A vida pode ser arte e a arte pode ser vida
Wolf Vostell
Apesar da sentença de Adorno sobre a impossibilidade da arte depois de Auschwitz, a utopia permaneceria viva nas neovanguardas do segundo pós-guerra. Desde logo, como expressão de uma criatividade crítica que prolonga o questionamento dos modelos sociais do capitalismo avançado, que progressivamente descobre a crescente importância da bipolarização do modelo político do socialismo marxista (soviético e chinês), que descobre e assimila o nascimento de uma nova e última ideologia: a da defesa do ambiente – emergente sobretudo no meio estudantil; e considera a mensagem das filosofias orientais, nomeadamente todo o Zen e o princípio de um fazer sem finalidade (e sem fim) ou a procura da simplicidade, em nome do efémero material e de uma constância maior da espiritualidade.
Por outro lado, o essencialismo utopista sobre a procura de uma realização total do sujeito está igualmente presente na desestruturação da imagem moderna do mundo e da arte, levada a cabo, desde o final da década de 50, pelas neovanguardas performativas mediante a investigação sobre a desmaterialização da obra de arte, e a sua dessacralização enquanto padrão de estilo, valor, ou manifestação aurática de objecto único e original. Critica-se então o conceito de originalidade alimentado quer pela estética idealista do romantismo alemão quer, de outro modo, pelas vanguardas históricas, bem como o seu reducionismo formalista e objectual. Reivindica-se o fim da autonomia dos géneros e disciplinas artísticas, reforçando noções como as de interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, anti-forma, informe, “obra aberta”, liberdade, ou ainda a relação osmótica (de influência recíproca) entre a arte e a vida, ou a assunção de uma arte como ideia, a partir do conceito. Neste sentido, a emergência da acção resulta como modo operativo recorrente de uma manifestação artística que pretende contrariar os mecanismos de uma certa uniformização do sujeito comum a quase todo o mundo ocidental, depois da vitória Aliada da II Guerra Mundial.
Resultado de um particular desenvolvimento do que poderíamos denominar por “estéticas libertárias”,[1] a partir de um contexto que viria a generalizar a ideia de uma progressiva desmaterialização da obra de arte, o happening aproxima-se da intenção prioritária de apropriar a vida através da acção, cumprindo uma singular conformidade, na identificação da arte com a realidade vivida. De um modo geral, e no sentido de diminuir as fronteiras entre a arte e a vida (curiosamente, estratégia comum, afinal, à maioria das vanguardas) o happening promove, sobretudo, apenas o “acontecimento” (segundo a mais usual tradução do termo original), mesmo que, paradoxalmente, mantenha uma estreita proximidade com o domínio da estética ou algumas das suas características, como as noções de sublime, ou mesmo uma qualquer harmonia entre a sensibilidade e o entendimento.
Num contexto de relações pioneiras, e para lá dos contágios que sofreram o futurismo e o dadaismo tanto da acção política conjuntural como da “teatralização” emergente das suas manifestações artísticas, devemos sobretudo procurar as origens da manifestação do happening dos anos 50 e 60, na evolução particular evidenciada pelos registos encenados, ou “ambientes”, inicialmente elaborados pela pop-art norte-americana que, a partir de Robert Rauschemberg e as suas Combine paintings, reafirmam a intenção (neodadaísta) de apropriação de objectos e registos do quotidiano característico das sociedades do capitalismo avançado. Neste domínio, também Claes Oldenburg, Edward Kienholz, George Segal, Allan Kaprow e Jim Dine nos apresentam, em meados dos anos 50, complexas realizações cenográficas no espaço do atelier ou da galeria, nomeadamente, no desenvolvimento misto da funk-art com a pop-art, onde os resíduos e objectos mais diversos servem de matéria de composição a “ambientes” de vária formulação e origem. Da “assemblage-ambiente” de recriação quotidiana nos espaços institucionais da arte (atelier-galeria-museu) aos “ambientes” de crítica social, essas manifestações artísticas realizam, nessa época, uma definitiva aproximação ao real, gerando uma importante extensão dos limites e do conceito de obra de arte. Todavia, da encenação à acção, dá-se a passagem essencial da composição estática e permanente (matérica ou objectual) à dinâmica própria, e espacio-temporalmente fixada, do movimento (da acção) e a sua característica fundamental: a efemeridade.
Desde a Action painting de Jackson Pollock às Antropometries de Yves Klein, a marca deixada na tela pela espontaneidade do movimento (da tinta escorrendo do pincel, no primeiro caso, e do corpo, no segundo), adquire uma importância fulcral na assunção e realização de uma arte que abandona o carácter fixo ou estático e estritamente racional-formalista da prática pictórica para passar a considerar o essencial do acaso, na esteira (in)directa dos automatismos psiquícos de algum modo libertos a partir do inconsciente, raíz da tradição vanguardista dada e surrealista. Por outro lado, tanto nas experiências de Pollock como nas de Klein existe algo em comum, isto é, uma valorização progressiva da acção (embora ainda directamente relacionada com uma pictorialidade) como processo fundamental para o resultado final da obra. Contudo, mantém-se ainda a presença estática do objecto tela ou superfície, na sua configuração física e matérica, apresentando sobretudo o resultado desse processo vital onde o acaso e o momento transitório se revelam já essenciais. Se aliarmos a estas experiências de cariz pictórico as que decorreram, em inícios de 50, no Black Mountain College – onde John Cage e Merce Cunningham, entre outros, se aproximavam progressivamente, mediante o registo da experiência da apropriação dos sons e movimentos até então considerados como não-artísticos – facilmente compreendemos que o início da segunda metade deste século se revelou particularmente fértil em experiências que diminuíam, ou procuravam diminuir, a fronteira entre o estético e o real, a arte e a vida.
Será precisamente no final da década de 50, a partir da consideração do acontecimento inesperado e da assunção de uma temporalidade presente multidimensional e efémera, que Allan Kaprow reclamará o carácter plural e «multimedia» dos seus happenings, fixando-os, desde logo, numa linhagem que tem a sua origem na action presente na pintura de Jackson Pollock (com os seus dripping e automatismos registados na superfície pictórica), passando igualmente por uma espécie de “activação” das “assemblages-ambientes” apresentadas pelos artistas da funk e da pop-art.
De outro modo, as linhas gerais que irão caracterizar nas duas décadas seguintes a manifestação do happening americano e dos vários níveis da performance europeia, são afirmadas, desde logo, em 1958, pelo próprio Kaprow, numa das suas obras teóricas fundamentais, Assemblages, environments & happenings: “A linha que divide a arte e a vida deve permanecer fluida, talvez indistinta, tanto quanto possível; (…) Portanto, a origem dos temas, materiais, acções – bem como o relacionamentos entre eles – serão derivados de qualquer lugar ou período, excepto das artes e do seu meio; (…) A performance de um happening deverá ter lugar num severo e amplo espaço, por vezes alterando e mudando os locais; (…) O tempo, que será determinado pelas características do espaço, deverá ser variável e descontínuo; (…) Os Happenings deverão acontecer uma só vez, (…) eles seguirão até que a audiência seja inteiramente integrada.”[2] Allan Kaprow afirma ainda neste contexto panfletário, numa estratégia tipicamente vanguardista, que entre os “ambientes” e os happenings há em comum o princípio determinante da extensão da fronteira da arte, num jogo constante de troca de valores entre a vida e o domínio específico da arte, numa espécie de evolução entre o registo de algum modo “passivo” dos “ambientes” e a face “activa” que caracteriza e diferencia o happening de um modo geral.
Mas Kaprow pretendia algo mais com os seus famosos 18 happenings in 6 parts (1959). De facto, tratava-se então de combinar diferentes domínios e disciplinas artísticas; assim, da construção quase escultórica de paredes (a partir de colagens e pinturas) à projecção de imagens e diapositivos, da narração de discursos e monólogos improvisados a movimentos corporais que se situavam entre a dança e a exploração estética da imagem do corpo, resultava um quadro plural que se pretendia intenso, pleno de acção e energia, só possível de realizar e viver no momento da sua concretização. Isto é, com o happening não restava já nenhum resultado, ou obra, para lá da experiência individual de cada um dos intervenientes na “acção”. Esta característica, que ultrapassa definitivamente o resultado fixo e físico que ainda apresentavam as superfícies de Pollock e Klein, promove a ideia de uma valorização maior da experiência vivificada e concretamente contextualizada numa realidade espacio-temporal, incitando, indirectamente, a uma recepção colectiva de comunhão artística, em alternativa à sua reificação ou experienciação individual. Com essa revolução ao nível da concepção do acto criativo, a arte contribuía igualmente para uma nova consciencialização sobre a irredutível fixação do tempo, como espelho do efémero da própria vida.[3]
Daqui resulta um nítido afastamento, mesmo que algumas vezes ignorado pelos próprios promotores do happening, das possibilidades razoáveis de uma museologização que servia ainda e sobretudo, na época, a exposição de obras de arte que, na sua essência, mantinham uma relação de fruição estética mais duradoura (porque potencialmente repetida) com o receptor, admitindo por isso uma normal preservação da sua condição de objecto estético e artístico. Acontece que com o happening e a performance, a obra abandona o que até aí lhe garantia a museologização integral, ou seja, a materialidade que permite a permanência e preservação da sua essência presencial. Em vez de pintura ou objectos, o happening deixa apenas a memória do acontecimento criativo, nisso se sintonizando com outras artes performativas: as do espectáculo, tais como o teatro e a dança.
A estrutura aberta e indeterminada, pelo que comporta também de improviso e espontaneidade (apesar de muitas destas manifestações apresentarem, por vezes, e quase paradoxalmente, elaborados programas de realização), contraria em parte a dinâmica de circulação da obra que a “instituição arte” admitia, até então. Porém, este afastamento não é gratuito. Na maioria dos happenings está subjacente uma crítica ao sistema particular de comercialização do produto artístico, numa confrontação directa com o mercado de arte apoiado pela “instituição”, (tal como reconheceu mais tarde Harald Szeemann…) e, de algum modo, indirecta, com alguns estilos formais que a pintura de então apresentava, nomeadamente, os informalismos vários que na Europa se afirmavam, ou as muitas descendências desse expressionismo abstracto norte-americano, protegido pela crítica de Clement Greenberg.[4]
Por outro lado, a forma aberta característica da realização do happening apresenta uma forte intervenção sobre conteúdos de crítica social e política, sobretudo no caso europeu com as “acções” de Joseph Beuys, Wolf Vostell, Ben Vautier e Jean-Jacques Lebel, ou o extremo do Wiener Aktionisten, onde se revela uma radical aproximação e valorização criativa de uma estética enquanto ética, e vice-versa. Em todos estes exemplos, o lugar e a participação do receptor vê-se radicalemente alterado mediante uma nova estratégia de relação, realizando-se uma espécie de transferência, ou partilha, de funções e lugares entre produtor e receptor da manifestação artística. Em consequência do desenvolvimento destas “acções” interdisciplinares dá-se a substiuição do termo “artista” pelo de “operador estético”, numa paradigmádica referência às propostas globalmente reformuladoras protagonizadas pela generalidade das neovanguardas do segundo pós-guerra.
A intenção essencial destas manifestações artísticas resultava afinal numa transformação ao nível da experiência da recepção da obra de arte, alimentada pelo desejo global de revolução e “nova sensibilidade”, envolvendo, ou procurando envolver, o sujeito na sua totalidade, de forma ritualista e mágica no caso do Wiener Aktionisten, ou a partir do xamanismo e da conceptualização no caso de Joseph Beuys.[5]
A reclamação de um mundo melhor passava então por essa aproximação (mais do que diluição) das fronteiras entre a arte e a vida, definidas, pelo menos desde o século XVIII, a partir do fortalecimento das “academias de belas-artes”, da construção discursiva e de legitimação que caracterizou desde sempre o desenvolvimento da “instituição arte”. A reacção ao progresso e à modernidade do racionalismo tecnocrático e capitalista, presente de forma mais evidente desde os desenvolvimentos críticos da “Escola de Frankfurt” até Herbert Marcuse, procurava também no carácter irracional, participativo e espontâneo do happening e da performance um exemplo de acção humana criativa que unisse definitivamente ética e estética, num processo de maior consciencialização da vida, mediante a realização artística.
Apesar da intencionalidade presente nestas manifestações, isto é, a reclamação de uma nova arte, livre da monotonia e dos interesses paralelos ao processo criativo, (sobretudo do mundo mercantil que instantaneamente absorvia toda a arte que as galerias apresentavam); e para lá da sua perspectiva efémera e transitória, o happening foi rapidamente assimilado pelo próprio discurso (primeiro crítico e depois historiográfico) que auxilia, desde sempre, a “instituição arte”, numa clara subversão das suas premissas essenciais. Esta assimilação revelou-se, de algum modo, inevitável dado que o registo fotográfico e a narração escrita foram mantendo vivas, senão a experiência de totalidade própria dos happenings, pelo menos o registo da sua memória, indirectamente contribuindo para uma espécie de mitificação pela ausência de obra, dado que a memória do efémero, amplia e mitifica o próprio acontecimento.
Deste modo, resulta lógica a afirmação de que todo o gesto de negação da “instituição arte” revela-se, afinal, ainda e sobretudo como parte integrante (ou relacional) de um mundo próprio, o da arte, que tem vindo a erigir uma poderosa autonomização (mediante o apelo à criatividade) relativamente à experiência de globalidade da vida, por isso assimilando tudo o que em torno dela se manifesta, quer se apresente na consagração da sua especificidade, quer se reclame de uma negação generalizada das suas características mais comuns, como no caso dos happenings.
Exemplo máximo deste conflito com a “instituição arte”, a partir de uma estreita relação entre a vida, a acção e o conceito, parece ser o movimento Fluxus, merecendo aqui uma especial atenção pelo que comporta de crítica aos valores dominantes de uma época, bem como pela declarada intenção de procurar uma total integração arte-vida. As manifestações disciplinarmente plurais do movimento fluxus são, por assim dizer, o reflexo mais evidente e desconcertante do contexto circunstancial utópico vivido durante as manifestações radicalmente reivindicativas dos anos 60.
De facto, e desde 1961 até quase aos nossos dias,[6] o Fluxus tem promovido um largo conjunto de iniciativas de criação e reflexão quer em torno de “acções” simples, como a festa e o convívio à mesa de uma refeição, quer na realização e cruzamento de experimentações artísticas aparentemente tão distantes umas das outras como a música, a gastronomia, as artes plásticas, a dança, o teatro, a literatura, a arte popular, ou um conjunto vasto de experiências inovadoras como, por exemplo, a desfuncionalização das tecnologias disponibilizadas pela sociedade capitalista, presente de modo exemplar na performance de Nam June Paik e Charlotte Moorman, Concert for TV-Cello and videotape (1965), ou ainda na profusão de diferentes práticas criativas anunciadas directamente no programa de um famoso encontro Fluxus: Actions, Agit-Prop, Dé-coll/age, Happening, Events, L’Autrisme, Art Total, ReFluxus, (Aachen, 1964).
Nestas fantasistas manifestações de criatividade libertária, tudo se confunde e partilha, no jogo do devir existencial, professando a precaridade a partir de uma estética mágica e ritual, na consciencialização do provisório da obra de arte, da quotidianidade do gesto artístico, como elevação do poder criativo mediante a atitude, a acção. À harmonia prefere-se o caos e o acaso, podendo procurar-se na destruição de um piano o som mais recôndito e experimental. Georges Maciunas, Dick Higgins, John Cage, Georges Brecht, Al Hansen, Benjamin Patterson, Nam June Paik e Emmett Williams foram os pioneiros norte-americanos deste movimento de “arte total” que rapidamente ganhou seguidores em toda a Europa, envolvendo um vasto leque de “operadores estéticos” como Joseph Beuys, Wolf Vostell, Ben Vautier, Kopcke, Henning Christiansen, ou Robert Filliou, entre muitos outros.
O sentido de desmaterialização da obra de arte, da estetização da experiência, bem como da potencial interdisciplinaridade criativa marcam decisivamente os happenings e as performances do movimento Fluxus que actuava, a partir de uma radical experienciação de realidades estranhas ao mundo da arte, contra o optimismo da sociedade consumista e tecnocrata do capitalismo mais instrumental. A orientação política de alguns dos seus intervenientes (próximos do trotskismo e de outras orientações socialistas) conduz mesmo G. Maciunas e Flynt à realização de uma performance sintomaticacamente intitulada, Action against cultural Imperialism, (1962).
Na Europa, Wolf Vostell teria uma acção pioneiríssima na defesa de uma maior atenção sobre a dialéctica arte-vida. Logo em 1954, a partir da interpretação do termo francês decollage, que Vostell lera em título de uma notícia sobra a queda de uma avião logo a sua descolagem, o artista alemão formado em Dusseldorf iniciaria todo um percurso de intervenção performativa, que teve expressão na acção O teatro está na rua (realizado em Paris, 1958), em que o processo de construção-destruíção que estrutura toda a experiência de vida deveria ser adaptada a uma síntese criativa que reclamasse igualmente para o domínio da arte a consciência clara desse processo que Vostell entendia como comum aos dois universos. O seu entusiasmo em torno das experiências performativas ira logicamente aproximá-lo do colectivo Fluxus, assumindo-se como um dos seus maiores defensores em toda a Europa: dos festivais de Wiesbaden, na Alemanha, a Malpartida de Cáceres, em Espanha.
O carácter anti-arte das manifestações Fluxus realizava igualmente um constante questionamento das funções dominantes da actividade artística, ampliando, contra a lógica (física e matemática) da vida tecnocrática, as experiências que consideravam sobretudo o acaso (psicológico e natural), dessa forma promovendo a consciência e o valor da ambiguidade, ou da incerteza do real. Contra a crença num progressismo tecnico-científico desenfreado, o movimento Fluxus propõe a festa e o convívio como valores de recriação artística essenciais ao humano, apresentando a vida no lugar da arte e vice-versa.
Durante muito tempo, o movimento Fluxus foi interpretado com desdém e distanciamento, acusado de ser apenas uma filosofia do caos, da destruição, do absurdo e do nonsense, ou de simplesmente não ser levado a sério pelo mundo da arte. Hoje, a importância deste movimento artístico revela-se, por exemplo, nas inúmeras retrospectivas de que na década de 90 tem sido alvo, ou como nas afirmações sintomáticas de Rene Block, importante galerista e coleccionador de arte próximo das neovanguardas dessa época: “A sittuação é agora diferente. Fluxus é reconhecido e interpretado por um crescente número de historiadores de uma nova geração como a primeiro movimento transmedia de conscistência internacional neste século e talvez ainda como última manifestação dos modernos. (…) Fluxus é movimento espiritual, e não um grupo de artistas (…) Fuxus quer dizer rio, espontaneidade, abertura, e portanto completamente oposto à arte de museu.”[7]
De um modo geral, estas manifestações colectivas realizaram aquilo que poderíamos denominar por uma “estética do comportamento”, revelando a consideração de uma conceptualidade crescente no domínio de criatividade das neovanguardas do pós-guerra, ao ponto de no final da década de 60, o crítico curator Harald Szeemann, realizar uma grande retrospectiva intitulada When Attitudes Become Form (Berna, 1969). No catálogo dessa exposição, Szeemann realizava o diagnóstico da situação, ao afirmar: “Percebe-se perfeitamente o desejo de fazer explodir o triângulo internacional da arte: estúdio-galeria-museu”, ou, mais à frente, “Na arte de hoje, o tema principal não é a realização, o arranjo do espaço, mas sim a actividade do ser humano, do artista, o que explica o título da exposição (uma frase e não um slogan). Trata-se da primeira vez que a atitude intrínseca do artista é apresentada, e de maneira tão precisa, como uma obra (…) Os artistas desta exposição não são fazedores de objectos, eles buscam, pelo contrário, escapar-lhes e alargam assim os seus níveis significantes, a fim de atingirem o essencial para além do objecto, a fim de constituírem a situação. Eles querem que o processo artístico seja ainda visível no produto final e na exposição.”[8]
Desde o início da década de 60 até 1972, data da realização da V Documenta de Kassel, comissariada também por H. Szeemann, a visibilidade dos processos de investigação desencadeados em torno das noções de “obra aberta” e de uma arte enquanto acção, processo e ideia revelam, afinal, a oscilação, mais do que a superação, dos conceitos tradicionais de arte e artista. O criador não é mais o demiúrgo priviligiado, mas antes o vector humano decisivo nas relações de produção-fruição da obra de arte. Por outro lado, dá-se um novo reducionismo na arte do século XX, agora já não de carácter formal, como acontecera no desenvolvimento das primeiras vanguardas, mas de raíz ontológica ou institucional, na herança de Marcel Duchamp, primeiro, e Piero Manzoni, Lúcio Fontana, Yves Klein ou Marcel Broodthaers, numa fase de transição, a partir de um profundo estímulo de desmaterialização global da obra de arte, na valorização da estrutura aberta, ou ainda de uma arte enquanto processo e conceito.
[versão original: in Arq.a – Revista de Arquitectura e Arte, nº 5, janeiro/fevereiro, 2001]
1 | ↑ | Denis Huisman, A Estética, (1994), (trad. port.), Lisboa Edições 70, 1997, pp. 67-69. |
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2 | ↑ | Allan Kaprow, Assemblage, Environments and Happenings, Nova Iorque, Harris N. Abrams, 1966, pp. 188-198. Informação colhida no volúme colectivo, Theories and documents of contemporary art, Los Angeles, University of California Press, Berkeley & Los Angeles, 1996. |
3 | ↑ | Numa resenha dos happenings de origem norte-americana mais importantes dos anos 50 e 60, destacar-se-iam seguramente os seguintes: 18 Happenings in 6 parts; A service for the dead; e The Courtyard de Allan Kaprow – The car crash; The smiling workman; e The shining bed de Jim Dine – World’s fair II; Injun; e Fotto-dead, de Claes Oldenburg. |
4 | ↑ | Cf. Clement Greenberg, Art and Cultural: Critical Essays, Boston, Beacon Press, 1961. |
5 | ↑ | Relativamente aos happenings e performances realizados na Europa, destaque para Pour conjurer l’Esprit de Catastrophe de J.J. Lebel; Cityrama I; No: life as a picture-picture as life, you; Im Ulm, um Ulm amd Ulm herum; e Espace Dé-coll-age de Wolf Vostell. Para além de muitos outros happenings e perfoemances de Joseph Beuys, como Final Aktion ou I like Amerika, and Amerika likes me. |
6 | ↑ | G. Maciunas realizou desde 1961 várias experiências em arte juntamente com Maxfield, John Cage, Jackson Mac Low e Flynt. Tendo depois, em 1962 e 1963 organizado com Wolf Vostell e Nam June Paik os primeiros festivais Fluxus em Wiesbaden e Dusseldorf. |
7 | ↑ | Rene Block, “Fluxus in Wiesbaden!, 1992, in Fluxus today and yesterday, A.D., nº 28, Londres, 1993. |
8 | ↑ | Harald Szeemann, “Quand les Attitudes Deviennent Forme”, in Écrire les Expositions, La Lettre Volée, Bruxellas, 1996, p. 24. |