Je n’ai fait seulement que comencer
Pablo Picasso
Sabendo nós da precária condição cultural que caracteriza este País – mantido em provinciano orgulho durante a maior parte do século – facilmente nos reconhecemos envergonhados perante o escândalo da medíocre atenção prestada aos grandes vultos da cultura visual contemporânea. Nesta altura, de pouco vale o lamento. A hora é de toque a reunir e recuperar o tempo perdido, facultando aos portugueses o contacto mínimo com as produções consideradas essenciais da arte moderna.
Parece paradigmático nesta corrida contra o tempo, que as poucas instituições do País com capacidade orçamental para o fazer optem por estratégias bem diferentes, e por vezes opostas, de promoção e visibilidade da arte internacional. Só para dar um exemplo, bastará lembrar que enquanto o CCB encerrava, após cerca de três meses bastante concorridos, a mega-exposição “The Pop 60’s”, o Museu do Chiado avançava, discretamente, com a primeira mostra de pinturas de Pablo Picasso (1881-1973) realizada em território nacional, vinte e quatro anos passados sobre a morte do pintor. Ainda assim, ou por isso mesmo, esta iniciativa permaneceu distante do grande público, dessa forma confirmando a ideia veiculada pelo sociólogo Boaventura de Sousa Santos de que Portugal vive hoje uma condição pós-moderna sem nunca antes ter passado por qualquer modernidade efectiva.
A que Picasso temos nós direito?
É certo que a obra do mais famoso pintor do século teve já honras de apresentação e discussão entre nós, mas sobretudo isso aconteceu no casulo académico das belas-artes ou no hermetismo de “salons” muito bem frequentados, e para mais reduzidas sempre à presença de um número insignificante de obras, realizadas a maioria das vezes a partir de técnicas secundárias, como recentemente aconteceu em Cascais com a apresentação de cerca de uma centena de gravuras da série “Suite Vollard” (datada de 1934).
Todavia, a presente exposição do Museu do Chiado, intitulada: “Picasso e o Mosqueteiro/Le final des Mousquetaires”, é seguramente a primeira mostra que, entre nós, apresenta um número significativo de pinturas do artista espanhol. Mas, afinal, a que Picasso tivemos nós direito? ao que, em 1967, com 86 anos e restabelecido de uma longa convalescença, reencontra ainda a febre de pintar, dando então início a 450 versões (entre pinturas e desenhos) que a partir da figura do Mosqueteiro estabelecem, por assim dizer, a fase mais importante do período final da sua pintura.
No entanto, perante a obra tardia agora apresentada, dificilmente se poderá falar, tal como foi apontado por alguma crítica mais entusiasta, em “redescoberta” de Picasso, por cá não ter havido sequer qualquer anterior e significativa “descoberta”. O Picasso do “Período Azul” e da renovação formal do cubismo não teve em Portugal qualquer apresentação ou visibilidade ao longo do século, a não ser no eco distante e escasso realizado a partir de reproduções em revistas e edições especializadas, ou no privilégio de uns quantos que em viagens pelos grandes centros da arte internacional foram trazendo até nós as referência dessa obra essencial. Pelo que o Picasso possível, neste final de século português, é contemporâneo das obras Pop que hà bem pouco podiam ser vistas no CCB. Resta-nos o consolo (ou o desastre) de procurar começar pelo fim, como quem pretende encurtar caminho.
Picasso e o Mosqueteiro
No início da década de 80 realizaram-se grandes exposições internacionais sobre a última fase da pintura picassiana, como por exemplo, “Picasso, das Spatwerk”, Basileia, em 1981; “The last years”, no Guggenheim Museum, em Nova Iorque, 1983; ou “O último Picasso”, na Tate Gallery de Londres e no Centro G. Pompidou, em 1987-88. Neste contexto, e numa dimensão “necessariamente” reduzida à nossa escala, o Museu do Chiado conseguiu produzir (a partir de um acordo com os Museus de Arles, de onde a actual exposição é oriunda) uma pequena mas importante mostra do período final da obra de Picasso, num total de 39 trabalhos datados de 1967 a 1972, incluindo 16 pinturas e uma série de desenhos e gravuras que em torno da figura do Mosqueteiro afirmam a derradeira vitalidade de um percurso excepcional.
Personagem aglutinadora de referências romanescas (bastará lembrar a obra Alexandre Dumas…), o mosqueteiro surge assim como a última figura monográfica da iconografia picassiana. Michèle Moutaschar (comissária da exposição) propõe desde logo a análise do mosqueteiro enquanto auto-retrato de Picasso, “espelho ambíguo” entre o pintor e essa figura fidalga, modelo perfeito para enfrentar a batalha final entre a vida e a morte, a pintura e o silêncio.
Nesta pinturas, Picasso realiza, por assim dizer, uma espécie de jogo ou desafio a partir da metáfora do sujeito criador fixado em nova e derradeira figura, na marca ainda irreverente de largas pinceladas que testemunham a longa cabeleira encaracolada, a gola de renda e o chapéu de penas que fazem o traje do mosqueteiro.
O longo itinerário da figuração tem na pintura de Picasso a particularidade e a constância do feminino, o que torna ainda mais revelador a procura, desta vez, da figura masculina do fidalgo mosqueteiro como objecto da pintura. O questionamento da figura dá-se assim como urgência vital de um desenho-pintura que olha de frente, como espelho privado, o prolongamento de um olhar sobre si próprio, aparato da representação nobre e afirmativa do mosqueteiro, auto-retrato eventual ou imaginário entre a acção e a postura reflexiva do sujeito realizado na sua condição social e humana (ex: “Homem com capacete dourado”, 1969).
Em obras como “Homem com cachimbo” (68) e “Homem sentado com espada” (69), essa reflexão é sugerida igualmente pela forte presença da poltrona, do cahimbo e do fumo, ou da pose em “majestade” do mosqueteiro. Sobressai também a presença constante do referente da virilidade, na evidência metonímica dessa espada, ou desse cachimbo. Aqui, Picasso recorre ainda, e acima de tudo, à dissoloção tensional de uma representação aberta, no recorte violento das formas, sem nunca abdicar do rigor essencial da espontaneidade, na consciência livre e plena dos conseguimentos vários de uma obra que percorreu todo o modernismo, as suas crenças e desilusões maiores, na sempre inevitável ostentação da pintura.
Esta é uma pintura final, que procura estabelecer o diálogo com a herança dos grandes mestres, de Rembrandt (pintor por excelência do auto-retrato e do fidalgo aristocrata) que aqui seduz um recomeço total, aos expoentes do chamado “Século de Ouro” da pintura espanhola, de El Greco a Velazquez, dessa forma invocando decisivamente a presença e a tradição da história da arte.
Simultaneamente “sombrio e alegre” (Michéle Leiris), Picasso apresenta uma pintura quase dramática, premonitória, irónica nos limites que promove, ou na convulsão que anuncia. O deslumbramento é o do próprio Picasso consigo mesmo, pintor que da pintura necessita como do ar que respira, até ao final dessa longa jornada que é a vida.
(versão original: in Arte Ibérica, Dezembro de 1997/Janeiro de 1998)
(imagem: Pablo Picasso, Mosqueteiro, 1970)
© Musée des Beaux-Arts, Rennes