2005 o direito à morte Alejandro Amenábar

o direito à morte

 

É conhecida de todos a história que Amenábar transpõe para o grande ecrã. Trata-se de um dos casos mais mediáticos dos últimos anos em Espanha, e a moral que a envolve tem feito correr muita tinta. É claro que o tema da eutanásia é muito complexo e não será um filme a deslindar a sua teia. Contudo, o trabalho de Alejandro Amenábar dá um passo de gigante, apesar de alguns maniqueísmos evitáveis, rumo à compreensão sobre a humanidade da morte, nomeadamente aquela que é implorada por quem não pode conquistá-la por vontade própria.

Ramón Sampedro foi um homem de coragem e abnegação, que um dia, ainda jovem, mergulhou de uma rocha e bateu no fundo. Ficou desde aí tetraplégico, amarrado a uma cama, limitado aos movimentos da sua cabeça. E que movimentos… A cabeça de Sampedro, não só era o seu elo de ligação ao mundo (físico e espiritual) como o seu tormento, pois ele via, sonhava, falava, comunicava… “apenas” não podia viver a sua vida sem o auxílio dos demais. Com a excepção da cabeça, e sobretudo da consciência, todo o seu corpo estava efectivamente “morto”, tornado inerte pelo destino de um azar que tolhera a vida sem o levar à morte. E este é problema essencial que marca todo o destino de Ramón Sampedro. Um homem só, apesar do envolvimento total da família, marcado pelo isolamento de uma inaptidão quase total e irrecuperável. Aos pedidos de ajuda, humanos e desesperados por vezes, Sampedro ouvia desculpas, fugas, medos tão humanos quanto o melindre da questão da sua “morte assistida”. Para vincar o desejo de poder decidir da sua morte, Sampedro recusou cadeiras de rodas e outros enganos, assumindo por completo a sua condição física, e com isso foi conquistando a atenção de um mundo que não estava ainda preparado para enfrentar a amplitude oblíqua da eutanásia. Sampedro leu livros, escreveu inúmeras cartas, solicitou ajuda ao governo, a toda a Espanha. Mas os seus apelos esbarraram sempre na incompreensão, na moral dominante, nos valores conservadores de uma cultura enraizada num princípio de vida que mantém uma aura de naturalidade onde o homem não “pode” intervir. O conflito de valores que o desejo de morte de Sampedro desencadeara em todos tornou-se tema de debate na imprensa, nas ruas e nos cafés. E assim Sampedro ganhou, pelo menos, por um momento, a atenção merecida. A sua história de resistência e humanidade maior ultrapassou fronteiras e passou a preencher títulos de jornais e televisões no estrangeiro. O mergulho do marinheiro galego tornara-se mundialmente conhecido e a eutanásia ganhava uma extraordinária dimensão. Com o caso de Sampedro, a urgência da questão sobre a “morte assistida” (tema ainda do último filme de Clint Eastwood “Million Dollar Baby”) havia alcançado um reconhecimento nunca antes visto, pelo menos nos países onde esta matéria era ainda pouco discutida e bastante ambígua ao nível da lei ou da sua interpretação. Neste sentido, “Mar Adentro” é uma vitória de que Sampedro se orgulharia certamente. Ele que conseguiu o que queria: uma ajuda fraterna para alcançar a morte, essa libertação. Com a ajuda de uma amiga, no silêncio do cianeto, Ramón Sampedro (magistralmente interpretado por esse extraordinário actor que é Javier Bardem) abraçou o desejo de “voar” em liberdade, tal como nos sonhos que o alimentaram em dezenas de anos presos aos limites inumanos de uma simples cama. Por isso, alcançar a morte pode ser, ainda que em casos muito excepcionais, uma outra forma de celebrar a vida.

 

“Mar Adentro” (Espanha, 2004) ***
Realização: Alejandro Amenábar

Actor principal: Javier Bardem

 

(in Vida Ribatejana, 23-3-2005)