2016 O divórcio entre a arte e o público – Uma maratona de desocultação em «A Paleta e o Mundo» Mário Dionísio

O divórcio entre a arte e o público – Uma maratona de desocultação em «A Paleta e o Mundo»

 

A culpa não é do artista nem do público. O público nem sempre compreende a arte moderna, é um facto, mas é porque nada lhe ensinaram do que diz respeito à pintura. Ensinaram-no a ler, a escrever, a desenhar ou a cantar, mas nunca pensaram em ensiná-lo a ver um quadro. Que possa haver uma poesia da cor, uma vida da forma e do ritmo […], eis o que ele ignora totalmente.

Picasso

 

Ver é uma coisa que se aprende.

Mário Dionísio

 

 

Aquecimento – Como o próprio título sugere, o ponto focal deste texto sobre A Paleta e o Mundo não será a auscultação de uma possibilidade de realismo na arte moderna, nem a importância, sem dúvida decisiva, da teoria dionisiana sobre a inseparabilidade da forma e do conteúdo no resultado da obra de arte – afinal, dois dos aspetos mais recorrentes nas abordagens recentes desta obra[1] –, mas sim o “divórcio” entre a arte moderna e o grande público, que determinou o desafio de uma reflexão até aí ausente do debate crítico. Para mais, tomamos como central esta perspetiva por considerarmos que nunca ela obteve o destaque exigido, e ainda por nela residir, estamos em crer, um dos temas mais originais do legado teórico do autor, mantendo uma atualidade quase surpreendente.

 

Partida – Comecemos por considerar A Paleta e o Mundo a magnum opus de Mário Dionísio. Pode parecer desmesurado para início de conversa, mas o próprio autor assumirá desde cedo essa distinção. De acordo com as suas palavras, aí se inscreve a importância retrospetiva e prospetiva da inspiração literária no seu destino autoral, marcado desde sempre por uma visão integral e coerente do seu exercício: “Na ‘Paleta e o Mundo’ está decerto, embora numa linguagem diferente, tudo aquilo que antes escrevi (na poesia, na ficção, na crítica) e, muito possivelmente, tudo o que virei a escrever.”[2] É assim total a autoconsciência sobre a centralidade deste título no percurso de um “incorrigível apaixonado de palavras e cores”, que ao longo da vida desenvolveu e consolidou uma estreita ligação com a história, a teoria da arte e a prática artística. No processo crítico da sua lenta elaboração, Dionísio reconhece ao mesmo tempo a ressonância absoluta das ideias e dos conceitos que, cintilantes no firmamento, desenharam uma narrativa vital de autodescoberta e comunicação com os outros, conquistada porém com a obstinação de um corredor de fundo.

Imaginando-a assim, finalmente, como uma disciplina olímpica, podemos ainda considerar A Paleta e o Mundo a magnum maratona da literatura sobre arte publicada em Portugal no século XX.[3] E esta imagem justifica-se plenamente, pois seja na sua primeira aparição pública em fascículos ou nos volumes das duas únicas edições em livro,[4] as suas mais de mil páginas denunciam desde logo a espessura impressa de uma amplitude ensaística que simultaneamente nos fascina e desafia, exigindo a priori um horizonte de atenção prolongada.

Ao ritmo certo, a obra e o seu valor monumentalizam-se na tarefa quotidiana de leitura e familiarização com essa dimensão de profundidade que só um trabalho de grande fôlego reflexivo nos garante enquanto verdadeira experiência do conhecimento.

Mas na verdade não é um exercício comum enfrentar hoje esses volumes quase proustianos, em especial nesta nossa contemporaneidade de efeitos fragmentários e dispersos, de distrações tecnológicas e tempos controlados por uma ideia vã de comunicação instantânea e reativa. De outro modo, lidar com a disponibilidade temporal reivindicada pela sua leitura pode ainda significar um repto extraordinário perante a vida que levamos, ou que nos querem impor, cada vez mais incompatível com o registo próprio de uma obra que, como nenhuma outra, procura ligar a arte (paleta) e a vida (mundo), através da leitura e do seu prazer intelectual.

Por isso, ler, parar e refletir, voltar à leitura e continuar pelos caminhos da interpretação de Mário Dionísio constitui um exercício de sedução pela história da arte dos últimos séculos, pela luz vibrante dos significados nela identificados ou pela assunção quase corporal da palavra “cultura”.

Com efeito, para lá da “ameaça” de uma imensidão esmagadora, cerzida num tempo com outro tempo, prevalece nesta obra um rastilho de entusiasmo que nos convida à aventura da descoberta ou do aprofundamento das obras de arte mais relevantes da tradição europeia, em particular desde os finais do século XIV. Sempre ao ritmo certo, isto é, o de cada leitor, circulamos pela energia de uma leitura que flui embalada pelo encantamento e a sapiência narrativa de uma voz verdadeiramente autoral, qualidades que em Dionísio resultam da aliança entre um invulgar talento de observação e uma sólida investigação teórica, motor afinal dessa resiliência que permite vencer a fadiga do caminho longo, como numa extenuante, mas transformadora, corrida de maratona.

 

Quilómetro dez – Na verdade, desde a reunião de entrevistas publicada sob o título Encontros em Paris (1951),[5] poucos anos depois reforçada com a publicação da conferência Conflito e Unidade da Arte Contemporânea (proferida em 1957 e editada no ano seguinte),[6] Mário Dionísio ensaiava – motivado ainda, de modo decisivo, pela polémica interna do neorrealismo[7] – um estudo e uma reflexão de outra dimensão, que abordasse de um modo profundo, mas pedagógico, não só as relações entre a história da arte (centrada essencialmente na disciplina da pintura) e a contemporaneidade, como a natureza do envolvimento da sociedade e de uma ideia de progresso nesse enlace. Inicialmente dado à estampa, como dissemos, em fascículos regularmente apresentados, uma vez por mês, pelas “Publicações Europa-América”, A Paleta e o Mundo (1956-1962)[8] – que apresentava o humilde, mas sintomático, subtítulo de “introdução à pintura de hoje”[9] – converter-se-ia na mais ambiciosa obra sobre a analítica da receção da arte publicada num país pouco dado a essa experiência de reflexão. Motivado ainda pelas preocupações sobre a função social da arte ou o valor da interligação ou inseparabilidade entre forma e conteúdo, o autor procura desenrolar o novelo da história da arte aos olhos do leitor, esse interlocutor a quem se dirige o objetivo de um texto que é simultaneamente didático e reflexivo.

Com uma rara capacidade de filtrar as relações entre a experiência direta de visitas a alguns dos principais museus da Europa e as leituras que fez das grandes teorias da arte do seu tempo, Mário Dionísio consegue transformar a erudição numa discursividade natural, elevando desse modo a experiência de leitura ao prazer de um contributo essencial, convertendo-a assim num dos valores fundamentais de A Paleta e o Mundo. Por outro lado, o humanismo da sua leitura e a paixão pela expressão artística de todos os tempos revela nesta obra colossal um Mário Dionísio sempre disponível e atento, que nos dá a conhecer os obstáculos que constituíam, e em parte constituem ainda, a base do divórcio observado entre a arte moderna e o grande público. O modo particular como desenvolve o seu discurso convida o leitor a encontrar no passado das obras de arte e dos artistas que as produziram a via de esclarecimento necessária à superação desse “conflito”, cuja origem estaria ligada ao desconhecimento e à indisponibilidade de uma sociedade desorientada perante a pluralidade da arte moderna.

Divergência identificada desde logo no prefácio: “Não é raro, por exemplo, ouvirmos que a pintura moderna provou a sua completa impossibilidade de chegar ao público. Justamente no momento em que um Picasso alcança uma projeção cada vez mais vasta, talvez inédita em toda a história da pintura. Não é raro ouvirmos e lermos, por exemplo, que a pintura abstrata não existe. Justamente no momento em que a pintura abstrata encontrou as condições sociais propícias para o seu, desejável ou indesejável, durável ou fugaz, florescimento.”[10] O autor coloca assim no terreno da especulação um curto-circuito observado na paradoxalidade da sua própria contemporaneidade, para de pronto apontar à necessidade de enfrentarmos o dilema sem qualquer espécie de reservas ou espírito de negação: “Essa técnica de tentar vencer dificuldades ignorando-as, negando evidências, saltando por cima, chegará alguma vez a resultados satisfatórios?” Dionísio questiona e volta a questionar o sentido pendular das diferentes perspetivas que se apresentam então ao grande público. Reconhecer ou recusar, eis a questão. E será esta “Uma nova arte? Uma arte de ampla ressonância onde o novo homem se exprima e se reveja inteiro? […]. Uma arte não só de espanto, mas de fértil paixão? Não só de perplexidade e de angústia, mas também de confiança e acordar de pesadelo? Uma arte clamorosa de novos triunfos sobre a natureza? Quem a não deseja?” Ao mesmo tempo, Dionísio promove a inextricável ligação entre a arte e ação humana noutra escala: “Não há nova arte possível fora do desenvolvimento natural das aquisições que a humanidade alcançou nos últimos séculos, incluindo os anos mais recentes. Tal desenvolvimento não se processa por mero acaso ou pela simpática deliberação dos artistas isoladamente considerados. Não é função de um decreto nem de um ato de fé. Pode-se interferir no seu processo, mas não é possível levá-lo pela mão. Ele nutre-se do diálogo ininterrupto – mesmo quando arredio e caprichoso – amorosamente travado entre a paleta e o mundo.”[11] A magnum opus que toma o título das duas últimas palavras desta citação tem na sua origem “a consciência geral de aproximar arte e público, a convicção de que o problema altamente especializado da arte interessa a muitos outros problemas do homem e diz diretamente respeito a essas tantas pessoas que paradoxalmente vivem na ignorância dele. É a hipótese, enfim, de que todo o conflito que a situação da arte na atualidade implica só terá solução quando essas mesmas tantas pessoas estiverem em condições culturais de, no plano que lhes cabe, ajudarem a resolvê-lo.” Aqui se manifesta de modo evidente a visão humanista, de integralidade social e cultural, que o autor imprime enquanto objetivo a alcançar com o desenvolvimento desta obra. Mas já em Conflito e Unidade da Arte Contemporânea, o autor manifestara, de modo diferente, uma esperança de compreensão sobre o fenómeno: “No mais aceso conflito, toda esta época, toda esta nossa época de terríveis contradições insinua o desejo de atingir uma unidade.”[12] “Conflito” significa aqui, enquadrado pela dialética hegeliana, a força da paradoxalidade e do contraditório, compreendido no seu valor de energia e contributo essencial ao desenvolvimento da própria arte, expressão ainda de uma alternância decisiva: “Tendência naturalista e tendência geométrica abstratizante, que tem acompanhado o homem através de toda a sua história em ritmo alternado, coincidem hoje pela primeira vez. […] abstracionismo e tendência realista buscam-se, aparentam-se, interpenetram-se, elaboram demorada mas manifestamente a sua síntese. Toda a pintura válida atual de tendência realista – de Orozco a Portinari e a Siqueiros, de Siqueiros a Léger, a Lurçat, a Pignon – mostram esta presença e esta influência profunda da experiência abstrata.”[13] Mário Dionísio apontava assim a uma ideia de unidade e fusão que considerava uma natural confluência entre estilos e tendências e não, como acontecia na sua época em diversos setores da crítica e da história da arte, a sua vincada separação. Contudo, observa igualmente que “a unidade que se anuncia na pintura de hoje não deve […] ser confundida com o regresso ao convívio espontâneo da arte e do público. É um esboço apenas. É uma esperança. Não é o fim do conflito. Não é mais que um sintoma importante da sua superação possível.”[14] O autor lembra, pois, que “o conflito da arte reflete um conflito mais vasto que o precede e o excede. A espontaneidade do convívio depende de circunstâncias que não estão nas mãos, que, pelo menos, não estão apenas nas mãos dos artistas ou dos críticos de arte.”[15] Acredita, porém, inspirado na sua visão teleológica e materialista, de que há momentos felizes nesta difícil relação entre a arte e o público, uma “unidade” entendida assim como “comunidade”: “Só nos períodos em que artista e público se encontram verdadeiramente irmanados por uma experiência comum e um ideal comum é possível a espontânea adesão emotiva à obra de arte. Fugazes momentos o demonstram, como exceções eloquentes, na vida dos nossos dias: um grande movimento – o muralismo mexicano de 1920; um quadro apenas – Guernica, de 1937.”[16] De qualquer modo, e apesar de o texto dessa conferência terminar com a afirmação conclusiva de que “toda a arte é conflito e unidade”, a longa redação de A Paleta e o Mundo converteria esta visão mais simplista numa esperança temperada pela consciência de uma mais complexa e profunda conflitualidade, associada à difícil aceitação por parte do grande público das ideias de experimentalismo e desenvolvimento artístico.

O conceito de “conflito”, entendido enquanto “divórcio” e “distanciamento” do público em relação à pintura do século XX, está assim na base da reflexão, quase olímpica em Mário Dionísio, sobre o desejo de identificação e compreensão de uma fratura produzida entre o momento de perda de protagonismo de uma arte mimética, narrativa, representativa e figural, que havia de algum modo caracterizado milhares de anos da nossa história, e o aparecimento de uma nova e ousada arte não-representativa, tendencialmente abstrata, de expressão livre e individual. Para identificar o âmago dessa conflitualidade específica, e antes de analisarmos a posição teórica de Mário Dionísio plasmada sobre esta matéria no início dessa longa dissertação que é A Paleta e o Mundo, consideramos útil clarificar de modo breve alguns aspetos centrais dos caminhos (das ruas e das estradas) que fizeram a longa maratona, isto é, a grande questão que está desde o início subjacente ao labor do próprio Mário Dionísio, e que diz respeito às hipóteses de chegarmos a uma definição objetiva do que é a arte ou, mais concretamente, o que identifica um objeto como obra de arte.

Deste ponto de partida resultam algumas das questões mais recorrentes que se colocam desde sempre, e ainda hoje, perante o estatuto de arte dos objetos assim considerados por um determinando sistema cultural. Por outro lado, o processo de comunicação e, consequentemente, de significação que se estabelece, através da mediação da obra, entre produtor e recetor, não foi nunca pacífico, nem consensual. Pensadores de todas as épocas históricas procuraram desde cedo compreender o fenómeno da obra ou simplesmente da manifestação de arte, almejando alcançar uma definição que satisfizesse as expectativas daqueles que intervêm nesse mesmo processo. Porém, apesar de termos assistido a épocas de domínio ou consenso privilegiado de alguns conceitos, parâmetros, regras, e até cânones, o certo é que a arte sempre se esquivou a qualquer definição mais perene ou sequer estabilizada. Ainda assim, o desejo de definir uma rede de referências teóricas sobre o que é ou deve ser característico de uma obra de arte, considerando por isso uma espécie de valor universal das suas condições essenciais, tem sido proporcional à destituição de valor das últimas regras aparentemente ligadas ao próprio objeto de arte na sua relação com o sujeito observador. Para isso contribuíram decisivamente as principais teorias da arte (da filosofia da arte e da estética à sociologia da arte), responsáveis por algumas das estratégias possíveis para uma interpretação do valor da obra de arte. Neste sentido, é conveniente não confundir, como frequentemente acontece, a Estética com a filosofia da arte, pois a Estética aborda problemas que ultrapassam o âmbito da filosofia da arte, como a natureza e o valor da beleza em geral (e não apenas artística) e do juízo estético em geral (e não apenas o juízo estético sobre as obras de arte). Posto isto, poderemos então considerar que a filosofia da arte toma da Estética os seus conceitos ou categorias (o belo, o sublime e o grotesco) em ordem apenas ao que diz respeito às obras de arte, tendo assim elaborado, a partir desses mesmos conceitos, uma tradição de avaliação da obra de arte que se enraizou na cultura ocidental desde o século XIX, sobretudo com o apogeu do Romantismo.

Deveremos ainda entender a filosofia da arte como o domínio que mais teorizou em torno de uma definição do que é a “arte”, e não apenas do que é “obra de arte”. Observamos assim a influência de um amplo espectro teórico que vai das teses essencialistas às estético-psicológicas, ou das teorias da indefinibilidade da arte às teorias institucionais. Todas estas propostas caminharam fundamentalmente de uma consideração de carácter filosófico para a uma outra de cariz histórico e sociológico, e esta consideração geral pode igualmente ser identificada na influência que, por exemplo, a história social da arte de um Pierre Francastel ou de um Arnold Hauser produz no discurso e na narrativa de interpretação de Mário Dionísio.

De outra forma, alguns princípios ou categorias estéticas relacionadas com a obra de arte (nomeadamente os conceitos de belo, grotesco e sublime) que tornaram comum a interrogação “isto é belo?”, deram lugar a uma viragem epistemológica verificada desde o primeiro modernismo (vanguardas históricas), especialmente com Marcel Duchamp, responsável pela introdução de uma nova e mais duradoura inquietação, expressa de modo comum pela pergunta mais ouvida desde então: “isto é arte?” O salto mortal que enforma essa invariável indagação sobre a arte, é o resultado da substituição, tal como descrita por Thierry de Duve em Kant After Duchamp,[17] do sentido esteticista da declaração “isto é belo”, ligado à sistematização elaborada desde a estética de Kant, pelo universo ontológico de um mais conceptual “isto é arte”, sobretudo depois do alcance simultaneamente ontológico e epistemológico da prática do readymade duchampiano – proposta de questionamento radical que Mário Dionísio não só não ignora, como terá sido seguramente o primeiro dos críticos e intelectuais portugueses a reconhecer as suas componentes essenciais, quando, em 1962, num dos derradeiros capítulos de A Paleta e o Mundo, acentuou “a força oculta de destruição e de desmoralização sorridente de Duchamp”, descrevendo os passos essenciais da sua abordagem derrisória e mesmo disruptiva de cariz Dada: “Já antes de 1914, Marcel Duchamp abandonara o cubismo nas suas telas e colagens, na reconstrução de objetos em que mistura elementos orgânicos e mecânicos, no mais aberto desafio a todas as convenções artísticas. […] E, logo em 1915, começara ele a obra que lhe deu fama mundial, A Casada Desvendada pelos Seus Próprios Celibatários, quadro constituído com fragmentos de estanho fixados numa enorme placa de vidro por meio de um verniz especial, e inventara os ready-mades, ou seja, objetos banais encontrados por acaso, a que acrescentava ou tirava um pormenor, passando a apresentá-los, por isso, como obras de arte. Se a Gioconda irrespeitosamente enfeitada com airosos bigodes é de 1919, o secador de garrafas e o urinol, intitulado Fonte, que, assinado Mutt, figurou na exposição na Exposição dos Independentes e veio reproduzido na sua revista 291, são de 1916.”[18] Apesar de alguns pequenos equívocos,[19] a análise de Mário Dionísio aponta à importância decisiva do gesto de readymade, em particular a sua dimensão de questionamento “das convenções artísticas”.

De outro modo, arriscaríamos mesmo que o sentido declarativo identificado por Thierry de Duve se traduz hoje, essencialmente, na recorrência interrogativa de um cético, mais do que verdadeiramente conceptual, “isto é arte?” – expressão mais comum, ouvida por vezes com desdém pelo público divorciado da expressão artística contemporânea.

De um modo geral, podemos defender que assistimos ao longo de todo o século XX a uma transferência de valores que confirma essa perda de protagonismo da estética e dos seus valores categóricos a favor de um experimentalismo livre e continuado sobre a essência do “que é arte”, buscando assim – na prática de qualquer obra que dessa forma se apresenta sempre e ao mesmo tempo como teoria sobre o seu próprio conceito – uma obstinada e incessante redefinição das suas hipóteses ontológicas, que inviabilizam ainda, pela sua intermitência constante, qualquer estabilidade possível sobre o seu significado comunicável. É como se, a partir do nominalismo da declaração “isto é arte”, projetado desde a proposta de readymade em Duchamp, a arte tivesse sofrido um efeito de expansão infinito, espécie de big bang da sua própria condição.

Porém, talvez a questão que devemos colocar não passe tanto pelo essencialismo ontológico de um “ser” arte (sempre e em qualquer circunstância), mas antes pelo contextualismo de um “haver” arte (temporal e circunstancialmente definido), isto é, mais ligado a um quando que nos esclareça mais sobre as hipóteses de algo ser considerado arte em determinadas circunstâncias, ou, de outro modo, quando se verificam as condições necessárias para que a perceção e a consciencialização do efeito de arte se constituam enquanto realidade mais ou menos definida e identificável. As teorias institucionalistas de Arthur C. Danto e George Dickie, bem como a teoria construtivista de Nelson Goodman, contribuíram decisivamente para a compreensão da especificidade aglutinadora da “instituição arte” na valorização de qualquer objeto (ou não-objeto) como obra de arte. Neste mesmo sentido, ressalta desde logo a relevância dos valores interdisciplinares que caracterizam a arte contemporânea desde o período pós-minimalista das chamadas neovanguardas. Fora já do âmbito histórico da publicação de A Paleta e o Mundo, foi esse momento responsável ao mesmo tempo por um novo e mais acentuado “divórcio” entre o público e a arte, e ainda pela revelação da especificidade particularmente poderosa da “instituição arte” no processo de simbolização e significação da obra de arte, independentemente das características da sua objetualidade, materialidade ou desmaterialização.

 

Quilómetro vinte – Desdobrando assim a ideia central de Mário Dionísio, procurámos acentuar a importância ainda hoje decisiva desse “divórcio”, “conflito” ou “distanciamento” verificado entre a arte e o público, e que decorre no essencial da ausência de uma iniciação consequente sobre a especificidade experimentalista da obra de arte e da necessária e constante alteração das suas condições de receção. Com efeito, apesar dos contributos de muitos críticos, historiadores e outros intelectuais para uma reaproximação entre a produção artística contemporânea e um público mais vasto, persistem ainda alguns dos preconceitos e das dificuldades que conduziram Mário Dionísio ao exercício de esclarecimento a que se propôs nos anos cinquenta. Às possibilidades de compreensão dessa conflitualidade então observada, Dionísio dedicará todo o primeiro volume referente à 2ª edição de A Paleta e o Mundo, não só procurando aproximar-se da perspetiva reticente do leitor a partir das primeiras interrogações assumidas no início do prefácio – expressão das dúvidas sentidas por um público surpreso e descrente –, como explicitando ao mesmo tempo a origem desse “conflito” de separação, intitulando o capítulo inicial da primeira parte desse volume com um sintomático “Chamemos-lhe divórcio…” Aí se apresentarão algumas das causas fundamentais desse lento processo de opacidade relacional que determinou o afastamento do público, no preciso momento em que a arte se afirmava através da mais extrema liberdade individual ou de grupo.

Antes, porém, impõe-se a análise das primeiras palavras do prefácio, esse texto luminoso e maiêutico que prenuncia o registo de uma longa maratona de diálogo e desocultação sobre as interrogações pendulares que nessa época sustentavam uma desconfiança generalizada:

 

A pintura moderna é obra de loucos? A pintura moderna é a verdadeira e única pintura? É um progresso? É a decadência extrema? É um logro? Quando Picasso pinta um duplo perfil, ou uma figura com olhos sobrepostos, está a divertir-se, a insultar-nos? As cadeiras ‘tortas’ de Matisse ocultam uma escandalosa negação para o desenho? Serão os críticos de arte, que escrevem espessos e ainda por cima luxuosos volumes a propósito de Cézanne, de Léger, de Kandinsky, de Braque, dissimulados agentes publicitários ou vítimas inconscientes da astúcia dos negociantes de quadros? Terão razão os milhares de pessoas que, em todo o mundo, dizem convictamente diante de um Roualt ou de um Klee: ‘Isto também eu fazia?’ A pintura moderna é uma parada de monstruosidades ou um encantador jogo decorativo? É uma arte requintada para raros conhecedores apenas ou o garatujar confrangedor de gente inepta e sem gosto? A resposta, mesmo provisória, a tais perguntas, que se têm alargado a um número cada vez maior – e é este decerto um primeiro elemento a considerar – não é fácil. Ou não é pelo menos fácil encontrá-la facilmente.[20]

 

Para lá do jogo retórico, esta última ideia de que a “resposta” não será “fácil encontrá-la facilmente” prevalecerá no discurso dionisiano como tónico sobre as possibilidades de superação desse “conflito” por vezes explícito, mas sobretudo latente. E prevalecerá não tanto como um obstáculo ao seu desenvolvimento satisfatório, mas antes como alerta sobre as especificidades da imensa tarefa que significa a desocultação de uma arte moderna complexa e de corte epistemológico, que desde Manet exigia do espetador uma maior abertura de interpretação perante a fuga ao referente e a assunção de uma autorreferencialidade progressiva, marcada desde aí pelo “nascimento do símbolo estético não-referencial”[21] imposto pela presença deliberada da “mancha de cor” no resultado final da obra. Considerada então, cada vez mais, enquanto processo de composição, a pintura da segunda metade de oitocentos modernizava-se afinal a partir de uma inovadora e desconcertante estratégia de comunicação que, no período clássico e academizante, fora sempre ocultada à observação do espetador, isto é, revelar o que é próprio da pintura: a cor, a pincelada, a mancha e a marca processual aí denunciada, afastando-se assim da ilusão perspética ou de profundidade que promovera durante séculos o seu valor eminentemente narrativo.

Consciente da complexidade destes novos dados lançados pela pintura moderna, mas confiante ainda assim na sua transparentização, Mário Dionísio procura enquadrar o leitor sobre o contexto das indefinições e das incompreensões da arte moderna, geradas por um afastamento essencialmente desinformado. O mais sedutor, porém, é que o autor partilha desde logo com o leitor o segredo primordial que o converterá num intermediário potencialmente bem recebido, pois, apesar de empenhado agora na aventura de clarificação desse divórcio axial, reconhece como também ele viveu o dilema de enfrentar ou desistir diante dessa incapacidade aparentemente insuperável de entender a arte moderna:

 

A primeira vez, há 10 ou 12 anos, que me propuseram dizer algumas palavras sobre a pintura dos nossos dias, lembrava-me perfeitamente de quando eu próprio me encontrava perante qualquer forma de arte plástica, exatamente na mesma situação dos que então me batiam à porta. Uma situação de terrível distância, que a não total indiferença ainda aumentava. Uma situação de quase consciente inferioridade. Um sentimento de incompleto, de vida truncada para as possibilidades de que se suspeita, sem se saber onde estão, como atingi-las. A desconfiança de um vazio que é talvez possível preencher com alegrias, que se adivinham perto e não se deixam definir. Os críticos, os artistas, os conhecedores, os simples amadores que tiveram a felicidade invejável de nascer e crescer rodeados de quadros e esculturas, têm contudo uma desvantagem considerável para ajuizarem as relações possíveis entre a arte e o público. A desvantagem de não poderem compreender senão num plano abstrato, o que é a insensibilidade perante a arte. E, como a maior parte das vezes, essa insensibilidade é apenas sensibilidade por acordar, como essa outra cegueira, pode pouco a pouco à força de desejo e de vontade a dissipar-se e desgelando até se transformar em compreensão e adesão emotiva.[22]

 

Esta citação concentra o desejo e a mensagem essencial que Mário Dionísio sempre expressou com esta obra: “eu sou um de vós”, isto é, “também eu, perante a dificuldade de compreender a arte moderna, me pus ao caminho.” Daí a referência constante de que esse divórcio, essa insensibilidade, é apenas “sensibilidade por acordar”. E o que o autor deseja é ajudar o leitor nesse processo de “desgelo” que significa despertar os sentidos e o intelecto para o exercício da fruição informada.[23] Objetivo concretizável apenas, no entanto, se o recetor estiver disponível para a iniciação necessária, isto é, a leitura e a consideração de uma renovação dos seus critérios de avaliação da obra de arte, superando assim a redutora, embora sempre essencial, relação empática com a mesma. Acordar o leitor para a compreensão e, por essa via, para a aceitação da arte moderna, será assim o grande desígnio de Mário Dionísio com a redação sistemática desta obra incontornável, nela assumindo inclusive, pelo “diálogo constante” ou a “conversa” próxima do leitor, toda uma dimensão vital associada ao seu próprio empenho intelectual, individual e coletivo, pois: “A Paleta e o Mundo não é uma história, não é um tratado, nem se dirige a especialistas. Quereria antes ser uma longa conversa – porque nunca esqueço que escrever é travar um diálogo constante, uma das várias e mais fecundas maneiras de não estar sozinho. Uma longa conversa com aquelas tantas pessoas, como eu próprio fui, que, vendo na pintura moderna qualquer coisa de chocante cujo porquê se lhes escapa, achariam contudo indigno injuriá-la sem terem feito o esforço para entendê-la; com aquelas certamente tantas pessoas que, querendo formular também a sua hipótese, ao menos para uso próprio, sobre os destinos da pintura, seriam incapazes de fazê-lo sem se informarem primeiro do que isso é.”[24] O ponto de partida desta longa maratona traduz-se assim pela ideia de iniciação e pela garantia de que a abertura à observação leal e disponível, livre de preconceitos inúteis, pode trazer a qualquer leitor a experiência da aceitação, a partir da compreensão de um fenómeno que, entre a reforma de meados dos oitocentos e a rutura vanguardista do início de novecentos, potenciou a decadência da arte académica (ou clássica), e legitimou progressivamente a afirmação da arte moderna. Com essa leitura, Dionísio promove ainda o reconhecimento de que entre Manet e Kandinsky há um caminho de evolução ou desenvolvimento pictórico que deve tornar-se percetível e por todos ser percorrido com resultados de transformação sensível e intelectual.

Recorde-se, a este propósito, que Dionísio terminará a sua obra magna com o capítulo “Na Hora do Abstrato”, chamando a atenção para a ideia de uma linha de leitura e interpretação que do “divórcio” chegará à conclusão, argumentada em cerca de mil páginas, de que a pintura caminhou, no fio da história, até ao momento da abstração. E este efeito de reflexão conclusiva terá tido ainda consequências diretas não apenas no seu exercício crítico e intelectual, como também na sua prática pictórica. Não por acaso, Mário Dionísio dedicar-se-á à pintura abstrata pouco tempo após a publicação do segundo volume de A Paleta e o Mundo, em 1962 – ele que já tinha trabalhado em pintura noutras fazes da sua vida, desenvolvendo nos anos 40 e 50, por exemplo, experiências em torno de alguns valores do realismo regionalista brasileiro, a partir de Candido Portinari, e do realismo social francês, inspiradas sobretudo em Fernand Léger, Marcel Gromaire, Andre Lhote e Fougeron.

Entre a observação, o estudo e a prática da arte, Dionísio constrói uma relação profícua que procura antes de mais esclarecer as dinâmicas próprias do fenómeno artístico, bem como as suas possibilidades de compreensão numa sociedade que aceita a ideia de progresso social e político, mas que a nega veementemente no domínio da arte.

Mas para Dionísio, a teia que liga o divórcio das pessoas relativamente à compreensão da arte abstrata – expressão máxima da arte moderna e da sua suposta opacidade – é a mesma que poderá desocultar esse preconceito responsável pelo fosso entre produtores e recetores, pois para compreender e aceitar a arte abstrata será necessário voltar a analisar, por exemplo, na arte do século XVIII, a distinta presença ou a conceção das figuras enquadradas individualmente na pintura de Chardin, sobretudo o modo como sugerem, pelo seu “ensimesmamento” ou abstração comportamental, uma nova dialética entre a imagem e “o lugar do espetador”, tese mais tarde defendida pelo historiador crítico de arte norte-americano Michael Fried.[25] É por isso fundamental redesenhar as ligações entre o presente e o passado, pois as relações que necessariamente daí decorrem serão essenciais para o tão ambicionado processo de clarificação sobre a especificidade da arte moderna. E nesse reenvio constante entre o passado, o presente, e as diferentes análises teóricas responsáveis pela sua interpretação, Mário Dionísio procura sempre retirar algo de fecundo para uma visão mais plural e abrangente. Por exemplo, inspirado ao mesmo tempo pela natureza essencialista da obra de arte, centrada sobretudo na defesa da pintura e dos seus valores de qualidade, Mário Dionísio consegue conciliar ainda, de um modo bastante produtivo, tanto as referências marxistas da história social da obra de arte (a partir, como vimos, da influência de Arnold Hauser e Pierre Francastel) como o formalismo germânico de Heinrich Wölfflin e Adolf von Hildebrand dirigido à “visualidade pura”, com origem na psicologia da Gestalt, através sobretudo da mediação de Henri Focillon e da sua particular teoria das formas. Nesta, a forma constitui-se como veículo essencial e definidor do caráter da obra de arte, afastando qualquer espécie de determinismo exterior na sua afirmação como ato criativo dependente do valor ou o “elogio da mão” como gesto transformador. Focillon procura assim “demonstrar que a arte constitui um mundo coerente, estável e ativo, animado por um movimento interno próprio, no fundo do qual a história política ou social apenas serve de quadro de referência”. Para o historiador de arte e medievalista francês, “as relações formais numa obra, e entre as várias obras, constituem uma ordem, uma metáfora do universo.”[26] Deste modo, “a arte é sempre o ponto de partida ou o ponto de chegada de experiências estéticas ligadas entre si, formando uma espécie de genealogias formais complexas por ele designadas como ‘metamorfoses’. São estas metamorfoses que dão à obra de arte o seu carácter único e a fazem participar da evolução universal das formas”,[27] fruto da transformação criativa da matéria da natureza. Uma ideia atentamente sublinhada por Mário Dionísio: “[…] Focillon, com a sua lucidez habitual, lembra que a madeira da estátua já não é a madeira da árvore, que o mármore esculpido já não é o mármore da pedreira, o ouro fundido, martelado, é um metal inédito, que o tijolo, cozido e construído, não tem nada de comum com a greda da barreira.”[28] Aliás, o autor de A Paleta e o Mundo admite ainda que “tal metamorfose decide tudo”, acreditando assim no valor fundamental da forma e da sua idiossincrasia no resultado ou na afirmação da matéria (convertida em objeto) como expressão de arte.

Deste modo, e apesar de contextualizar sempre a dinâmica de produção e de receção da obra de arte sob os auspícios de uma visão materialista e dialética da história, Dionísio não hesita em equilibrar a balança entre o materialismo e o formalismo, essas duas visões que, em sua opinião, só aparentemente poderiam permanecer antagónicas:

 

A arte depende da sociedade. Na vida social nada pode compreender-se sem ser relacionado com o todo. Mas é preciso ainda relacionar. É preciso ainda ver cuidadosamente que uma poesia, um quadro, uma sonata, não são, não foram nunca, reflexos mecânicos, diretos, da estrutura social em que alguém os concebeu e realizou. Uma alteração nas bases económicas da sociedade abre perspetivas inesperadas na consciência dos homens, renova-a, transforma-a. Mas entre uma e outra há, contudo, um mundo de situações intermédias e imprevisíveis, de reações, de apoio e de oposição, um mundo de elaborações de que a afirmação artística forçosamente depende também e no qual, ela também, forçosamente interfere. […]

Não é o estudo isolado da organização social que por si mesmo explicará a proibição do ritual das imagens entre os judeus e os muçulmanos ou a austeridade dos templos protestantes, nem sobretudo as consequências artísticas que daí provieram. Alguém verá na técnica serena de David, diretamente, a agitação tumultuosa da Revolução Francesa? […] Nem se pode esquecer que, além de poderosamente condicionados pelos marcos das circunstâncias gerais e mais aparentes de cada época, os caprichos dos artistas estão ainda integrados nos ritmos de desenvolvimento interno da arte.[29]

 

Deste parecer oscilante, que observa um equilíbrio incontornável entre o valor da esfera social e o universo próprio do fazer e do aparecer da arte, como não identificar ao mesmo tempo, nas palavras de Dionísio, uma espécie de antecipação da tese de Jacques Rancière sobre a “partilha do sensível”[30] promovida inevitavelmente, embora em silêncio, pela obra de arte? Por caminhos diferentes, ambos reiteram a expressão dessa especifica participação da arte no processo de transformação social. Com efeito, quando Mário Dionísio declara que “evidentemente, a arte pode (e creio bem que deve) exercer uma ação moralizadora. Mas fá-lo-á pelos seus meios próprios, através e além do que basilarmente determina a sua existência como arte”,[31] está a reforçar a ideia de que a arte não espelha o real, mas produz esse mesmo real de uma forma que transforma antes de mais o próprio espetador na sua relação ativa com o mundo. Podemos perceber ainda a importância dessa consciência sobre as especificidades ativas da arte e do espetador quando Dionísio, tal como na tese rancieriana do “espetador emancipado”,[32] defende (cinquenta anos antes, porém) a ideia de que cada sujeito ou espetador empresta à arte toda a sua experiência e mundividência, e nessa relação com a obra de arte recebe igualmente uma transformação específica da sua consciência do real:

 

Ao ver, ao ouvir, nenhum de nós [espetadores] se limita a registar a existência de certas formas e cores […]. Os sentidos da vista ou do ouvido, primeiramente simples meios das relações biológicas naturais, enriqueceram-se, cultivaram-se a ponto de terem criado atividades próprias. Enquanto vejo, enquanto ouço, inevitavelmente estabeleço múltiplas relações de um tipo especial. Ver e ouvir é estabelecer essas relações, logo inseparáveis da cena observada ou do som escutado, cuja síntese é o que na realidade vejo e ouço. Ao que vemos e ouvimos, inevitável e inconscientemente acrescentamos a nossa própria experiência pessoal, por sua vez inimaginável fora da experiência coletiva em que se forma. Transformamos os dados naturais e integramos na natureza esta própria transformação. E isto é visível e durável pela arte. As obras de arte são sinais radiosos desta força. Resultados e agentes desta transfiguração identificadora. Objetos que guardam em si o poder raro de fixar e manter viva a agressividade gloriosa dos sentidos do homem.[33]

 

Mesmo quando não reconhece a sua presença ou o seu efeito real e duradouro, estas são as relações íntimas que o espetador estabelece com a obra de arte e que Mário Dionísio consegue reenviar à consciência intelectual e à sensibilidade do leitor, envolvendo-o assim, cada vez mais, na desocultação do esplendor da experiência da arte, seja antiga ou moderna, e que constitui desde o início a tarefa essencial de A Paleta e o Mundo.

 

Quilómetro trinta – Neste sentido, o caminho de esclarecimento pedagógico e as sistemáticas ligações entre o passado e o presente que Mário Dionísio estabelece com o leitor, oferecendo-lhe uma conversa exigente, mas sempre afável na tentativa de uma formação do gosto e da sensibilidade, refletem de algum modo as ligações que preocuparam de modo próximo outros historiadores e teóricos de arte internacionais como, por exemplo, Clive Bell, Roger Fry, Meyer Shapiro ou Alfred H. Barr Jr., o fundador do MoMA – Museum of Modern Art de Nova Iorque.

Recordemos, a propósito, que as primeiras exposições realizadas no MoMA, a partir de 1929, respondem precisamente, e de modo intencional, a guiões de formação do gosto, definindo ou forçando desse modo uma linha de compreensão da arte moderna. Assim se justifica que, antes da apresentação da arte abstrata, a exposição inaugural de Alfred Barr mostrasse ao público norte-americano os quatro artistas mais decisivos do pós-impressionismo: Gauguin, Van Gogh, Cézanne e Seurat. Ao focar a atenção nas obras desses pintores, o diretor e curador do MoMA procurava em primeiro lugar identificar a raiz de um compromisso de rutura e transformação que viria a ter repercussões decisivas no surgimento de alguns movimentos de vanguarda, nomeadamente o expressionismo (Gauguin e Van Gogh), o cubismo (Cézanne) e a abstração (Seurat). A particularidade pedagógica dessa mostra só seria, porém, compreendida em toda a sua amplitude na relação com as restantes exposições apresentadas nos primeiros dez anos do museu nova-iorquino, todas elas empenhadas em clarificar o espectro da diversidade experimentalista da arte moderna e sobretudo as suas incontornáveis ligações entre o passado e o presente. O programa quase didático de Alfred Barr refletia-se ainda na produção de textos explicativos publicados em folhas de sala e catálogos, acompanhados quase sempre por reproduções fotográficas, esquemas ou diagramas, sugerindo assim uma mais fácil compreensão da arte moderna, recorrendo inclusive, nas paredes da exposição, a ampliações desses diagramas que, enquanto representações visuais estruturadas e simplificadas de um determinado conceito ou ideia, revelavam pela primeira vez ao grande público os vínculos ou as ligações de influência verificados entre artistas e movimentos.[34]

Apesar de empenhado igualmente num processo de desocultação sobre os caminhos que conduzem o passado até à experiência da arte moderna, Mário Dionísio não chegará, contudo, ao pragmatismo de uma perspetiva esquemática ou diagramática. Ele é sobretudo um escritor, um literato, no sentido em que elabora uma longa narrativa de diálogo com os leitores que se propõem a abordar o seu desafio, o seu convite. Mesmo assim, Dionísio consegue estabelecer pelo verbo uma visão estruturada dessas ligações ou cadeias esquemáticas quando refere:

 

Os saltos na pintura, as súbitas eclosões de novos estilos, são apenas resultados de longas gestações. Cada nova qualidade é o fruto de uma lenta alteração qualitativa. Cada fase plástica, como cada época histórica, não é internamente um bloco homogéneo que dadas circunstâncias fariam nascer e outras morrer, sem mais relações com o passado e o futuro. Existe uma cadeia interna, que as organiza através das suas próprias contradições. Aquela mesma cadeia a que Van Gogh várias vezes se referiu, ao dizer que de bom grado seria apenas um elo dela. Uma cadeia que surdamente se estabelece, sob a imobilidade aparente das escolas e dos quadros, de estilo para estilo, de artista para artista, e traça uma linha contínua de evolução, que é a linha de ligação dos pequenos e grandes triunfos do homem através das inevitáveis, pequenas e grandes, contradições de que a própria vida se tece.[35]

 

No fundo, inspiradas no mesmo propósito, ambas as estratégias (diagramática e literária) confirmavam o paradigma de uma época em torno da formação do gosto e da compreensão da arte moderna. Optando, todavia, por caminhos diferentes, Alfred Barr e Mário Dionísio partilhavam a mesma intenção pró-ativa, isto é, tentar compreender e passar uma mensagem de compreensão que resultasse de modo definitivo na superação dessa estigmatizante incapacidade da arte moderna, nomeadamente a abstração, de se impor ao observador sem qualquer espécie de mediação. Isto porque, aos olhos do público, as obras de um Dominique Ingres ou de um Jacques-Louis David pareciam impor-se por si mesmas, ao primeiro olhar, graças à sua representatividade narrativa ou expressão mimética do real. Ora, também para contrariar essa ideia comum, Dionísio procura no passado os exemplos de uma conflitualidade que não é exclusiva da arte moderna, mas que, pelo contrário, é própria da todas as épocas, quando envolvidas na expressão máxima e surpreendente da novidade. Dionísio vai mais longe quando, no capitulo “Chamemos-lhe divórcio”, exemplifica os paradoxos da rejeição manifestados no seio do próprio meio artístico, supostamente mais preparado para aceitar o novo ou o que difere das convenções: “É extremamente interessante verificar, nesta luta terrível e constante entre o velho e o novo, como os próprios artistas, quando colocados na situação de público, reagem à obra daqueles que os ultrapassam.”[36] Dionísio expressa aqui, uma vez mais, a sua análise de raiz materialista quando identifica de modo indireto uma ideia de progresso nas artes, ao falar sobre a reação de alguém que se vê superado, “ultrapassado”, pela realização dos outros:

 

Guérin, discípulo de David e mestre de Delacroix, dizia displicentemente da pintura deste: ‘Mais vale que faça isto do que dívidas’… Do mesmo Delacroix, que ninguém deixará hoje de incluir entre os indiscutíveis representantes da grande arte, da verdadeira e única arte, dizia Ingres: ‘É uma vassoura ébria’; ‘Se quiserem, sejam amigos dele, mas não o considerem pintor.’ Courbet viu as suas telas alvejadas pelos sarcasmos elegantes da imperatriz Eugénia e chicoteadas por Napoleão III. Gêrome julgava resolver todo o problema do impressionismo exclamando, em 1894: ‘Tudo isso – anarquistas e loucos!’ Dois ou três anos depois, cabia a vez de Renoir de ser denunciado na imprensa como ‘um verdadeiro malfeitor que corrompeu a juventude’. Cézanne não considerava Gauguin pintor. E Gauguin, por sua vez, ria às gargalhadas na cara do seu amigo Vincent Van Gogh, quando este lhe falava de projetos bastante estranhos para a época, como o de uma grande pintura mural realizada por grupos de pintores obedecendo a um plano comum…

E, no entanto, toda essas loucuras, todas essas malevolências, todas essas inépcias, todos esses motivos de elegantes sarcasmos e de cóleras imperiais contidas, vieram a transformar-se com o tempo – e o tempo não é aqui mera entidade abstrata que magicamente resolva os dissídios entre os homens – em obras clássicas, em preciosidades de museu, em objeto de estudo e de admiração incondicional, em padrões indiscutíveis, em nome dos quais, por sua vez, se condena toda a nova aventura que desponta.[37]

 

Mas Mário Dionísio não se deixará enredar pela teoria de uma positividade inevitável perante a recusa de outrora, quando se interroga, interrogando igualmente o leitor: “Toda a obra incompreensível quando surge é, então, grande arte? Passaremos agora à atitude simplória de aceitar uma obra justamente porque a não compreendemos? Cuidado.”[38] Dionísio sabe perfeitamente que nem tudo o que é atacado no seu tempo próprio terá direito à recompensa de uma aceitação futura. Por isso, adverte: “O receio de repetirmos os erros e injustiças clamorosos que, há tantos séculos, o público comete em relação a muitos criadores de uma das parcelas mais ricas do seu património não deve levar-nos à atitude passiva de concluir perante qualquer obra, por mais insignificante: É admirável; Dentro de trezentos anos será compreendida e aceite; Os meus netos extasiar-se-ão diante dela!”[39] E centrando-se de novo na longa temporalidade que implica e responsabiliza o poder do público como agente de receção das obras de arte, acrescenta: “Até porque a reação do público faz certamente parte do processo, alguma função terá também a desempenhar nesta produção coletiva que caprichosamente toma corpo pelos caminhos mais acentuadamente individuais e desusados.”[40] Tomando como exemplo uma espécie de conflito entre os admiradores de Renoir que tendem a recusar Picasso, Dionísio observa como a desvalorização dos preconceitos “pode pôr o admirador exclusivo de Renoir em condições de interrogar a pintura de Picasso antes de passar levianamente à frente. Pode pô-lo em condições de interrogar-se a si mesmo sobre os motivos profundos ou superficiais que o levam a detestar um desenho ou um quadro cuja contemplação é, para tantas outras pessoas, um motivo de admiração e de prazer. Pode pô-lo em condições de pouco a pouco penetrar num domínio que até aí supunha, com que incontido de despeito, inacessível, vedado, para raros apenas. Pode fazê-lo compreender que uma obra dificilmente acessível não é necessariamente detestável, e que a irritante falta de comunicabilidade pode não ser definitiva, mas apenas transitória e, em certo grau, inevitável.”[41] Dionísio procura assim clarificar o valor incontornável de um perspetivismo que, diga-se, não seria fácil de considerar por alguém de formação marxista e materialista, para mais numa época de grandes dicotomias sustentadas em “verdades” aparentemente sólidas. Porém, Dionísio teve sempre como matriz do seu pensamento e da sua ação uma visão humanista de respeito pela diversidade, que terá tido na inspiração criativa e nos seus valores de intrínseca liberdade a base de uma complementaridade que sabia considerar o individual na comunidade. Nesse sentido, o autor abre ao leitor toda uma compreensão sobre as pluralidades perspéticas que enformam a valorização cultural das obras de arte em diferentes contextos históricos e geográficos: “Numa sociedade dividida como a sociedade humana o é há séculos e séculos, os homens estão divididos por interesses, por intenções, por gostos. Nada é útil, insuportável, belo, monstruoso, pelo menos igualmente útil, igualmente insuportável, igualmente belo, igualmente monstruoso para todos os homens ao mesmo tempo e em todos os lugares. […] E o problema complica-se porque dentro de cada zona há ainda desencontros profundos, uma necessidade constante de reajustamentos que o dinamismo de antagonismos internos da própria vida torna permanentes e forçosos.”[42] Por isso: “Entre a visão corrente numa época e a visão que os elementos mais novos dessa mesma época estão surdamente elaborando – a própria seiva da arte – tem de haver choque, pois mesmo quando o artista é o servidor fiel e, à sua maneira, consciente desses elementos há sempre que contar com a antecipação.”[43] E o que é a “antecipação” em arte? É a novidade, o nunca dito ou feito. E Dionísio reconhece: “Não há grande artista que não seja, no campo da visão, um revolucionário. Uma das suas funções é criar novidade, é destruir o aceite, contrariar a rotina, acordar-nos do entorpecimento. Começar por desagradar faz parte do seu destino. […] Quebrar as regras estabelecidas, ao serviço, embora, de rebeldias que em breve serão novas regras, que em breve virão a ser por sua vez quebradas, é o preço desse conhecimento.”[44] Mário Dionísio identifica aqui plenamente o processo dialético do modernismo e das vanguardas, bem como a sua voraz sucessão contínua. Mas para irmos ao encontro dessa experiência de rutura e inovação, teremos de estar preparados e contemplar espaço para o desconhecido. Lado a lado com o leitor, Dionísio volta a colocar um conjunto de interrogações: “Como apreenderíamos esse algo sempre novo que é a própria arte, se não tentássemos calcar os preconceitos de que somos presa quando vamos ao encontro dela? […] Se recusássemos à novidade o direito de dizer-nos qualquer coisa tão pouco esperada por nós que começamos por censurá-la precisamente por isso? Se, em vez de pedirmos à arte que nos abra constantemente um universo mais, estivéssemos sempre prontos a exigir-lhe que não nos force a sair do nosso quintal?”[45] Há nestas palavras a consciência plena de que todos possuímos um paradigma de arte acomodado, que treme a cada novidade. Neste sentido, e uma vez mais comungando com o leitor a terceira pessoa do plural, compreendemos a conclusão de Dionísio quando observa de modo sincero e direto: “Não é a inacessibilidade que define a arte. Mas a nossa incompreensão, a nossa incapacidade de nos comovermos com ela, a nossa (digamos tudo) inferioridade perante ela, não é também razão bastante para considerá-la destituída de conteúdo humano ou valor estético. Um grande número de exemplos célebres exige-nos prudência. Nada garante ao público que tem razão. E que, quando ri de um Picasso ou de um Ernst, não está levianamente a rir de si próprio, e, de certa maneira, a lutar contra si próprio. É preciso ir um pouco mais longe e certamente bastante mais devagar.”[46] O autor aconselha prudência e esclarece, uma vez mais, que este é um processo lento, mas de longo alcance, como o percurso de uma maratona. Nas páginas seguintes, Dionísio alerta ainda para a natureza contraditória do “divórcio”, referindo-se nestes termos ao problema de um desencontro crescente: “O problema do famoso divórcio começa a parecer-nos posto em bases deficientes quando verificamos que todos esses indivíduos que atravessam as salas de exposição exclamando, entre frouxos de riso, Isto também eu fazia, ou encolhem desconsoladamente os ombros enquanto folheiam um álbum com reproduções de Braque ou Léger, se vestem e arranjam os seus interiores de acordo com um tipo de beleza que só os Braques e os Légers tornaram possível.”[47] No fundo, a rejeição da pintura moderna parece esquecer o modo como a sua presença se faz sentir no design de moda e de interiores, isto é, na vida de todos os dias. O sentido absurdo da negação da arte moderna fica assim à mercê de uma pequena observação sobre a sua experiência quotidiana, longe, contudo, dos espaços institucionais da arte: museus e galerias. O público não reconhece nem aceita no plano da arte aquilo que já faz parte da sua vida, nomeadamente na estetização modernista da arquitetura, da moda ou do grafismo dos jornais e das revistas, pois “[…] cidades inteiras se enchem de belas casas projetadas por arquitetos para os quais o cubismo não foi possivelmente uma série de vulgaridades de ‘mandriões imbecis’. Já os cartazes, as páginas dos jornais, o desenho e a cor das gravatas ou dos casacos, os invólucros dos cigarros, os rótulos das garrafas, os mais insignificantes objetos do nosso uso diário, tudo o que o comerciante deseja eficiente, capaz de exercer atração, de agradar, é composto numa linguagem nova, diretamente nascida daquela mesma pintura que os compradores desses jornais, dessas gravatas, desses cigarros, desses casacos, desses mil objetos insignificantes, consideram paranoica, degenerada ou decadente, sem contacto com a vida.”[48] Dionísio interpreta à evidência o conceito do modernismo como um projeto revolucionário com implicações não apenas nas chamadas “belas-artes”, como sobretudo em todos os domínios da cultura urbana. Desse modo, questiona-se sobre a persistência de uma negação que, afinal, não só não é global como se apresenta sobretudo no domínio do elitismo da arte e dos seus preconceitos mais conservadores. Daí que o autor possa concluir: “Começa então a parecer conveniente inquirir se o conflito é verdadeiramente entre o público e o moderno, em geral, ou entre o público e apenas alguns aspetos da arte moderna, nomeadamente a pintura. E se, por outro lado, a incompatibilidade público-pintura moderna será uma situação autêntica e definitiva, ou apenas reflexo, apenas consequência, e como tal artificial e não definitiva, de um divórcio mais vasto e mais perigoso, que poderosas circunstâncias históricas vêm de há muito cavando entre o público e a arte.”[49] É esse peso da história, sobretudo do ponto de vista do seu esclarecimento retrospetivo, que alimentará daí em diante A Paleta o Mundo, ou seja, o processo de desocultação sobre as causas desse “divórcio” afinal tão acentuado quanto verdadeiramente injustificável.

 

Chegada. Quilómetro quarenta e dois – Mário Dionísio nunca deixou que as circunstâncias da sua vida, ou da sociedade em que estava inserido, se sobrepusessem à sua paixão pela arte e pela literatura. Apesar do sofrimento dos períodos de doença ou do ambiente opressivo da ditadura, privilegiou sempre uma visão humanista sobre a compreensão universal da grande arte, observando-a como expressão sublime de uma “cultura integral” – como na tese de Bento de Jesus Caraça – não apenas dos indivíduos, mas também das comunidades e dos povos por eles constituídos.

Também nesse sentido, a persistência de escrita e a conclusão de tão ambiciosa tarefa convertem A Paleta e o Mundo na sua magnum opus, manifestação incontornável dessa empolgante e apaixonada ligação à arte. Por outro lado, esse profundo “amor pela arte” (empregando aqui a famosa expressão de Pierre Bourdieu sobre o público que visita os museus)[50] presente em todos os momentos deste texto maior, traduz-se na matriz de uma pedagogia, dir-se-ia agora, dionisiana, que sabe como nenhuma outra atrair o leitor, levando-o a participar de uma poderosa partilha de sentimentos e reflexões que envolvem afinal todos aqueles que, nesse caminho, se deixaram seduzir e conquistar.

Porém, Dionísio manterá até ao fim da sua reflexão uma honestidade e uma humildade genuínas. Face a um balanço sobre essa resiliente maratona, o autor interroga-se: “[…] depois desta longa-curta viagem, começada lá pelas novidades da Florença do século XV e terminada (ou interrompida) nas ilusões informais dos nossos dias, deste apaixonante itinerário, seguindo embora com saltos e lacunas, desproporções voluntárias e involuntárias omissões (este livro não é uma história nem um tratado, ficou lealmente dito no prefácio), que concluir?”[51] Uma vez mais, a interrogação anuncia a precariedade ou mesmo a impossibilidade de uma resposta unívoca ou estável perante a única certeza observada, “que o fenómeno estético é extremamente complexo. […], que as relações da arte com a sociedade são sempre ou quase sempre imprevisíveis e caprichosas que não conseguiremos entendê-las quando cedemos à tentação (e tantas vezes lhe cedemos!) da simples teoria do reflexo.”[52] Referência aqui às teorias da história social de inspiração marxista que tende a ver na arte o espelho da estrutura das sociedades. Mas ao confessar ter também aderido em parte a essa perspetiva de análise, Dionísio reconhece que: “Nem sempre a momentos de progresso social correspondem fases de esplendor artístico ou, a momentos de decadência social, fases de esterilidade na arte; nem sempre a arte segue os acontecimentos sociais e políticos, pois muitas vezes os precede, anuncia ou insinua; nem sempre o artista diz o que julga dizer, nem nós com facilidade apreendemos o que realmente nos diz.”[53] Responsabilidades divididas, por isso, entre artistas e público sobre a fugaz e “indomável” significação ou classificação das obras de arte, entendendo-a antes de mais como um processo sempre em construção ou reconstrução. “Tudo em arte fascina e ensina. Todas as divisões, todas as classificações, todas as arrumações a que ingenuamente queremos submetê-la, não são senão tateamentos, astúcias, modestas tentativas para domar qualquer coisa por natureza indomável, quer na totalidade, quer nas épocas, quer nas obras isoladas.”[54] Desse modo assumido, o sentido final de A Paleta e o Mundo – isto é, os seus últimos quilómetros de reflexão – procura responder ao valor de uma aproximação entre a arte (paleta) e o público (mundo), pois projetar o futuro da pintura “obriga decerto a considerar o problema do reencontro da arte e das mais vastas camadas do público.” Daqui partirá o autor para uma leitura crítica, ainda que indireta, sobre as intenções dogmáticas reveladas por certos setores do neorrealismo português, após a chamada “polémica interna” desencadeada durante o ano de 1952 nas páginas da revista Vértice:[55]

 

E isso explica facilmente as tentativas realizadas ou apenas projetadas nesse sentido, cujo espírito de generosidade (quando o é de generosidade) as não livrou da queda no mais completo malogro. Fazer ‘descer o artista ao povo’ (que temas de meditação oferece este ‘descer’…) revelou-se hipótese tão primitiva e inoperante como a, não menos primitiva, de fazer ‘subir o povo ao artista’. Naturalmente que a solução teórica do problema estará em pôr a produção à disposição da sociedade inteira, furtando-a às várias dependências que sobre ela impedem. Mas isto só seria tão fácil como a alguns se afigurou ou afigura (em projetos e decretos, já se deixa ver), se ela não fosse, indiscutivelmente um fenómeno de natureza bem particular, que se escapa às grandes linhas dos antagonistas sociais, que afinal está presa, e se essa ‘sociedade inteira’, que só existe na cabeça de certos realistas muito pouco atentos à realidade, estivesse apta desde já para o convívio da arte, como naturalmente o está para usufruir dos mais aperfeiçoados meios da produção industrial.[56]

 

Com estas palavras, Mário Dionísio defende a ideia de que a pedagogia da sociedade será a via mais eficaz para “intervir” no sentido de uma verdadeira aproximação entre a arte moderna e o público, afastando assim qualquer hipótese de submissão das experiências modernistas aos preconceitos mais paradigmáticos revelados por um público ainda desinformado ou não sensibilizado – apesar de o autor alertar de igual modo para os perigos de uma inocente defesa dessa ideia por vezes peregrina de fazer “subir o povo ao artista”.

De seguida, Dionísio volta a acentuar as idiossincrasias do labor artístico e da sua manifestação pública, antecipando, uma vez mais, alguns dos sentidos presentes na tese de Jacques Rancière sobre as especificidades de uma “partilha do sensível”: “Todo o artista, ainda que o não queira e quer o saiba, quer não, obedece a condicionalismo historicamente marcado e a um impulso interior que nega esse condicionamento e o supera com os próprios meios (também) que esse mesmo condicionamento lhe fornece. Ele sempre nos retrata quando se retrata. E com isso nos muda. Inevitavelmente sempre age.”[57] Mas, pouco depois, Dionísio realça a ideia de que opacidade a desocultar na fruição artística não diz respeito apenas à arte moderna. A propósito de uma famosa citação de Picasso: “A culpa não é do artista nem do público. O público nem sempre compreende a arte moderna, é um facto”, Dionísio acrescenta, de modo cirúrgico, “e a antiga?, apetece perguntar.”[58] Nesta perspetiva, A Paleta e o Mundo assegura-nos que a receção da arte – isto é, de toda a arte (moderna e antiga) – é sempre um sistema complexo que, avaliado com disponibilidade e persistência, não será impossível desvendar. É preciso por isso pôr em perspetiva, e ao mesmo tempo em plano de igualdade, a legibilidade da arte de uma forma geral, independentemente das suas épocas históricas ou das suas características de representação ou fuga ao referente, pois não haverá ao nível da complexidade significacional uma diferença significativa entre a leitura de um Leonardo Da Vinci ou de um Caravaggio e a de um Malevich ou de um Mondrian, apesar da sugestiva armadilha de encontrarmos mais facilidades de teor interpretativo na representatividade figurativa do real. Com efeito, trata-se apenas de uma ilusão, de um conforto aparente. Se, por exemplo, pretendermos aprofundar o nosso processo de significação e mergulharmos nas diferentes camadas que se escondem nas figuras da pintura renascentista ou barroca, reconheceremos mais tarde ou mais cedo que teremos de estar familiarizados com a simbologia mitológica ou com a história da pintura religiosa, conhecedores ainda da hagiografia e dos mais ínfimos detalhes das cenas da vida de Cristo. Na verdade, tal como Mário Dionísio frequentemente lembrava, “para ver não basta olhar”[59] e se não cumprirmos esses requisitos de análise e avaliação, permaneceremos inevitavelmente num plano de opacidade interpretativa, porque, após a falsa e primária sensação de imediata empatia e aceitação da obra de arte, que mais não é do que a expressão do reconhecimento ou identificação dos elementos figurais ou contextuais que compõe uma qualquer obra de pendor narrativo, estaremos de novo perante algo que exige de nós um conjunto de referências mais profundas, fundamentais, afinal, para a experiência de significação dessa mesma obra. Salvaguarde-se ainda que, obviamente, este processo de desocultação orientado pelo conhecimento cultural em torno de uma figuração histórica que atravessou séculos da pintura europeia, não inviabiliza, todavia, uma relação estética, mais direta e empática, com as obras com que nos cruzamos. Mas talvez seja essencial termos consciência de que essa mesma relação de empatia não será uma experiência exclusiva da arte antiga, e que também a arte moderna ou contemporânea pode sugerir uma estreita conexão emocional com o espetador, para lá do conhecimento dos seus significados mais elaborados ou complexos.

Após as muitas considerações e interrogações contidas nesta longa jornada, Dionísio assume uma impossibilidade inevitável: “[…] não caiamos na ingenuidade de querer saber para onde vai a pintura, que vai ser da pintura, sobretudo que deve ser a expressão estética dum homem que conseguiu dominar o seu próprio desmembramento, reconstruir-se, sair por suas mãos da alienação em que mergulhara, chegar, enfim, ao túnel de si mesmo, reencontrar a realidade total.”[60] Por uma última vez, Dionísio critica o posicionamento do neorrealismo dogmático – defensor ainda de uma “batalha pelo conteúdo” – quando questiona: “Mas esse realismo (tenha este ou outro nome, um nome pouco importa) que será? Como será? Nada se pode rejeitar da herança do passado, incluindo o passado mais recente.”[61] Esta é a resposta concisa e direta ao ataque do neorrealismo contra o formalismo modernista – não é possível fazer arte no século XX, depois do cubismo e do abstracionismo, recorrendo a uma estética figurativa de retorno a um realismo de outros tempos, a não ser assumindo precisamente a sua transformação (“deformação”) moderna. A este propósito, Dionísio defendera desde a polémica “Ficha 5”, publicada na Seara Nova em Abril de 1942, a necessidade de uma justa “deformação” dessa mimesis do real como via possível para uma aceção moderna do realismo, isto é, assumir a forma como “o próprio assunto a existir.” Ou de outro modo: “Não fotografar, repito, mas deformar, deformar sempre até onde esta palavra (liberta do sentido etimológico) possa significar dar nova forma, escolher a forma capaz, a única de dar a toda a gente claramente aquilo que queremos revelar.”[62] Já em A Paleta e o Mundo, assegurará: “Não se pode pôr de lado, porque sim ou porque não, o que ao longo do nosso túnel fomos criando e transformando, a nossa voz, as nossas mãos. É com essa voz e essas mãos [modernas] (não com outras, que só há na cabeça de certos ideólogos) que uma nova arte nascerá, ou não.”[63] Contrariando assim um certo neorrealismo, e posicionando-se de modo claro, sem contudo abdicar do plano da dúvida, da essencial abertura às diferentes linhas que a pluralidade do século XX anunciava, Dionísio interroga-se, interrogando novamente o leitor que o acompanha: “Mas rigorosamente, cientificamente, quem pode assegurar que a arte que vem e que convém é esta e não aquela? Quem poderia permitir-se essa ilusão, depois de examinar com alguma demora os tantos elementos materiais e espirituais, coletivos e individuais, conscientes e inconscientes, que, sem trégua, opõem e ligam, indissoluvelmente, a paleta e o mundo?”[64]

E foi afinal para responder a si mesmo e, em parte, à polémica interna do neorrealismo português, que Mário Dionísio abraçou esta imensa maratona de reflexão e diálogo sintomaticamente intitulada A Paleta e o Mundo, motivado por esse “divórcio” observado na arte dos tempos modernos entre a produção experimental e o grande público. Precisamente através de uma paixão traduzida em palavras, na estruturação de um discurso analítico, por vezes crítico, mas sempre esperançoso, daí resultou uma obra que desde o primeiro parágrafo se prenunciava como grande narrativa sobre a arte e a sua história. Sem nunca afirmar o desejo de se constituir como uma história da arte, e desenhada sobretudo como uma conversa muito particular de aproximação aos segredos que só nesse contexto podiam ser revelados e discutidos, esta obra realizou, à sua maneira, uma arqueologia de desocultação sobre a experiência de receção da arte moderna, associada na época ao apogeu de uma purificação do visual que significava todo o abstracionismo.

Companheiro e teórico do neorrealismo desde a primeira hora, Mário Dionísio foi também o primeiro a recusar o seu crescente dogmatismo e intransigência face ao comportamento modernista. Com esta obra, e opondo-se aos seus camaradas de estrada, Mário Dionísio assumirá sem hesitação a defesa da liberdade que significa a diversidade e o valor experimental da arte moderna. Consciente de que essa é a missão de todos os homens íntegros e responsáveis, escreverá no derradeiro parágrafo: “Em toda a história da pintura se tomou partido. Tomar partido é próprio do homem. Que outra coisa fazemos, enquanto escrevemos ou pintamos, enquanto pensamos, ouvimos, lemos, olhamos?”[65] Porém, tal como um corredor de fundo que mergulha na ética da superação individual, relativizando o resultado final em prol do caminho percorrido, as suas últimas palavras serão serenamente dirigidas, uma vez mais, ao perspetivismo inerente a qualquer teoria ou convicção: “Também na arte não há ação fecunda sem teoria que a inspire, nem teoria digna deste nome que se não alicerce na própria ação. Uma teoria, porém, é sempre uma hipótese de caminho ou de caminhos. E é coisa estéril se não cremos nela com todo o nosso ardor. Mas, além de estéril, logo será nociva e inimiga, se, nesse mesmo ardor indispensável, perdermos a noção de que, ainda aí, onde tudo jogamos, é apenas duma hipótese que se trata.”[66]

 

[versão original: AAVV, Nova Síntese – textos e contextos do neo-realismo, nº 11, Lisboa, Edições Colibri, 2016]

References
1 Cf. António Pedro Pita, “A invenção do concreto. Mário Dionísio e o realismo como problema”, in Passageiro Clandestino – Mário Dionísio 100 Anos, (catálogo da exposição), Vila Franca de Xira, Museu do Neo-Realismo/Câmara Municipal de V. F. Xira, 2016, pp. 34-63. Cf. ainda Inês Dourado, O percurso teórico de Mário Dionísio em “A Paleta e o Mundo”, (dissertação de mestrado em História da Arte Contemporânea), (texto policopiado), Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, 2012.
2 Mário Dionísio em entrevista conduzida por Arnaldo Pereira, “Mário Dionísio fala-nos de «A Paleta e o Mundo»”, in “Suplemento Literário”, in Jornal de Notícias, 9 de Janeiro de 1964.
3 “Maratona é o nome de uma corrida realizada na distância oficial de 42,195 km, normalmente em ruas e estradas. Única modalidade desportiva que tem origem numa lenda, o seu nome foi instituído como uma homenagem à antiga lenda grega do soldado ateniense Fidípedes, um mensageiro do exército de Atenas, que teria corrido cerca de 40 km entre o campo de batalha de Maratona até Atenas para anunciar aos cidadãos da cidade a vitória dos exércitos atenienses contra os persas e morrido de exaustão após cumprir a missão. Corridas de longa distância, entretanto, existem em documentos muito mais antigos e já eram disputadas séculos antes da civilização grega, no Antigo Egipto. O faraó Taharqa, da XXV dinastia, rei de Kush, e que viveu séculos antes dos acontecimentos entre atenienses e persas, instituiu uma corrida de longa distância para manter preparados os seus exércitos, numa distância aproximada de 100 km, o que nos dias de hoje é considerada uma ultramaratona. Esta corrida é hoje revivida no Egipto com o nome de “Pharaonic 100km” e é disputada entre a pirâmide de Hawara, em Faium, e as pirâmides de Sakkara, a sudoeste do Cairo. Mas foi a lenda do soldado grego que despertou a imaginação das gerações seguintes e era a corrida e morte de Fidípedes, incorporada num popular poema de Robert Browning, no século XIX, que habitava a imaginação de Pierre de Coubertin quando decidiu reviver os Jogos Olímpicos no fim daquele século. Uma das mais longas, desgastantes e difíceis provas do atletismo, a maratona é, ininterruptamente, uma prova olímpica desde a primeira edição dos Jogos Olímpicos, em Atenas 1896. Sua distância atual, percorrida pela primeira vez em Londres 1908, só se tornou oficial em 1921. Popularizada em fins do século XX como corrida de massa, mais de 500 maratonas são realizadas anualmente em todo mundo. Algumas delas são disputadas por apenas algumas dúzias de atletas enquanto outras podem comportar dezenas de milhares de participantes. No calendário olímpico a maratona é, tradicionalmente, o último evento dos Jogos Olímpicos.” (cf. wikipédia).
4 Cf. Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, Lisboa, Publicações Europa-América, Vol. I, 1956, e Vol. II, 1962, orientação gráfica de Maria Keil. Cf. Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, [volumes 1 a 5], (2ª Edição), Lisboa, Publicações Europa-América, 1973-1974. Pela distância temporal da sua última publicação, resulta evidente a urgência de uma nova edição desta obra fundamental aos estudos da cultura visual e da história da arte no nosso país.
5 Cf. Mário Dionísio, Encontros em Paris, Coimbra, Vértice, 1951. Caderno em que o autor expõe, baseado num conjunto significativo de entrevistas, uma análise da obra de artistas franceses (ou de cultura francesa) como, entre outros, Fernando Léger, Pignon, Taslistsky, Orazi, Morado, Scliar, Lurçat e Andre Fougeron.
6 Cf. Mário Dionísio, Conflito e Unidade da Arte Contemporânea, Lisboa, Iniciativas Editoriais, 1958 1958.
7 Na nota introdutória à segunda edição, Mário Dionísio esclarece que “Embora concebido muitos anos antes, este livro só começou a ser escrito em 1952, quando ao autor pareceu indispensável afirmar publicamente a sua completa discordância de certas teses sobre criação estética, função social da arte, realismo, que então se estavam generalizando com um furor dogmático assaz deturpador de todo o pensamento crítico que aparentemente as inspirava. Daí o seu caráter polémico” (in A Paleta e o Mundo, p. 7). Mário Dionísio refere-se nesta nota à chamada “polémica interna do neorrealismo” publicada entre 1952 e 1954, nas páginas da revista Vértice.
8 Cf. Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, Lisboa, Publicações Europa-América, Vol. I, 1956, e Vol. II, 1962, orientação gráfica de Maria Keil. Com esta obra, o autor seria premiado em 1962 com o Prémio de Ensaio da SPE – Sociedade Portuguesa de Escritores.
9 Paradoxo quase irónico deste subtítulo é o facto de fazer referência a uma “introdução” com mais mil páginas.
10 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 1), (2ª edição), 1973, pp. 20 e 21.
11 Ibidem., p. 22.
12 Mário Dionísio, Conflito e Unidade da Arte Contemporânea, p. 33.
13 Ibidem., p. 34.
14 Ibidem., p.35.
15 Ibidem.
16 Ibidem.
17 Cf. Thierry de Duve, Kant After Duchamp, Cambridge/Massachusetts, MIT Press, 1996.
18 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 5), (2ª edição), 1974, p. 122.
19 Mário Dionísio equivoca-se apenas em dois pormenores, nomeadamente no que diz respeito ao facto de o readymade Fountain não ter chegado a ser exposto no Salão dos Artistas Independentes de Nova Iorque, em 1917 – tendo sido impedida a sua exibição pela comissão organizadora –, e, mais tarde, após Alfred Stieglitz o ter fotografado, desapareceria sem deixar rasto. Foi ainda essa mesma e única fotografia da obra a figurar na revista de inspiração Dada The Blind Man, nº 2, de Maio de 1917, (e não na revista 291), inscrevendo assim definitivamente esse readymade no curso da história da arte moderna. Dionísio terá confundido a revista 291 (publicação Dada, que existiu apenas entre 1915 e 1916) com o número da porta que rapidamente passou a identificar a Galeria dirigida por Stieglitz. Na verdade, Fountain foi fotografado por Alfred Stieglitz numa das duas salas que constituiam, desde 1902, The Little Galleries of the Photo-Secession, isto é, no número 291 da “Fifty Avenue”, em Nova Iorque.
20 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 1), (2ª edição), 1973, p. 11.
21 Em The Picasso papers, Rosalind Krauss associa o primeiro momento de afirmação de uma “estética não-referencial” às vanguardas do início do século XX, em especial ao cubismo e às suas experiências em torno da colagem de signos oriundos diretamente do real, mas podemos associar igualmente o “nascimento do símbolo estético não-referencial” à “mancha de cor” assumida originalmente por Manet em Le déjeuner sur l’herbe (1863) como elemento de composição autónomo e fundamental na sua leitura estética, dado que, enquanto elemento ainda pretensamente ligado ao referente, a “mancha de cor” afirma sobretudo a sua arbitrariedade, insinuando-se contudo enquanto valor independente que, no futuro, afirmará a relevância crescente do valor do significante, ao ponto de se tornar central na assunção da composição pictórica modernista. Cf. Rosalind E. Krauss, Os papéis de Picasso, (1999) (trad. português do Brasil de Cristina Cupertino), São Paulo, Editora Iluminuras, 2006, p. 30.
22 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, vol. 1, (2ª edição), 1973, p. 15.
23 Esta preocupação com o espetador parece filiar-se ainda em Denis Diderot. O filósofo francês também fazia a sua crítica de arte desde o ponto de vista do espetador, do público observador, e não da perspetiva dos artistas, como era comum na teoria da arte do século XVIII. Diderot defendia ainda o exercício da crítica, tal como Mário Dionísio mais tarde, como um laboratório de escrita.
24 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, vol. 1, (2ª edição), 1973, p. 25.
25 Cf. Michael Fried, Absorption and Theatricality. Painting and Beholder in the Age of Diderot, Chicago, The University of Chicago, 1980. Cf. edição espanhola, Michael Fried, El lugar del espectador. Estética y orígenes de la pintura moderna, Madrid, Col. “La Balsa de la Medusa”, A. Machado Libros, S.A., 2000.
26 Cf. Henri Focillon, A vida das formas – seguido do Elogia da mão, (1934), (trad. port.), Lisboa, Edições 70, 2001, p. 10.
27 Ibidem.
28 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 1), (2ª edição), 1973, p. 93.
29 Ibidem., p.76
30 Cf. Jacques Rancière, Estética e Política. A Partilha do Sensível, (Entrevista e Glossário por Gabriel Rockhill), (2000), (trad. port. de Vanessa Brito), Porto, Dafne Editora, 2010.
31 Mário Dionísio, op. cit., p. 85.
32 Cf. Jacques Rancière, O Espectador Emancipado, (2008), (trad. port. de José Miranda Justo), Lisboa, Orfeu Negro, 2010.
33 Mário Dionísio, op. cit., p. 92.
34 Cf. Alfred H. Barr, Jr., Cubism and Abstract Art, (catálogo da exposição que apresentava na capa um diagrama das raízes e ligações da arte moderna), MoMA, 1936. Cf.www.moma.org/calendar/exhibitions/2748
35 Mário Dionísio, op. cit., pp. 77 e 78.
36 Ibidem., p. 42.
37 Ibidem.
38 Ibidem., p. 43.
39 Ibidem.
40 Ibidem.
41 Ibidem.
42 Ibidem., pp. 43-44.
43 Ibidem., p. 44.
44 Ibidem.
45 Ibidem., p. 45.
46 Ibidem.
47 Ibidem., p. 46.
48 Ibidem., p. 46.
49 Ibidem., p. 47.
50 Cf. Pierre Bourdieu e Alain Darbel, L’Amour de l’art – les musées d’art européens et leur public, Paris, Éditions de Minuit, col. “Le sens commun”, 1969.
51 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 5), (2ª edição), 1974, p. 282.
52 Ibidem.
53 Ibidem.
54 Ibidem., p. 283
55 No início dos anos 50, a chamada “polémica interna do neorrealismo” traduziu-se por uma crescente clivagem em torno do problema da relação entre a forma e o conteúdo na afirmação da obra de arte. De 1952 a 1954, as páginas da revista Vértice serviram de cenário a esse aceso debate intelectual. De um lado, João José Cochofel, Mário Dionísio e Fernando Lopes-Graça, defendiam o primado da linguagem formal de cada obra de arte e sobretudo a inseparabilidade da forma e do conteúdo no seu resultado final, enquanto António José Saraiva, Manuel Campos Lima e António Vale (pseudónimo de Álvaro Cunhal) opunham o conteúdo como agente primordial de intervenção social em arte. Se os primeiros notavam que o valor do conteúdo podia identificar-se com a expressão maior da inovação formal, alimentando uma perspetiva heterodoxa que não abdicava da função progressista da arte, os segundos mantinham uma linha de interpretação ortodoxa e contundente, ao manifestarem e defenderem a necessidade da prevalência do conteúdo, em conformidade a com a urgência de comunicação que a arte parecia ainda exigir. Se o conteudismo ortodoxo, associado a uma tácita ingerência do PCP (Partido Comunista Português) nos destinos do movimento, parece ter tido então a última palavra com a Direção da Vértice a pôr fim ao conflito para impedir a “eternização” da polémica, a verdade é que os anos 50 abrem-se precisamente à mais espontânea e abrangente liberdade formal do neorrealismo literário e artístico, denunciando assim a derrota de qualquer orientação doutrinária mais estreita, dogmática ou sectária.
56 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 5), (2ª edição), 1974, p. 284.
57 Ibidem.
58 Ibidem. p. 286.
59 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 1), (2ª edição), 1973, p. 217.
60 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 5), (2ª edição), 1974, pp. 287 e 288.
61 Ibidem., p. 288.
62 Cf. Mário Dionísio, “Ficha 5”, in Seara Nova, nº 765, 11 de Abril de 1942, p. 132. Na mesma “ficha 5”, Mário Dionísio escreveu ainda: “[…] suponho que só a deformação conseguirá construir aquilo em que todos nós pensamos quando falamos hoje em realismo, ou, mais precisamente, em neorrealismo.”
63 Mário Dionísio, A Paleta e o Mundo, (vol. 5), (2ª edição), 1974, p. 288.
64 Ibidem.
65 Ibidem., pp. 288 e 289.
66 Ibidem., p. 289.