Na segunda metade do século XIX, Dostoievski converteu-se num dos mais ferozes opositores do «Palácio de Cristal» e do seu significado civilizacional. Na verdade, a imensa estrutura vidrada erguida pelos ingleses para acolher a primeira Exposição Universal, em 1851, tornou-se rapidamente símbolo maior da crença no futuro «cristalino» da humanidade, como espécie de nova catedral ou bolha protetora de um progresso exponenciado pelo domínio económico capitalista.[1] Porém, depois de uma visita que realizara a Londres em 1862, o escritor russo denunciaria, guiado pela sua marcante visão pessimista, a impossibilidade de êxito desse idealismo crescente, lembrando em A Voz Subterrânea (1864) a bipolaridade da natureza humana e a sua compulsiva tendência para as sombras da existência.[2] Defendia ele que o sentimento erróneo e as falhas da consciência inviabilizariam, a qualquer momento, o rumo de aperfeiçoamento racional prometido pelo projeto iluminista.
As duas mundividências que aí se enfrentavam respondiam, afinal, ao mais ancestral dualismo produzido pela humanidade sobre o sentido da vida. De um lado, aqueles que acreditam na candura do ser humano, no seu destino confiante e positivo — Voltaire deu-nos com o seu Cândido — ou o Optimismo a visão mais justa e satírica dessa postura «inocente» de inspiração leibniziana —; do outro, os que perscrutam no insondável e na força imprevista do inconsciente a matriz de uma outra dimensão humana, mais impura, fluida e esquiva a taxinomias ou racionalizações, abrindo as portas às teorias da suspeita sobre o edifício filosófico ocidental. A crítica à civilização moderna teve em Espinosa um precursor e em Marx, Nietzsche e Freud, os mestres revisionistas desse legado. Mas no âmbito literário, Dostoievski foi na verdade o mais persistente defensor da ambiguidade humana e da sua força inelutável ao encontrar na ilusão transparente do «Palácio de Cristal» um alvo a abater, tentando alertar para a possibilidade de toda a sociedade vir a transformar-se, no seu conjunto, em objeto de exposição de si própria. Desse modo, o autor de Crime e Castigo tentou contrariar, embora sem sucesso, a desmesura de uma cultura do otimismo que se converteria desde então e ao longo de Novecentos na expressão máxima do prazer material e do consumismo, a partir do apuro do valor de troca que enformou esses tempos e desnorteia agora, cada vez mais, o mundo do século XXI.
A metáfora de um espaço transparente e harmonioso, capaz de impressionar o visitante desde o primeiro momento, conduzindo-o a uma visão acrítica do que está perante si, poderá servir-nos aqui para pensarmos a encruzilhada com que se deparam, desde as últimas décadas, os museus de todo o mundo. Entre o registo de um envolvimento conservador e quase subterrâneo (bunker) sobre a guarda, a preservação e o estudo do património e a transformação do espaço museológico numa superfície de consumo à imagem e semelhança dos «palácios de cristal» que são hoje os centros comerciais — essas «passagens» que Walter Benjamin caracterizou no exemplo parisiense de sedução consumista[3] —, projeta-se um ramo do dualismo atrás identificado. Isto é, o «grande interior»[4] em que se transformou a civilização ocidental, na sua ânsia de purismo não conspurcável, promoveu uma espécie de inevitabilidade, a conversão de quase tudo ao sistema de um marketing que observa todo e qualquer fenómeno como um potencial produto apelativo que alimenta sem cessar a nossa compulsão consumista.[5]
Se no passado os museus eram considerados as «casas das musas», os lugares de recolha e «depósito» do património artístico e cultural relevante, que urgia defender da cobiça alheia, mesmo quando tornado público em salas de exposição permanente — daí a sua imagem de bunker, entre a ala subterrânea (escura) onde eram guardados os «tesouros» em forma de coleções e a ala térrea (iluminada), onde era revelada uma ínfima parcela da sua riqueza — já no final do século XX tornar-se-iam, cada vez mais, à semelhança de muitas outras áreas de interesse comercial, frenéticos lugares de exposições temporalmente determinadas e, sobretudo, de promoção da imagem de objetos que deixaram de ser vistos apenas como elementos de cultura e conhecimento, para passarem a ser entendidos enquanto objetos de consumo facilmente descartáveis, obedecendo assim à lógica de um valor de troca constantemente renovado com base na imperiosa e sistemática substituição de um objeto por outro. Neste aspeto, Walter Benjamin parece ter-se enganado quando defendeu que o valor de troca, determinado pela reprodutibilidade técnica da imagem, não se imiscuiria no valor de culto das obras existentes nos museus.[6]
Mas a realidade consumista aplicada à cultura veio provar, pelo contrário, que quanto maior é o valor de exposição e proliferação imagética de um objeto, maior será o seu valor de culto — ainda que entendendo este como resultado da regular circulação da imagem que alimenta o desejo e a necessidade de posse, mesmo que apenas de uma imagem ou qualquer outra forma de reprodução de um objeto original. Com efeito, entre o original e a cópia, uma nova cultura como valor de troca (simbólica e económica) transformou os museus em espaços de consumo de obras e objetos cada vez mais apreciados não tanto no lugar público dos espaços museológicos, mas na intimidade privada promovida pela qualidade de uma excelente e manuseável reprodução analógica ou digital, apesar das inúmeras diferenças em teoria ainda facilmente identificadas entre uma cópia e o seu original. Ninguém nega que os originais de uma pintura ou de uma escultura, em particular as suas especificidades matéricas e de volumetria, são quase impossíveis de traduzir numa reprodução, por mais elaborada que esta se apresente. Porém, quase todos os visitantes de museus reconhecem passar pouco tempo perante o original, por comparação com o tempo dedicado à sua cópia ou reprodução em livros, catálogos, aplicações digitais interativas ou simples postais. Por isso, a tendência de promoção consumista inerente aos megas museus, que disponibilizam uma miríade de objetos estetizados em função das estratégias de «marketing» e «merchandising», reproduz ainda o eco dos grandes espaços de exposição como o «Palácio de Cristal», reinterpretando a sua lógica de confluência dos avanços da indústria, das ciências e da artes a partir de uma extraordinária exuberância visual. No fundo, os museus tomam hoje o formato do grande design global, investindo numa arquitetura de assinatura e em todo um sistema de caleidoscópio hedonista, espécie de última expressão dessa «decoração das massas» que já Siegfried Kracauer havia perspetivado enquanto fenómeno emanado da indústria cultural capitalista e que mais recentemente foi alvo de reflexão crítica por parte de Hal Foster.[7]
Tal como no caso de êxito social do «Crystal Palace», afluem hoje aos grandes museus milhões de pessoas ávidas de uma experiência que se coadune com o espírito fragmentário, estetizado e consumidor da nossa atualidade, levantando dúvidas, assim, sobre quais os critérios e objetivos que devem nortear a instituição museológica contemporânea. A propósito desta discussão, Nicholas Serota, diretor da Tate Britain, apostou nos anos 1990 numa orientação expositiva que alternava salas de maior intensidade interpretativa e intelectual, como outras mais livres, onde se apelava a uma experiência mais direta com as obras expostas. Aliás, a oscilação entre «experiência e interpretação»[8] parece manter-se como um dos dilemas da museologia. À pedagogia interpretativa associada ao espaço do museu, impõe-se igualmente a consideração da experiência individual que, embora condicionada pelas coordenadas do contexto expositivo (design ou display da exposição, soluções de museografia, textos de apoio, ateliers e visitas guiadas), procura uma ligação menos colada à análise pré-estabelecida pela curadoria ou pela programação dos museus. Porém, Serota defende precisamente que a liberdade do recetor não fica reduzida por haver um dispositivo moldado pelo curador, antes traduz uma elevação no relacionamento entre a mente e o olhar, ou entre a linguagem verbal que produz a interpretação e a sensibilidade resultante da experiência de cada visitante durante o percurso realizado. Afinal, apesar de toda a orientação curatorial, o percurso e a experiência individual refletem-se nas opções tomadas pelos recetores, na leitura ou interpretação que fazem da sua própria experiência.
Nesta medida, o museu contemporâneo tem vindo a afastar-se da imagem de bunker protecionista, realizando cada vez mais uma gestão equilibrada entre as necessidades de conservação e restauro em torno do seu património e a sua regular exposição pública. Se o património é a substância da ação museológica, a sua condição existencial, o estudo e a apresentação públicas são os motores da sua projeção, pois a cultura só se realiza no processo de comunicação estabelecido entre os que têm a responsabilidade da sua produção e a receção confirmada por um público hoje cada vez mais vasto e plural, não elitista e de formação diversificada, atraído todavia, na sua generalidade, pela sedução de uma experiência que passa pelo consumo de bens culturais mais ou menos acríticos, que satisfazem uma lógica de substituição permanente e insaciável do que se oferece como cultura de museu. Porém, no meio deste processo, tende-se hoje a confundir informação e conhecimento, esquecendo que este não pode ser substituído nem vivido como resultado de qualquer espécie de processamento informativo.
Os museus têm, neste aspeto, uma responsabilidade acrescida, de acordo com o seu estatuto cultural e institucional, devendo, por isso, defender uma atitude mais crítica e consolidada em termos de produção e promoção de conhecimento, sob pena de deixarem de ser espaços de cultura e reflexão e passarem a meros lugares de consumo e lazer estetizado, à imagem dos antigos e atuais «palácios de cristal». Isto não significa, contudo, que os museus não possam ser também, em parte, lugares de consumo. Mas se é desejável até que não percam de vista essa inevitável realidade, explorando-a a seu favor, devem integrá-la com equilíbrio, entre a pausa ou a abstração relaxante da visita e o reiterado convite à concentração contemplativa do objeto museológico, acentuando sempre a riqueza e o prazer da descoberta do conhecimento, mesmo quando baseada na abordagem experiencial, liberta momentaneamente de conceitos e interpretações.
Por outro lado, os museus contemporâneos reconhecem e defendem que o património constituído pelas coleções e o seu estudo aprofundado não são, nem devem ser, incompatíveis com diferentes exercícios de experiência individual, desde que se assegurem diversos níveis de reflexão (por exemplo, a partir da ação determinante dos serviços educativos ou de mediação) e jamais se abandone a matriz fundamental da museologia que é a cultura do conhecimento e a sua partilha. Em suma, apesar da diversidade de processos que conduzem ao contacto direto ou indireto com o património museológico, a missão do museu não deve nunca perder de vista o seu contributo específico mas decisivo de promoção do saber junto daqueles que o visitam e cultivam. Um saber não apenas associado aos conteúdos temáticos de cada instituição, mas sobretudo vivenciado como valor essencial à afirmação e sobrevivência da própria humanidade — a mesma, afinal, que tem sido avaliada ao longo dos tempos entre a esperança positiva e a sombra do seu caminho.
[Versão original: in L+Arte, nº 80, Fevereiro de 2011]
[imagem: Centro Nacional de Arte de Tóquio, 2019]
1 | ↑ | Sobre a metáfora do «Palácio de Cristal» como imagem primeira da globalização consumista e a determinada oposição de Dostoievski cf. Peter Sloterdijk, Palácio de Cristal — Para uma Teoria Filosófica da Globalização, (2006), (trad. portuguesa Manuel Resende). Lisboa, Relógio D’Água, 2008, pp. 184-191. |
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2 | ↑ | Note-se que Dostoievski visitara o Palácio de Cristal já ampliado e fixado, em 1854, em South Kensington, no subúrbio de Sydenham, a sul de Londres. Nessa altura, já a grande estrutura transparente era visitada pelas massas e vista como um grande parque de lazeres, consagrado à «educação popular». O «Crystal Palace» viria a ser destruído por um incêndio, em 1936, mas a sua imagem de grande atração como expoente da civilização industrial e capitalista permanece. |
3 | ↑ | Cf. Walter Benjamin, Paris, capitale du XIXe siècle. Le Livre des Passages, (trad. francesa Jean Lacoste). Paris, Éditions du Cerf, 1989, pp. 35-46, (trad. portuguesa Carlos Fortuna) in AAVV, Cidade Cultura e Globalização, (org. Carlos Fortuna). Oeiras, Celta Editora, 1997, pp. 67-80. |
4 | ↑ | Cf. Peter Sloterdijk, op. cit., pp. 151-280. |
5 | ↑ | Sobre esta questão cf. Gilles Lipovetsky e Jean Serroy, O Capitalismo Estético na Era da Globalização, (2013), (trad. portuguesa Luís Filipe Sarmento). Lisboa, Edições 70, 2014. |
6 | ↑ | Cf. Walter Benjamin, “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, (1936), in Sobre arte, técnica, linguagem e política, (trad. portuguesa de Maria Luz Moita, Maria Amélia Cruz e Manuel Alberto), Lisboa, Relógio d’Água, 1992, pp. 71-113. |
7 | ↑ | Cf. Hal Foster, Design and Crime (and other diatribes). Londres/Nova Iorque, Verso, 2002. |
8 | ↑ | Cf. Nicholas Serota, Experience or Interpretation: The Dilemma of Museums of Modern Art. Londres, Thames & Hudson, 2000. |