colaboração com o jornal oficial do Partido Comunista do México, El Machete. Periódico Obrero y Campesino e, já em 1929, no órgão da Secretaria de Educação Pública, El Sembrador, entre muitas outras colaborações de desenho e ilustração ao longo da sua vida. Ver Raquel Tibol, Diego Rivera. Grande Ilustrador, Cidade do México, Editorial RM/Museo Nacional de Arte, 2008.
13 No seu ensaio “México de Renacimientos”, Agustin Arteaga afirma que «[…] Diego Rivera convirtiera al indígena y sus tradiciones en hermoso arquetipo de algún modo semejante “al buen salvaje” rousseauniano. La representación de las etnias ha sido recurrente en el arte mexicano, desde los códices prehispánicos hasta las pinturas de castas del siglo XVIII y las litografias de Claudi Linati (1790-1832; así, la visión indigenista no es una creación del arte revolucionario, pero sí la consolida como parte fundamental de su ideario político», AAVV, Catálogo da exposição México. 1900-1950 – Diego Rivera, Frida Kahlo, José Clemente Orozco y las Vanguardias, (Ed. Agustin Arteaga), Cidade do México/Dallas, Secretaria de Cultura-Instituto Nacional de Bellas Artes/Dallas Museum of Art, 2017, p. 25.
14 Néstor Garcia Canclini, Culturas Híbridas – Estratégias Para Entrar e Sair da Modernidade, (1992), (Tradução português do Brasil de Ana Regina Lessa e Heloísa Pezza Cintrão), São Paulo, EDUSP – Editora da Universidade de São Paulo, 1997.
15 Clement Greenberg, “Pintura Modernista [1960]”, in Vanguarda e Kitsch. Ensaios Escolhidos, (Selecção, introdução e tradução de João R. Figueiredo), Lisboa, IUI – Imprensa da Universidade de Lisboa, 2018, p. 215-224.
16 Eduardo Subirats, El Muralismo Mexicano – Mito y Esclarecimiento, (Coleción Historia del Arte Mexicano), Cidade do México, Fondo de Cultura Económica, 2018.
17 Fernando Sampaio Amaro, Mexican Mural Movement: Myths and Mythmakers, Printed in Faro, Portugal, 2004. [texto policopiado]
18 Em Portugal, por razão de uma situação política rigorosamente oposta à experiência mexicana, isto é, pela influência da longa ditadura autoritária, de uma direita fascista que desembocou na afirmação do “Estado Novo”, a produção de frescos ou outras manifestações de arte em espaços públicos ficou quase sempre dependente ou deliberadamente alinhada com a política e a censura da ditadura. Os temas do operariado e do campesinato só de modo acomodado ou estático em termos sociais podiam ser assumidos, e quando alguns artistas ousaram dar desses temas uma visão crítica ou transformadora, foram perseguidos e os trabalhos censurados e destruídos, como no célebre caso dos frescos sobre As Festas de São João, realizados por Júlio Pomar para o Cinema Batalha (Porto) entre 1946-48, mandados ocultar em 1948, por razões políticas, terminado assim entre nós a aventura muralista de inspiração marxista. Ainda sobre as relações da arte, da crítica e da história da arte portuguesas com o muralismo mexicana, refira-se que o primeiro ensaio crítico realizado em Portugal sobre o tema foi escrito em 1967 por José-Augusto França, “A Pintura Mural Mexicana”, in Oito Ensaios sobre Arte Contemporânea, Lisboa, Publicações Europa-América, 1967, pp. 217-241. Porém, trata-se de um texto muito crítico, que, apesar de informado, reflete uma visão substancialmente negativa do valor e do legado do muralismo mexicano no contexto do paradigma da arte contemporânea defendido pelo crítico e historiador de arte português.
19 Publicado em Alemão, no ano de 1967, como Der Mensch in Flammen, Mexikanisch Wandmalerei von den Anfängen, teve a sua primeira versão em espanhol apenas em 1970, Antonio Rodríguez, El Hombre en Llamas. Historia de la Pintura Mural en Mexico, Londres, Thames & Hudson, 1970. Esta é uma obra seminal da historia da arte mexicana, que deveria ter já suscitado o interesse das editoras portuguesas na sua tradução para a nossa língua. Afinal, António Rodríguez foi o único crítico e teórico de arte nascido em Portugal que mereceu honras de citação bibliográfica entre teóricos de arte norte-americanos como Rosalind Krauss, Hal Foster, Yves-Alain Bois ou Benjamin H. D. Buchloh, por exemplo, AAVV, Art Since 1900. Modernism, Antimodernism and Postmodernism, Londres, Thames & Hudson, 2004, p. 255-259.
20 Já no México, Augusto Rodrigues (aí “rebatizado” Santiago da Silva) tornar-se-á, por todas as circunstâncias que os ligavam desde a fuga de Lisboa, um amigo inseparável de Antonio Rodriguez e de toda a sua família – Zinia Rodríguez, “Antonio Rodríguez: a fénix renascida”, Edmundo Pedro, Pavel – Um Homem Não Se Apaga, Lisboa, Parsifal, 2014, p. 168-170.
21 Depois de chegar a Paris e ter apresentado o relatório da sua fuga a Codovilla (o responsável permanente da Internacional Comunista na capital francesa), Pavel (com Augusto Rodrigues) passara por meses de grandes privações, aguardando, suspenso pela IC, o relatório oficial que lhe permitisse sobreviver e continuar a sua luta política. Porém, segundo conta Edmundo Pedro: «[…] como o solicitado relatório nunca mais chegava e a situação de ambos se tornara insustentável, Codovilla sugeriu ao Pavel que aproveitasse a oportunidade que acabara de ser dada pelo Governo mexicano aos ex-combatentes da Guerra Civil de Espanha refugiados em França. O governo francês tinha colocado um barco à disposição desses exilados e os que quisessem fixar-se no México deviam aproveitar a oportunidade. Se o Pavel e o seu companheiro fossem para aquele país da América do Norte, Codovilla avisá-los-ia logo que o inquérito estivesse concluído. Farto de esperar pelo relatório, o Pavel aproveitou a oportunidade facultada pelo Governo mexicano. Dirigiu-se a Barcelona, ao encontro de camaradas e amigos, na esperança de conseguir um passaporte como cidadão espanhol. Foi bem-sucedido. Arrajaram-lhe um passaporte que pertencera a um combatente galego que falecera durante a Guerra Civil chamado Antonio Rodríguez-Diaz. Limitaram-se a mudar-lhe a fotografia» – Edmundo Pedro, op. cit. 97. Na síntese biográfica escrita por Edmundo Pedro: «Francisco Paula de Oliveira, o mítico Pavel, é um dos mais misteriosos combatentes antifascistas portugueses. Aderindo desde muito jovem ao Partido Comunista Português, as suas qualidades de militante levaram-no a dirigir interinamente o Partido, sendo considerado o sucessor natural de Bento Gonçalves, o secretário-geral a cumprir pena no Tarrafal. Em Maio de 1938, depois de se evadir da cadeia do Aljube, Pavel foge para França. O Partido Comunista, que havia colaborado na evasão, abandona subitamente o seu militante, abrindo caminho à inesperada e surpreendente ascensão de Álvaro Cunhal a secretário-geral. Desprezado pelos seus camaradas, Pavel assume o nome de Antonio Rodríguez, um galego morto durante a Guerra Civil de Espanha, e exila-se no México, onde se tornaria num dos mais prestigiados intelectuais do século XX. Neste país, escreveu nos mais importantes jornais e revistas, fundou o Clube de Jornalistas, lutou contra as injustiças de que eram vítimas os indígenas, foi agraciado por diversos Presidentes da República, o seu nome foi atribuído a salas de museus, auditórios, escolas, ruas… Considerado um dos principais teóricos da pintura muralista, foi amigo de Frida Kahlo e de Diego Rivera, entre inúmeros intelectuais, e o seu prestígio difundiu-se internacionalmente – Edmundo Pedro, op. cit.
22 Sobre a fuga do Aljube e a fixação de Pavel na Cidade do México cf. ainda, para além de Edmundo Pedro, op. cit., artigo publicado na revista “Domingo” do jornal Correio da Manhã (2-6-2014), onde podemos ler: «Pavel teve pouco ou nenhum apoio após escapar da enfermaria do Aljube, onde estava internado com tuberculose, graças ao ajudante de enfermeiro Augusto Rodrigues. Este pertencera à Juventude Comunista Portuguesa e infiltrou-se naquele local com a esperança de ajudar dirigentes apanhados pela polícia política. Fugiram a 23 de maio de 1938, com o apoio de militantes do partido, e saíram de Portugal no compartimento para carvão de um navio sueco, desembarcando no porto de Marselha. Contudo, o clima de “caça às bruxas” em Moscovo, onde Pavel fora representante permanente do PCP, e tinha mulher e filho, selaram o seu destino. Os anos que pôde viver até sucumbir a uma pneumonia, em 1993, deveu-os ao governo do México e a um morto. Antonio Rodríguez-Díaz era um galego que morreu na Guerra Civil de Espanha, e de quem ‘herdou’ o passaporte, no qual só foi alterada a fotografia, para ser aceite no navio Flandre, dedicando-se a aprender a falar castelhano com a fluência necessária durante a viagem até ao porto de Veracruz, onde chegou a 21 de abril de 1939. «Sou filha de um homem que morreu muito antes de eu ter nascido», refere Zinia, salientando que adoraria encontrar a família do verdadeiro Antonio Rodríguez-Díaz, para lhes revelar como ele “deu vida” ao seu pai. Dois anos após chegar ao México, o estado civil de solteiro que herdou do miliciano tombado em Espanha – na verdade, casara-se na União Soviética – foi-lhe proveitoso. Ao passear numa praça da Cidade do México avistou uma jovem com o cabelo entre o louro e o ruivo, pela qual se encantou. Ela estava com a avó, e só pôde dizer ao atrevido que se chamava Teresita, estava a visitar uma irmã e vivia na cidade de Puebla. Para lá se dirigiu, descobrindo que a amada lhe mentira. Chamava-se María Antonieta, usando o apelido Toinette, era órfã de pai e mãe, ao cuidado das irmãs mais velhas, e preparava-se para a festa do 15º aniversário. A diferença de idades, pois o ex-dirigente comunista era 18 anos mais velho, seria o menor obstáculo. Toinette fora pedida em casamento por um general, e o interesse do jornalista levou a que a família a fechasse num convento durante dois anos. Nenhum deles desistiu, e as irmãs consentiram no casamento que duraria meio século. «Fizeram um acordo muito interessante», recorda Zinia Rodríguez. «A minha mãe disse que se casava se fosse pela igreja e se os filhos fossem batizados. O meu pai aceitou, mas pôs uma condição. Disse-lhe: “Não lhes vais ensinar religião”. E ela respondeu: “Quando os teus amigos comunistas vierem a nossa casa, não podem falar mal da Igreja nem dos católicos”». O entendimento resultou, e dois dos quatro filhos quiseram fazer a primeira comunhão, enquanto os outros, incluindo Zinia, a mais nova, a dispensaram. Pelo contrário, só um seguiu o pai no comunismo. Foi Juan Cristóbal, assassinado por militares em 1968. A família disse que se tratara de um acidente, mas Rodríguez não mais retirou a gravata, e Zinia fez uma grande descoberta: «A minha mãe começou a falar-me do meu irmão russo e do meu irmão português [Germinal, o primogénito de Pavel] para que eu suportasse melhor a dor». Apaixonado pela cultura do seu novo país – o primeiro filho mexicano foi Cuauhtémoc, em honra do último imperador asteca -, Antonio Rodríguez foi amigo dos pintores Diego Rivera e Frida Kahlo, também comunistas, mas absteve-se de participar na política. Em vez disso, lutou pelos direitos dos mais desprotegidos do México, dando a conhecer injustiças em reportagens ou em livros como A Nuvem Estéril. Ao visitar Moscovo, como embaixador da cultura mexicana, tomou conhecimento dos crimes soviéticos. «Quando chegou a casa, subiu ao escritório, onde tinha um retrato de Estaline junto à máquina de escrever. Tirou-o da moldura e começou a pisá-lo», recorda a filha, explicando que o Partido Comunista do México decidiu expulsá-lo, mesmo sem nunca ter sido militante.

“Comunista até ao fim”, assistiu à queda do bloco soviético. «Dizia que a mudança não seria positiva, pois o equilíbrio de poder com os EUA iria desaparecer». Mas ficou feliz quando os americanos chegaram à Lua, seu fascínio de sempre, pois era “um feito da Humanidade”.

23 Antonio Rodríguez, op. cit., p. 242.
24 Ibidem.
25 Ibidem.
26 Ibidem.
27 Ibidem.
28 Ibidem.
29 Ibidem, p. 243.
30 Ibidem.
31 Ibidem.
32 Ibidem.
33 Ibidem.
34 Ibidem.
35 Ibidem, p. 244.
36 Ibidem.
37 Ibidem.
38 Ibidem.
39 Ibidem.
40 Ibidem, p. 244 e 245.
41 Ibidem, p. 245
42 Fernando Sampaio Amaro, op. cit., p. 415-417.
43 Antonio Rodríguez, op. cit., p. 245.
44 Ibidem.
45 Gilles Deleuze e Félix Guattari, O Anti-Édipo. Capitalismo e Esquizofrenia, (1972), (Tradução portuguesa Joana Marques Varela e Manuel Maria Carrilho), Lisboa, Assírio & Alvim, 1996.
46 Antonio Rodríguez, op. cit., p. 245.
47 Ibidem.
48 Ibidem, p. 245 e 246.
49 Mas onde poderíamos incluir também Arlindo Vicente, candidato da oposição à Presidência da República Portuguesa e que foi ainda pintor neorrealista.
50 René Aviles Fabila, Antonio Rodríguez – Un Portugués en México, http://www.cronica.com.mx/notas/2014/844505.html.
51 Ernst Gombrich, Gombrich Essencial – Textos Selecionados Sobre Arte e Cultura, (1979), (Organização Richard Woodfield, tradução português do Brasil), Porto Alegre, Bookman Editora, 2012, p. 409.
52 Diego Rivera, Mi Arte, Mi Vida – Una Autobiografía Hecha Con la Colaboración de Gladys March, Cidade do México, Editorial Herrero, 1963.